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sábado, 28 de novembro de 2020

Crónica de Maus Costumes 208

 

O direito inviolável à vida

                Cada vez gosto mais do Valter (Hugo Mãe). Além de grande escritor parece-me um ser humano gigante! Viveu parte da sua infância na minha cidade, numa casa cor-de-rosa, no centro, que tinha um jardim enorme! Passava lá amiúde, com os meus pais, ao domingo, dia de ir ao café, em frente à casa, que era da dona Alicinha Batista, uma velha muito velhinha, imagem que a minha memória guarda.            Nunca conheci o Valter (com muita pena minha), mas eu também não morava na cidade, em catraia.

Ele contava, ontem à noite, na Comercial, que quando veio de Angola, frequentou a escola na minha cidade. Engrossava a lista dos retornados que não eram vistos com bons olhos pelos que cá residiam. Essa é a verdade. Para os continentais, essa gente que saiu do país, onde a miséria reinava, à procura de melhores condições de vida e regressaram com a guerra colonial, com uma mão à frente e outra atrás, apanharam os parcos empregos, passando “à frente” dos que cá estavam e que aguentaram toda a miséria sem nunca terem saído. Já se sabe: numa casa onde falta o pão, todos ralham e ninguém tem razão!” De modo que o Valter contava que a funcionária da escola, a ele, só lhe servia meia caneca de leite, enquanto aos outros meninos a enchia. Eu também sou desse tempo! O leite era servido em canecas de plástico. Branco. Imaculadamente detestável! Só o cheiro do leite quente já me revirava as tripas e arrancava-me vómitos tremendos! Acontece que a professora que tive no primeiro ano (antiga primeira classe), achando que eu não bebia leite por questões de casmurrice de canalha, todos os dias me fazia beber um bocadinho (devia ser a teoria de que temos de experimentar dez vezes até o nosso paladar se habituar). Eu segurava o vómito como podia… Certo dia, lembrou-se de me fazer beber meia caneca. O horror percorreu-me as veias. Nesse dia, não segurei o vómito e foi a libertação! A professora não voltou a insistir e eu não voltei a beber leite até aos dias de hoje! Nem natas. O cheiro é-me insuportável. Tal como o sabor. Valter, teria todo o gosto em ceder-lhe a minha caneca de leite!

Porém, o horror da história é o motivo racista que levava a funcionária a agir dessa forma. Comentava, enquanto o servia, que os meninos escuros não precisavam de beber tanto leite! O Valter, bom ser humano, já lho perdoou há muito, mas não esqueceu o episódio. A nossa memória guarda o que nos marca e ele aprendeu o que significa ser discriminado sem razão e perguntava-se o motivo de ser mais escuro, embora não pareça nada. Inconcebível é o comportamento da senhora, sobretudo, com uma criança. A falta de sensibilidade e de bom senso é de facto imprescindível para se lidar com seres humanos, mas ainda mais com crianças… Creio que todas essas dificuldades, aliadas a uma timidez que lhe é natural, ao que parece, fizeram dele o que é hoje. Seguramente, um dos melhores da atualidade, mas que conserva uma humildade e uma simplicidade própria dos gigantes. O Valter escreve sobre as inquietações de todos nós. Na verdade, não somos assim tão diferentes. Uns dão-se ao trabalho de as descobrir e de as pensar e outros optam por viver na superfície das emoções. Nenhum estará mais certo do que o outro e apenas faz o que lhe permite viver melhor ou o que, pelo menos, lhe causa a impressão de viver melhor (uma questão de má-fé sartriana, que não é propriamente inconsciente, mas antes o nosso consciente a querer aplacar os nossos receios. Autoproteção, na verdade, da qual todos padecemos, uns mais do que outros. Somos nós a querer enganarmo-nos). “Contra Mim” é o título do seu novo romance (de cariz autobiográfico e que, naturalmente, terei de adquirir e de ler). É uma satisfação saber que o Valter morou por aqui (mesmo que considere a Póvoa do varzim, onde vive, a sua terra). Saber que alguns dos episódios da infância foram passados cá, mesmo os maus episódios como o relatado, porque tudo serviu para o construir, é um orgulho e uma satisfação. Uma pequena vaidade ilegítima e um pouco parva, mas que ninguém me tira!

O escritor escreveu, a propósito da generosidade do General Ramalho Eanes, que afirmou que os velhos dariam os seus ventiladores aos mais novos em caso de necessidade, por causa da COVID -19, que não queria que o fizesse. Na sua opinião, o país não pode colocar os velhos nessa posição, porque ele não gostaria que a sua mãe, que já tem oitenta anos, mas ainda tem vitalidade, fosse obrigada a morrer em prol da vida de um mais novo, porque não temos o direito de escolher qual das vidas é mais válida. Dizia ele que cada um sabe de si e da sua vontade de viver, sempre individual e única. Há velhos de oitenta com mais vontade de continuar por cá do que muitos jovens. Portanto, o dever de um país é providenciar os mecanismos para que todos tenham direito a serem tratados. E isto é de uma clarividência exemplar. Pelo menos, parece-me. Não consigo não concordar com ele, porque para mim, a vida de cada um não é entendida num sentido utilitarista ou economicista, mas um direito inviolável, que poderei admitir ser interrompido se for essa a vontade a quem ela pertence, em determinadas e raríssimas exceções! Eu, que tenho a mania de querer viver pelo menos até aos noventa e, se a medicina ajudar, quem sabe até mais, isto se conseguir manter a sanidade e a força física, não poderia estar mais de acordo! Há coisas que preciso fazer, na tentativa de me cumprir e, portanto, quem sabe da disposição para o fim da linha sou eu! Neste momento, não tenho nenhuma. Desconfio que mais tarde também não. Plenamente consciente da sua inevitabilidade, eu passo muito bem sem ela.

Sim, Valter, se a sua mãe ainda está cheia de vitalidade e vontade de viver tem tanto direito à vida quanto qualquer um de nós. Não pagamos impostos elevadíssimos para que os médicos tenham de escolher, mas para que todos possam ter o melhor atendimento possível, independentemente da idade.

Bem-haja!

Nina M.

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