Seguidores

sábado, 21 de novembro de 2020

Crónica de Maus Costumes 207

 

O saber não ocupa lugar

                Ler o texto de opinião “Sem tecto, entre ruínas”, de José Matias Alves, do jornal Público e o autor escreve ao abrigo do anterior acordo ortográfico, daí a manutenção do (c) na palavra teto, não posso deixar de fazer a minha leitura relativamente a algumas ideias apresentadas.

                De referir que a base estrutural do texto foi escrita há cerca de 25 anos e publicado no Correio Pedagógico e adaptada aos dias de hoje. O título do artigo retoma o título do livro de Augusto Abelaira (1982).

                O artigo é escrito na voz de um narrador autodiegético, de quinze anos de idade, Daniel Rocha. O jovem confronta-se com a situação pandémica, que obrigou a alterações profundas nas dinâmicas da organização da escola. Lamenta, por isso, as trinta e uma horas compactas semanais que lhe “promete uma vida futura, enfim liberta da maldição que parece tudo querer destruir”. Até lá, sofre do longo tempo preso e sozinho em casa, da turma numerosa de 28 alunos, em que respiram uns para cima dos outros, da redução dos intervalos para evitar os contactos e do contrassenso que isso constitui com o facto de, dentro das salas de aula estarem a 50cm. Fala do tempo insuportável de distância e de solidão. O suposto jovem de 15 anos vai apresentando, ao longo do texto, as razões que os vários professores invocam para a valorização do papel da escola, enfileiradas umas nas outras, à medida que as matérias vão sendo lecionadas. Assim, o professor de Filosofia fala da escola e da educação como alavanca do progresso social, da emancipação do homem, constituindo um elevador social; a docente de História lembra que a escola, com os títulos académicos, democratizou a sociedade e veio a substituir a estratificação de sangue, permitindo a mobilidade social; de seguida, a professora de Português invoca a Literatura como a morada do ser, a revelação do mundo, dos outros, dos próximos mesmo mascarados (ao ler isto, esta professora de Português já me conquistou)! Finalmente, o professor de Latim aborda a estruturação da língua e do raciocínio, base para se poder comunicar bem. O aluno termina a referir que no livro de Filosofia leu que resistimos à mudança, receamos a incerteza, mas que o tempo não se suspende, acabando com uma série de interrogações retóricas: “e para onde vai [o tempo]? E para onde é que eu vou? E que faço em casa, numa tarde de sol, a mergulhar em séculos de saber? Onde poderei ler o sentido da minha adolescência, a confusão da minha respiração? Onde poderei encontrar as respostas para as minhas inquietações? Onde?”

                Antes de mais, manifesto o meu apreço pela esclarecida e brilhante reflexão. Quem me dera que os nossos jovens fossem, efetivamente, capazes de pensar e de escrever desta forma. A maioria, nesta idade, não é. A ser verdadeira a existência deste narrador, com certeza, ele estará de parabéns. Ocorre-me, então, que quer com pandemia quer sem ela, estas questões em torno da escola e da preparação dos jovens para o seu futuro já vêm de longe. Pois se a base do texto já foi escrita há 25 anos!

A dada altura, o jovem diz que ouviu o pai comentar com um amigo que “o mundo moderno esmaga o homem com a precariedade de todos os horizontes, ainda mais nestes tempos pandémicos” e, mais tarde, que terá lido no computador do pai um documento intitulado “teses sobre o sem-sentido da escola” onde leu que a preparação da escola será um fracasso se a organização social e a organização do trabalho não se organizarem de modo a dar um sentido diferente à vida, pois haverá uma falta de motivação dos professores e dos alunos se a vida ativa não fornecer perspetivas de promoção. A ser assim, os alunos e os professores dificilmente acreditarão no sentido da vida escolar.

Parece-me que o cerne da questão está na revolução que ocorreu sobretudo nos últimos anos, perante o facto de, salvo raras exceções, o canudo já não ser a garantia de uma vida estável e confortável. O saber já não garante os bons empregos e já não constitui a certeza de ser o elevador social que tanto se preconiza. Desta forma, parece que todos os argumentos usados pelos professores caem em descrédito. Na verdade, mediante uma reportagem que vi, nestes últimos tempos não se tem diminuído a diferença entre as condições sociais e económicas de geração para geração. São necessárias cinco gerações para que uma criança oriunda de um meio pobre consiga atingir um salário médio, segundo um estudo da OCDE. Julgo ser esta constatação que leva o jovem ou o José Matias Alves a afirmar que se “sente esmagado pelo vazio da incerteza”.

Penso que esta tendência veio para ficar. Não será a sociedade a adaptar-se ao homem, mas antes este a ter que se reinventar para caber na sociedade que ele próprio criou!

