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sábado, 7 de novembro de 2020

Crónica de Maus Costumes 205

 

Tareia de cócegas e de beijos

Um dos livros mais ternurentos que li é O meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos, descendente de portugueses. É sobejamente conhecida a história e já foi imortalizada também em telenovela e filme. A novela passou e eu era catraia. Tenho uma vaga ideia da Godoia (a irmã que melhor compreendia o Zezé), a atriz Cristina Mullins, com rosto de lua cheia e olhos gigantes cor de céu. Não vi. O livro leria muito mais tarde, já adulta, e o filme, ainda ontem, vi a sua versão mais recente.

Invariavelmente, eu fico sempre um pouco desgostosa depois de ver o filme, conhecendo o livro. A película não é má e trata os episódios que mais se destacam, mas o livro é infinitamente mais ternurento e violento também. Impossível ficar indiferente às travessuras de um Zezé arteiro, mas cheio de doçura, como a generalidade das crianças, desejoso de um amor que não tinha na família e que foi encontrar no amigo Portuga. O pé de laranja lima, o amigo em que Zezé montava para fazer as suas cavalgadas, é a prova de que a imaginação pode salvar o que sobra da alma de alguém. O último reduto de quem se sente só, abandonado por todos e incompreendido. A árvore com quem Zezé conversava conservou-lhe a sanidade mental. Ela foi, mais tarde, substituída pela presença do Portuga, a quem a criança adotou como pai, de quem lhe veio o sabor e o cheiro do amor. Zezé ficou órfão duas vezes: a primeira, do pai biológico, de quem levava surras monumentais e a quem matou, como explicou ao português, num diálogo comovente. Devagarinho, o coração da gente vai matando aos poucos e, quando nos damos conta, a pessoa já morreu, mesmo que viva. A segunda, do pai que ele escolheu, o seu amigo português.

A história enternece quer pelo conteúdo quer pela atualidade. Infelizmente, os maus tratos infligidos a crianças continuam na ordem do dia. A mão lesta de quem castiga terrivelmente, desmesuradamente o atrevimento e a travessura infantil não deixou de existir. Uma violência gratuita justificada pelo mau comportamento e pela necessidade de educar, mas essencialmente, um lavar de frustração e de raiva pela vida que se tem a cada bofetada desferida. Cada golpe manchava a autoestima do garoto, que pensou em suicidar-se para acabar com o seu tormento. O menino foi salvo pelo amor do Portuga a quem pediu que o levasse para sua casa e, quando confrontado com a morte dele, adoece emocionalmente. O pai tenta recuperar a sua imagem e o seu papel, depois de ter resolvido os seus problemas financeiros e com o álcool, mas nunca chegou a perceber que seria demasiado tarde, que o seu papel de pai já não lhe cabia, que o filho já o tinha morto há muito e nada do que fizesse poderia importar. A redenção do miúdo veio pela mão do amor que não mais o abandonou, mesmo depois da morte da fonte.

Os meus filhos viram o filme também, ainda que com alguma resistência do mais velho, que está na idade de rejeitar o que os pais teimam em aconselhar. Porém, depois da recusa teimosa, o interesse foi surgindo e, no final, ficou a satisfação. Em tempos de tanta mediocridade, é imperioso oferecer qualidade.

No fim do filme, depois de alguns esclarecimentos, a minha doce Matilde soube lembrar o tempo em que, mais pequeninos, a mãe os deitava e invariavelmente se despedia de cada um com uma “tareia de cócegas e de beijos”. Era a nossa despedida a cada anoitecer e, ontem, depois de a recordarmos, teve que se repetir, apesar dos pudores da adolescência de um (às vezes mais fingidos pelo dever que a idade comporta do que por vontade) e da relutância da outra, cujos nove anos já não justificam tal lamechice. O certo é que nenhum deles se furtou às carícias nem esquecem do beijo ou do abraço antes de deitar.

Ainda há quem julgue que o amor não cura?

 

Nina M.

 

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