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sábado, 31 de agosto de 2019

Crónica de Maus Costumes 145


Aos Dorian Gray do nosso tempo

Como já esclareci, muito de vez em quando, fazem-me pedidos. Este surgiu na sequência de uma conversa a propósito do livro “O Retrato de Dorian Gray”, cuja leitura recomendo vivamente.
Dorian Gray teve a característica única de se manter sempre jovem, sem uma única ruga, durante o tempo que viveu. Evidentemente, esse milagre não se operou com qualquer elixir da juventude, ainda hoje por descobrir, mas porque o desejo de permanecer eternamente jovem e passar todos os sinais de velhice ao seu retrato, pintado pelo seu amigo Basil, foi atendido. “Não há almoços de graça”, diz David Lodge e terá a sua razão. Obviamente, esta concessão teve um preço.
Dorian era um jovem de rara beleza, oriundo de uma família aristocrática, culto,    bem-educado e frequentador da melhor sociedade inglesa do século XIX. A acompanhar esta beleza, havia a sua ingenuidade e pureza. Desta forma, Dorian Gray representava para o seu amigo pintor a máxima expressão de beleza, que o inspirava na sua criação. Basil tornou-se melhor artista influenciado pela presença de Dorian. Este, para  Basil Hallward representa “a harmonia entre a alma e o corpo”. Está patente a interpretação platónica de beleza. O belo como sinónimo de bom. Para ser belo tem de ser bom e puro. A beleza merecedora de ser contemplada e como caminho de ascensão do espírito. Assim entendia o pintor e Gray exercia um fascínio imenso sobre ele sem se aperceber. Ao ver o seu retrato pintado e toda a sua alma nele exposto, o próprio Dorian se apaixonou pela sua imagem. A partir desse momento, Mr. Gray, à medida que cresce, vai-se tornando cada vez mais narcísico. Apaixonado pela sua própria beleza, formula o desejo ou prece de se manter eternamente jovem, envelhecendo o retrato por si. O envelhecimento acontece sempre que Gray não tem a postura mais adequada. De cada vez que erra e prejudica outros, surgem rugas e trejeitos desagradáveis na fisionomia do retrato, ou seja, o Dorian retratado envelhece à medida que o Dorian humano vai perdendo a sua pureza de alma. Para piorar a situação, Lord Henry, também amigo de Basil, mas homem cínico e desassombrado da vida, que ocupava o tempo a estudar a psicologia humana, fascinado pela beleza de Gray, vai ser um influência nefasta, na medida que o incentiva a explorar e usar a sua beleza como arma de sedução. Por piores que fossem as atrocidades que Gray cometesse, dificilmente acreditavam que ele fosse capaz de tal postura, já que o seu rosto cândido excluía a maldade. No entanto, Dorian evolui com as teorias filosóficas de Henry. A literatura por ele aconselhada e as suas frases lapidares ocupam-lhe o espírito: “O objetivo da vida é o desenvolvimento próprio, a total perceção da própria natureza, é para isso que cada um de nós vem ao mundo. (…) O temor à sociedade, que é a base da moral, e o temor a Deus, que é o segredo da religião, são as duas coisas que nos governam. A única maneira de nos livrarmos de uma tentação é cedermos-lhe. Se lhe resistimos a nossa alma adoece. É também no cérebro, e apenas neste, que ocorrem os grandes pecados do mundo. (…) Viva a vida maravilhosa que há em si! Que nada em si se perca! Procure sempre novas sensações. Não tenha medo de nada… um novo hedonismo, é disso que o nosso século precisa.”