Ora bem... A discussão sobre o interesse de certas matérias para a vida futura dos estudantes sempre se colocou. Não é porque o latim não é falado que perdeu a sua utilidade. Não é porque ninguém pretende licenciaturas em História ou Literatura que estas perderam a sua validade. Talvez o Homem precise de uma mudança de paradigma e de procurar mais intelectuais pensadores do que tecnocratas. Esse é o grande flagelo da escola e da sociedade. Os professores, que deveriam ser instigadores do amplo saber, foram transformados em técnicos, que cumprem um programa e umas aprendizagens essenciais limitativas. Eu devo, obrigatoriamente, estudar os poemas X, Y, Z, mesmo que para aqueles alunos e para aquela turma sejam mais adequados o C, D, E! Ah! Já é possível alterar currículos. Pois… Só a parafernália de documentação e projetos exigidos fazem qualquer um perder a vontade. Trabalho mais intensamente e de forma mais limitada e padronizada, hoje, do que no início da carreira, há 23 anos! Todos os alunos têm de ser formatados para escrever um texto de opinião, obedecendo cegamente às regras instituídas, quando seria mais importante fomentar  a criatividade, por exemplo. Num mundo democrático e de plenas liberdades, exigimos exercícios padronizados. Que remédio! São objeto de avaliação em exame! Agora que penso nisso, a mim, nunca nenhum professor de Português me ensinou a escrevê-los e as opiniões escritas não me têm faltado! Penso também que podem discordar delas, mas não será pelo texto mal escrito.  Os alunos, por sua vez, precisam de entender que a sua formação deve ser holística e articulada. Sem as ciências sociais e humanas perde-se a empatia, a capacidade de se dar, de se ouvir, de formular e de reformular pensamentos, expressos através da língua, conjunto de signos comuns a uma sociedade. As ciências sociais e humanas servem, antes de tudo, para humanizar os humanos desumanizados. Um médico ou engenheiro não se valoriza por saber um pouco de História ou de Literatura ou de Artes Plásticas? Fará algum mal aos futuros informáticos, engenheiros e afins saber quem foi Padre António Vieira, Eça de Queirós, Pessoa ou Saramago e conhecer os seus escritos, parte integrante da nossa cultura e do ser-se português? Será normal que tenha de esclarecer um aluno do ensino secundário sobre os cristãos-novos, a influência da comunidade judaica em Portugal e o empreendedorismo que eles emprestavam ao país? Sobre o massacre dos judeus, as políticas de expulsão do reino, a violência exercida sobre as crianças retiradas aos pais para serem criadas por famílias cristãs? Não deve o básico da nossa História ser conhecido de todos, independentemente da área de estudos?  

Enfim, talvez seja idealismo, mas seria bom que a escola fosse também apreciada pelo saber que em si proporciona e não apenas pelo futuro ou ascensão social que possa trazer, infelizmente em declínio. O gosto que a escola me deu pelo conhecimento combate o cinismo que nos rodeia e as frustrações de uma profissão cada vez mais desgastante, mais difícil e menos atrativa. Precisamente, porque de mim querem uma técnica, que é o que me recuso ser! Há algumas coisas de que não gosto na minha profissão. Desde logo a abominável burocracia que nos destrói. Não obstante, uma permanece intacta: a possibilidade de falar de literatura, esse mundo especial e incrível vivido por dentro e que tento aperfeiçoar a cada momento. A oportunidade de o poder cruzar com a História e com a Filosofia, alargando horizontes. Também tenho de saber de gramática. Temos todos e, ao contrário do que dizem, também é importante, porque é ela que regula a língua e a torna percetível e clara. É ela que regula o nosso património maior, a nossa língua, guardiã da nossa História. É na língua, portanto, que se guarda quem fomos, o que somos e para onde vamos, o Quinto Império do porvir. Talvez, por isso, desconfie sempre quando se questiona sobre a utilidade desta ou daquela matéria. Aprendi que tudo tem sempre a sua utilidade, mais tarde ou mais cedo. Esqueceremos algumas aprendizagens, mas não se tornam inúteis por isso. Trata-se, evidentemente, de uma clarividência que surgiu apenas com a maturidade.

Assim, ao “para que precisamos disso se não serve para nada?” Respondo: também respiramos o ar que não vemos ou sentimos. No entanto, mantém-nos vivos.
Que os jovens pensem assim é normal, mas que os adultos os acompanhem, já me causa um certo prurido…

Por fim, às questões colocadas pelo jovem, lamento, mas não há respostas prontas. Terá de ser ele a encontrar o seu caminho, o seu sentido e a resposta às suas inquietações. Aviso que é um caminho que se faz ao longo da vida, às apalpadelas, para o qual é necessário um arsenal de conhecimentos, porque só tem inquietações quem as pensa.

Nina M.

 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário