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sábado, 21 de dezembro de 2019

Crónica de Maus Costumes 160


                Ética, precisa-se!

A minha Matilde é um encanto. Ontem, aprendeu da pior forma o que é a desonestidade. Percebeu que não pode confiar em todas as pessoas, mesmo sendo crianças como ela. E o seu coraçãozinho puro, sensível e sem maldade entristeceu. Chorou dececionada e sem compreender o motivo que levam os outros a serem maus. Olhava-me chorosa em busca de uma explicação que eu não conseguia arranjar, a não ser a verdade crua de saber que há pessoas desonestas e que não se incomodam se prejudicarem terceiros com as suas ações.
Ao que parece, teria combinado com outra menina, através dos jogos online a troca de certos componentes. O irmão, mais velho e já com outra maturidade, bem tentou demovê-la, mas a Matilde, doce e ingénua menina, decidiu confiar, afinal, por que motivo não o faria? Se a outra criança prometeu, tal como ela, por que razão não cumpriria com a sua palavra?! A minha filha sentiu-se enganada, traída, sem nada poder fazer para remediar a situação.
Expliquei-lhe que deveria fazer trocas apenas com os seus amiguinhos conhecidos e falei-lhe das vantagens das relações interpessoais. Se acontecer um problema desse género, quando as pessoas estão frente a frente, a situação é facilmente resolvida. Quando se trata de redes e de realidade virtual, sem se saber quem está por detrás de uma tela, tudo se complica. O episódio infeliz traz, porém, a sua vantagem: a minha Tita, ontem, cresceu mais um palmo. Acabei por consolá-la, como sempre as mães conseguem fazer e dizer-lhe que apesar de tudo estava muito orgulhosa dela, que preferia que fosse ela a ser enganada do que a enganadora. Ela era quem tinha agido corretamente e com dignidade. A outra menina é que deveria estar a chorar por desconhecer o significado de ética.
A Matilde esbugalhou os olhos, já de si imensos, duplicando-lhes o tamanho. Não sabia o que era a ética. Expliquei-lhe que é uma qualidade imprescindível ao ser humano. Uns têm e outros não. É o ímpeto que nos leva a agir corretamente, mesmo se isso nos é desfavorável. É talvez das maiores qualidades que o ser humano pode ter e das mais difíceis, porque não se vende em supermercados nem é estática. A ética exige de nós uma construção permanente e não há ninguém que consiga ser absolutamente ético o tempo todo, pelo simples facto de sermos humanos.
- Se a menina tivesse isso não me teria enganado, mamã?!
- Não.
- Mas eu tive com ela e fiquei sem as minhas coisas!...
- É verdade. Nem sempre quem é honesto ou quem tem ética é respeitado, porém, há algo muito precioso que não perdeste: a tua dignidade e a consciência de teres agido corretamente. Vale mais do que tudo. O que perdeste conseguirás recuperar, já a ética da menina relativa àquele momento, fica perdida para sempre. Pode vir a reconquistá-la noutras ocasiões, oxalá venha a verificar-se, no entanto, desta vez, já a perdeu.
A ética é uma virtude que pode ser ensinada (segundo Aristóteles) e que exige responsabilidade e respeito pelo limite estabelecido pelo outro. Eu não devo ouvir música alto em lugares públicos, porque posso incomodar o outro. Assim, o comportamento ético é revelado tanto nos mais ínfimos gestos como nos mais grandiosos. Desviar dinheiro público é um comportamento deplorável e condenável, mas apropriar-se da fotocopiadora da empresa para fins pessoais também é. Qual a diferença entre ambos? Na sua génese, o comportamento é similar. A diferença está no valor do desvio. Desta forma, a ética não parece que possa ser relativizada ou avaliada em graus. Ou se tem ou não. O valor do produto adquirido pela falta de um comportamento ético é que poderá ser variável e tornar o comportamento mais ou menos gravoso. Assim como as circunstâncias que o proporcionaram podem servir ou não de explicação para a falha. No entanto, com ou sem atenuantes, o comportamento continuará antiético.
A Matilde aprendeu que nem sempre quem age bem é recompensado pela vida. Aprendeu também que, infelizmente, não pode confiar em toda a gente, porque, estranhamente, nem todos se pautam por uma conduta que consiste em não fazer o mal deliberado a outrem. A Matilde, ontem, chorou por se sentir injustiçada, vilipendiada nas suas boas intenções, mas é a mesma menina que uns minutos depois, quando a irritação passou, ao ouvir o vento sibilar lá fora e a chuva a bater nos vidros, me perguntava onde é que as pessoas que vivem na rua iam ficar, porque não deveriam ficar à chuva! É a mesma menina doce que passa pelas ruas da cidade e não fica indiferente aos pedintes e que me quer obrigar a dar uma moeda a todos os que encontramos. Lá lhe explico que não podemos dar a todos. Convenço-a a ficarmos por dois ou três e que os outros haverá alguém que também os irá ajudar. É a mesma a quem se alguém lhe der uma guloseima, pergunta de imediato: “E para o Rodrigo?” É a menina sempre disponível para ajudar quem precisa, sensível até ao tutano, perspicaz e que se entristece se vir alguém triste. É a menina persistente até ao limite, até me vencer pelo cansaço, por vezes! A menina que tem as suas manhas, que adora ver o seu trabalho reconhecido.
- Mamã, tive muito bom! Ficaste feliz?
- Fiquei, meu amor, mas fico mais feliz ainda por saber o coração enorme que albergas no peito! Por saber a tua candura, a tua sensibilidade, a tua generosidade a par da tua irrequietude e malandrice, porque tudo se quer na exata medida das coisas!

Nina M.
          









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