Desta forma, Dorian Gray caminha ao longo da vida por trilhos sinuosos da vaidade e da arrogância de quem acredita que tudo pode e que as suas vontades ou caprichos são para serem realizados, independentemente das consequências. Afinal, ninguém detetaria o traço do pecado e da má-conduta na sua juventude inalterável. A consciência de Gray foi-se degenerando num apelo urgente das sensações, acabando por cometer um crime hediondo. Porém, foi também a consciência das atrocidades visíveis no retrato que a determinado momento o faz querer recuperar a alma perdida e passar a ser bom. Demasiado tarde. O hedonismo prometido de Henry, afinal, não chegara. A beleza física não fora, como julgara, suficiente. A extrema vaidade conduziu-o à perda de si. Afinal, a perceção clara da sua natureza, a que tanto o instigara o amigo só lhe trouxe o horror e o grotesco. Pretendendo salvar-se, perdeu-se na escuridão do caminho.
Olhando para a mensagem veiculada pelo excecional Oscar Wilde, é impossível não estabelecer correlações com os comportamentos hodiernos. Esta semana, as redes sociais foram invadidas pela notícia da hospitalização de Ângelo Rodrigues, o ator, por alegadamente ter usado anabolizantes, em busca do corpo ideal, o que terá provocado um ataque cardíaco. No momento, o jovem luta pela vida, após várias cirurgias. Espero que o rapaz saia com vida e ileso da situação, mas gostaria que todos os Dorian deste mundo parassem um pouco para refletir. O que tornava Gray fascinante era a sua beleza, porque como entendia Basil, a alma e o corpo estavam em harmonia. A chama foi-se extinguindo, à medida que se vendeu e se foi perdendo de si, mantendo como único foco o vivenciar tudo de todas as maneiras, sem olhar a meios ou prejuízos, conquanto permanecesse exteriormente belo. A sociedade também assim o exigia de certa forma e o seu amigo até o incentivava. Não faltam também os Lord Henry desta era, vencidos pelo cinismo, que insistem em valorizar o que tem menos importância. Beleza sem alma extingue-se. Todos viemos com prazo de validade, qual a necessidade de o encurtar em nome de um ideal que não se justifica?! O corpo belo não será mais poupado à corrosão do que o menos harmonioso! Provavelmente, morrendo de velhice, já nem será tão belo assim! Somos nada. Apenas uma pequena luz intermitente que um dia se apagará. Por que motivo haverá a necessidade extrema de contrariar a natureza e não aceitar a maturação da alma e dos corpos? Obviamente, não significa que não se possa ter alguma vaidade, gostar de estar e de se sentir bem com o corpo, ter os cuidados que se merece… Bem diferente de comprometer a nossa saúde e a nossa vida em nome de uma característica efémera e artificial. Seria tão bom que se investisse tanto na alma e no intelecto quanto no corpo! Talvez dessa forma se conseguisse alcançar a almejada civilização, onde todos os seres coabitassem harmoniosamente, onde não houvesse miséria, mas equidade social!
Talvez por isto valesse a pena arriscar e injetar algumas substâncias! O resto… Apenas ufania sem esmero e vã glória feita nostalgia de um dia ter sido belo!
Nina M.









quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Belo

Paira o belo sobre o altar!
Seguro e arrebatador!
Os sentidos embriaga e apaixona
Esconde-se o espírito na sua dor...
A seus pés, jaz a essência
Genufletida, tímida e com terror.
Ergue-te, alma enlutada!
Não sabes não haver beleza
Onde não houver harmonia
Entre a alma pura e o corpo que a guia?!
Tudo o mais é efémero e vazio.
Apenas ilusão.
Policena que chama a desgraça
Porque veio ao mundo com graça!
E de nada vale o belo traço 
Se a alma é pequena e lassa
Nem as alvas mãos comovem
Se delas brotam somente abrolhos.
Quanta altivez infecunda!
A todos espera o esquecimento da tumba
A terra tudo corrói e desfaz...
Até a beleza que tanto apraz!

sábado, 24 de agosto de 2019

Crónica de Maus Costumes 144


Protesto

            Apesar de já ter vivido o suficiente para saber que a humanidade, na sua génese, pouco evoluiu ao longo dos tempos, gosto de focar-me mais nos bons exemplos que nos salvam do que no lodo que nos rodeia. No entanto, às vezes, não é fácil!           Os políticos, os influenciadores da opinião pública, os media e até o cidadão comum insistem em desmoralizar-me. No entanto, declaro desde já não me render ao cinismo, que nos torna amargos e sempre insatisfeitos.
            Como se sabe, o pulmão do mundo está ferido de morte há vários dias. Arde consecutivamente e destrói vida. Têm chovido críticas, como é habitual nestas circunstâncias, ao governo de Bolsonaro. De imediato, nas redes sociais, surge uma espécie de prós e contras em torno da personagem. Uns porque consideram que a oposição e todos os que não apreciam o governante em questão tentam demonizá-lo e outros acreditam que enquanto representante de um povo, tem de ser responsabilizado pelo que acontece de mau e também de bom, se for o caso, no seu país. Ambas as opiniões devem ser respeitadas. Afinal, vivemos em democracia, que assenta no respeito e tolerância pelo juízo de outrem. Tudo estaria certo, se não percebesse que algumas das conceções elaboradas dependem da ideologia ou da simpatia partidária de cada um e, desta forma, o quadrante mais à direita tende a desvalorizar as imbecilidades de Bolsonaro, enquanto a esquerda as escalpela. Perante este cenário, fico irritada, por considerar que independentemente das nossas simpatias deve haver espírito crítico suficiente para se pensar sobre o assunto. Eis o motivo pelo qual não abdico da minha consciência livre de cidadã. A formação da minha opinião nunca poderá ser tomada para satisfazer um partido. A minha liberdade pode ser condicionada apenas pela minha família, às vezes até a contragosto, se considerar que é em nome de um bem maior, porque a felicidade nem sempre é possível, mas se houver paz, uma boa parte desta está garantida. No resto, não posso subjugar o meu juízo, a minha liberdade de pensar em prol de um corporativismo político, por isso, me mantenho uma apartidária atenta.
            De facto, não se deverá culpar diretamente Bolsonaro pela catástrofe, mas como representante de uma nação não está isento de responsabilidade. Tal como o nosso primeiro-ministro, António Costa, sempre terá o seu Governo associado aos incêndios de Pedrógão e do Pinhal de Leiria, bem como à má gestão dos fundos humanitários que se seguiram! E é injusto que assim seja?! Há situações incontroláveis, mas certamente também haveria soluções para serem postas em prática e que não foram realizadas!
            Neste caso concreto, temos um governante e também os seus correligionários que não se coíbem de vir a terreiro, através das redes sociais, dizer uma série de disparates, nada dignos das funções que exercem. Basta procurar no facebook ou youtube e as pérolas da desdita sobejam! Podem confirmar facilmente, se assim tiverem vontade. Depois, quem anda minimamente atento ao que se passa no Brasil, sabe que os Índios estão a ser dizimados em nome do lucro! A homologação, a demarcação e o registo como território tradicional indígena têm vindo a ser reduzidos. As terras dos povos indígenas têm sido invadidas, saqueadas, as águas contaminadas e os territórios incendiados. Há índios assassinados a cada passo! É uma realidade apenas do governo de Bolsonaro? Não. Com Dilma e Temer já acontecia, mas o governante mostra qualquer preocupação ou apreço por este povo? Obviamente, não.
Segundo uma notícia da TSF, que dá a conhecer um relatório de um especialista, "Para piorar, os três poderes do Estado brasileiro [executivo, legislativo e judiciário] têm sido cúmplices da pressão sobre o território, que pretende permitir a exploração dos seus recursos naturais e resulta em violência nas aldeias".
A Amazónia arde porque alguém com determinados interesses económicos e sem qualquer preocupação ambiental e humanitária lhe chegou fogo! A ganância continua a vigorar. O Padre António Vieira bem a combateu, no passado já remoto, no entanto, parece que as más lições portuguesas continuam a vigorar. Insiste-se em expulsar os verdadeiros donos daquele pedaço de terra! O chefe do governo em vez de se mostrar ferido, preocupado, do alto da sua absoluta arrogância insuportável, ignorante e execrável, só abre a boca para deixar escapar impropérios inaceitáveis!
Ah! Mas o Bolsonaro foi eleito democraticamente, alegam alguns. Pois foi. E estupidamente também! Um povo pouco instruído é facilmente manipulável. Lembro-me de ver vídeos em que o político se manifestava misógino, mas quando confrontadas com esse facto, as mulheres desvalorizavam e do negro que após a audição de umas declarações vergonhosamente racistas, confirmava a intenção de voto no déspota! Como entender isto senão à luz da ignorância?! A abstenção e os votos nulos perfizeram um total de 27%. Quem sabe não seria o suficiente para evitar o descalabro, mas não foi! Agora, por incúria de todos, castiga-se todo um povo e todo o planeta. Já agora, muito cuidado, porque no reino mais acima, as coisas não são melhores!

 Nina M.














sexta-feira, 23 de agosto de 2019

No vazio calado da noite tépida

No vazio calado da noite tépida
Deambula no silêncio mortal
Alma errante e peregrina
Encontra-se aqui e além
A sua sorte determina
Esbarra em esquinas difusas e ímpias
Busca um sentido que lhe pertença
Sente-o, mas não o vê
Sabe-o e não o alcança
É o longe sempre muito distante
Uma ausência permanente
Uma independência inoportuna
Desvincula o espírito do corpo e parte.
Sem remorso. Cruel e altiva.
Avidez desmedida que corre
Ao pasto onde sacia a fome abrupta
No fim do caminho, a paz serena
Do que não alcançou.

