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sábado, 26 de dezembro de 2020

Crónica de Maus Costumes 212

 L’enfer c’est les autres

Diz Jean-Paul Sartre e tem razão, porquanto os outros sejam, muitas vezes, o nosso espelho. Na verdade, o inferno somos nós em confronto com o outro. A admissão de que a existência perde a sua validade ou o seu sentido sem o outro dá cabo das pretensões de qualquer um.

Não existe mãe sem filhos, marido sem esposa, filhos sem pais, professor sem alunos, escritor sem leitores, artistas sem público… Então, não existimos sem a alteridade, o que não deixa de ser estranho, porque possuímos uma essência individual e única e que não é partilhada. Porém, poderia essa essência ser verdadeiramente sem o outro, ainda assim? Eis o fundamento da necessidade da alteridade para podermos ser. Difícil é o equilíbrio entre a alteridade e a interioridade nas relações… Precisamos do outro para ser, mas ele tem direito à sua essência única e exclusiva também. O jogo de equilíbrios, de respeito, de tolerância e de aceitação dificultam as relações interpessoais, transformando-as, muitas vezes, numa luta absurda de imposição do ser.

Ocorreu-me esta ideia enquanto lavava a loiça, depois de ler um artigo em que dava a conhecer o número absurdo de escravização dos seres humanos, a que assistimos neste mundo, apesar da abolição da escravatura… Culpavam-se as políticas neoliberais (das quais não sou fã) pelo sucedido. Em abono da verdade, o capitalismo selvagem promove essas situações. Essas circunstâncias nefastas ainda não foram minimizadas pelos países mais ricos, porque os interesses económicos sobrepõem-se aos direitos humanos, que deveriam ser prioritários. Escusado será dizer que as mulheres e as crianças são os dois grupos mais vulneráveis, onde a escravização para a oferta de serviços sexuais tomam a dianteira. O facto de esses negócios e de essas práticas existirem não veicula ninguém a esse tipo de consumo. É um problema tão grave quanto o do traficante e o do consumidor. Não existiria tráfico se não houvesse consumo nem consumo se não houvesse tráfico. Não me parece que o problema seja de fácil resolução, uma vez que existe desde que o mundo é mundo, apesar dos progressos inegáveis nessa matéria. Não é, portanto, justo nem intelectualmente honesto, culpar meramente o sistema capitalista pelo problema. É um problema transversal aos sistemas políticos e que reflete o facto de o Homem não ser capaz de ser humano! É um problema que advém da falta de reconhecimento do outro! É um problema que confronta o agressor consigo mesmo, transformando-se no monstro violento, porque subjuga a vítima. Só é agressor, porque existe uma vítima.

A falta de consciência de que somos nos outros e com eles, de que somos a forma como nos projetamos nos outros, de que se é na alteridade e de que sem ela não passamos de existências inócuas, conduz o Homem a esse descomprometimento tolo, presumido e nefasto.

Só o caminho do amor ao outro como projeção do amor a nós mesmos poderá ajudar a solucionar o problema. Como plantar a semente e disseminá-la? É preciso educar para o respeito, para a tolerância, enfim, para o amor, numa sociedade que promove cada vez mais a competição desenfreada, a inveja, a aniquilação do outro, entendido como sombra, esquecendo-se de que sem ele não existe verdadeiramente o eu!

Nina M.

 

 

 

 

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