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sábado, 31 de outubro de 2020

Crónica de Maus Costumes 204

Uma mão cheia de tudo e outra cheia de nada

Nunca o Homem ocidental viveu tão bem. Efetivamente, apesar da pobreza que ainda há, vive-se na era do conforto, da tecnologia e da abundância. Uma opulência ambiciosa que não se satisfaz facilmente e coage o ser humano a ser estupidamente escravo em prol de uma vida burguesa tão farta quanto desnecessária.

A receita é antiga, mas continua na ordem do dia, num mundo onde o capitalismo selvagem vigora e onde se cria a falsa ilusão de necessitarmos do que, na verdade, não precisamos. Nunca foi tão fácil a comunicação e, no entanto, nunca interagimos pessoalmente tão pouco! Quase parece cinismo existir um vírus que impeça os abraços, as conversas e a atenção que, na verdade, já pouco existiam e que, subitamente, as pessoas valorizam. Talvez aconteça que alguns dos velhos atirados para o hospital, reféns da COVID, sem as visitas que os familiares reclamam sejam os mesmos que seriam lá deixados para a família poder ir de férias descansada… Demasiado desacreditada na humanidade e abalada pelo cinismo, porém, como acreditar na bonomia da sociedade se o simples exercício de usar uma máscara e evitar multidões parece inexequível para alguns, que não podem perder uns passeios em prol do bem comum e em prol dos seus?

Zygmunt Bauman tem razão. Tempo de uma modernidade líquida que me desgosta, em que tudo é efémero e passageiro como o telemóvel que se troca a cada surgir de modelo novo ou como o carro que se deve trocar ao fim de uns anos para ostentar uma saúde financeira e uma vaidade provinciana. Devo estar a ficar velha, já noto a pele sem a elasticidade dos vinte anos, mas também ainda não tenho o sorriso metido dentro de parênteses, para usar a metáfora fabulosa do Lobo Antunes e, no entanto, dou comigo a ter saudades do meu corsa comercial velhinho de início de carreira, que sempre subiu o Marão sem avarias ou reclamações. E continuo ligada a ele, que já não existe há dezasseis anos, pelas memórias e pelos sorrisos que me arranca. Era um pouco doida à época e a carripana conhecia as curvas de Vila Real a Vilarandelo e depois a Chaves de cor… E esta tendência exacerbada para me ligar às memórias passadas que me lembram de quem fui e me fazem ver o diferente que sou, ainda que muito permaneça idêntico, fazem-me gostar das coisas e desejar perpetuá-las. Gosto das coisas pelo seu valor e não pelo preço. Na verdade, não é exatamente das coisas, mas da afetividade delas. Sempre fui assim. Desfiz-me do corsa com o mesmo custo que me desfiz dos muitos papéis que tive colados nas paredes do quarto no tempo da faculdade com mensagens dos amigos, a família de quem está deslocado por terras alheias. Guardei por anos e religiosamente um envelope cheio de papéis com missivas engraçadas, outras lamechas, assinaturas e cartas (ainda recebi algumas cartas e sinto agora o cheiro a tinta velha…) e sabia que tinha de o fazer, de reciclar, porque não se pode acumular a tralha toda, sabendo também que um dia ao lembrar-me disso haveria de o lastimar. E lastimo… Depois, há outros registos mais recentes, porém, não tão recentes assim, dos quais ainda não me desfiz por falta de coragem. De maneira que sempre fui velha na alma, talvez, e a velhice já não me traga grande novidade…

E ao pensar nisto, lembro-me da mensagem do cardeal José Tolentino Mendonça e sei que não quero nem passo pelas coisas sem as habitar ou tão pouco falo com os outros sem os ouvir, não quero juntar informação sem a aprofundar (ainda que tenha uma mente dispersa e que gosta de voar por vários temas, para evitar o enfado… Talvez precise de envelhecer um pouco mais para corrigir esse prejuízo…). E não suporto a ideia de tudo “transitar num galope ruidoso, veemente e efémero”… Eu que coleciono almas e conversas e me esforço por guardar as que me merecem a memória, ainda que falhe tão mais do que gostaria… A memória não é má, mas não é infalível e é muito seletiva. Eu que gostaria de poder congelar momentos, carregar essa intensidade pela vida fora e fazer dela duração como no poema de Peter Handke (caramba! Que belo poema!). Não quero viver na velocidade, que na verdade nos impede de viver. Quero poder treinar a memória para guardar os poemas de tantos outros: o Neruda que escreveu os melhores poemas de amor, talvez sem saber o amor… E o verso de Safo que não sei de cor ou de Torga e da sua dureza e de Sophia e da sua melodia…

Este tempo em que tudo é tecnologia só nos rouba sem compaixão o parco tempo que nos sobra. Se não estivermos atentos, entra-nos casa dentro e vai-nos matando lentamente, porque a cada falha, a cada recusa de verso em troca de um teclado é uma centelha de alma que se perde e se corre o risco de não recuperar. Sinto-me velha, porque vejo pessoas distantes e continuo a vê-las novas e sei que já são tão velhas quanto eu… Sinto-me velha, porque pelo caminho já deixei muita gente e sei que a perda maior ainda está por vir (felizmente) … Sinto-me velha, por ausência de capacidade ou sequer desejo de ir a uma discoteca até às seis da manhã, como tantas vezes! Sinto-me velha, porque o ruído é-me cada vez mais insuportável e o sossego do sofá com uma manta sobre os joelhos e um livro, uma tentação! Sinto-me velha, porque estou cada vez mais intolerante à papelada que me aborrece profundamente, porque não me acrescenta nada e agora deu-me para isto, de me irritar e de sentir as vísceras estremecerem de cada vez que me arrancam de dentro de mim para me lançarem às coisas das quais não quero saber! Ao terrível mundo pragmático onde só trabalho, porque para viver verdadeiramente ausento-me para outro só meu, tão protegido e tão inalcançável! E puxam-me e insistem para que desça e quase desejo reformar-me só para ter direito a esta alma velha com toda a tranquilidade.

E assim, tantas vezes, neste mundo cheio de coisas, descobrimos vazios inconsoláveis que não são colmatáveis nem pelo telemóvel, nem pelo carro, nem pelas joias ou acessórios caros ou silicones que preencham as rugas, mas que deixam a descoberto a nossas angústias. Não há tecnologias nem distrações que nos valham, pois o dia de cada um se confrontar há de chegar e a escolha entre olhar de frente a nossa verdade e as nossas fraquezas ou fugir cobardemente terá de ser feita, entre risos e lágrimas, com uma cheia de tudo e outra cheia de nada.

 

Nina M. 

 

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