Vou segurar um olhar

Vou segurar um olhar
Esse brilho inquieto e feliz
Segurá-lo indefinidamente
Levá-lo comigo à cova
O tempo descarnar-me-á
Corroer-me-á as entranhas
Nada mais será beleza e viço
Corpo sem vida e sem sabor...
Nesse tempo que há de vir
Nada sobrará senão a memória
Uma lenda longínqua
Reflexo de um olhar
Ao regressar à vida já perdida
Sei-te feliz nesse instante delicado
Lembrança sedutora de um pecado
E com essa luz chegará o paraíso.

sábado, 17 de agosto de 2019

Crónica de Maus Costumes 143


 “O prometido é devido”

Terminadas as férias que marcaram a ausência da rubrica semanal, eis-me de regresso. Tempo de quebra de rotinas, de silêncio e de solidão para usufruto de amizade e de lazer. Falo, obviamente, do silêncio e da solidão desejados, necessários à escrita e ao encontro do eu, não aos impostos contra a vontade, sempre indesejados e indesejáveis. A promessa de tudo sorver e de tudo aproveitar foi cumprida, o que impulsiona a vontade de partilha e a retoma de alguns compromissos. Não todos, ainda! A escola pode esperar mais um pouco, ainda que regresse a uma casa onde me sinto bem e feliz. Terei o privilégio de regressar à companhia de bons e agradáveis colegas, alguns deles, já amigos, no entanto, tudo a seu tempo.
O hábito de cumprir sagradamente com a publicação da crónica e os poemas do meu blogue está de tal forma enraizado que foi necessário alguma ginástica mental para me disciplinar e obrigar-me à paragem. É verdade que a ocasião faz o ladrão e com a algaraviada de quatro crianças e planeamento de saídas e conversas de quatro adultos, o tempo que sobrou não foi muito.
Viveu-se muito. Sorriu-se mais. Recuperaram-se memórias e criaram-se outras. A felicidade de ver a alegria de quem nos recebe e nos faz sentir estimados, mais do que isso, amados, porque há famílias que não se entendem tão bem, é indescritível! Há gestos que são tão valiosos que não têm preço e, como diz a letra de uma canção da Mariza, “há gente que fica na história da gente e outra de quem nem lembramos ouvir”. Ver aqueles que tão bem receberam uma família de quatro agradecer-nos por nos termos lá deslocado para passar férias com eles, deixa-me sem palavras e emocionada. Quinze dias de encontro, de riso, de boa gastronomia (que me vai obrigar a um cuidado extra!), sem obediência a horários ou a tarefas menos agradáveis. Descanso, mar, sol, montanha, festa, cultura, leitura… Não faltou nada. Nem marcação de encontro mais apurado com visita a outros paraísos.
A verdadeira amizade é um privilégio de poucos. É uma forma de amor. Sou bafejada pela sorte por me terem escolhido para amiga, apesar de todas as diferenças e de todas as semelhanças. Uma amizade que se estende pelos anos. Já lá vão vinte e cinco, alicerçada num passado e em vivências comuns. Um passado maior do que o presente, dada a separação a que o atlântico obriga, mas uma amizade que se reconhece, sente e sempre se renova no primeiro instante, a cada encontro! O tempo já moldou e modificou ambas, mas a essência permanece. O respeito que esta amizade inspira a quem nos rodeia é percetível, porque é rara e preciosa. Atrevo-me a dizer que enternece.
Há pessoas que me chegam para ficar e que recuso vê-las partir, porque não as deixarei morrer em mim.
Obrigada por tudo.
Nina M.





Ilusão

Em minhas mãos seguro a ilusão
Embalo-a com cuidado para não evaporar
Deixá-la ficar assim, quieta, e em silêncio
Se falar alto pode-se quebrar
Sussurro-lhe em surdina e com carinho
Um dito de amor puro e abundante
Ilusão da minha alma que aquece de mansinho
Brilho dos meus olhos desejado, mas inquietante
Vejo-te chegar nas ondas de fim de tarde
Embalado, discreto, na corrente
Envolto numa luz de prata brilhante
E nesse descanso do caminho
Sei não poder deixar de amar o distante