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sábado, 28 de dezembro de 2019

Crónica de Maus Costumes 161


Falências

Deve haver verdadeiro motivo para que o verbo falir seja defetivo pessoal, isto é, não pode ser conjugado em todas as formas. Se disser: eu falo, imediatamente se associa ao ato de comunicar (falar) e não ao ato de falir. Talvez porque ninguém goste de assumir o insucesso e assim aquele que faliu é sempre um outro alguém que não eu. Eu não falo, no sentido de falir, mas posso ser insolvente.
Em falência ou em processo de insolvência estão as instituições públicas deste país. Tenho um familiar que sempre diz que um país que faz revolução sem sangue e o substitui pelos cravos não vai a lado nenhum… Sempre achei disparatado. Somos caso único, mas a ditadura foi derrotada sem guerra civil e derramamento de sangue. Deveria ser motivo de orgulho. Não deixa de ser curioso, estranho e até mesmo ridículo a forma como se conseguiu pôr cobro a um regime daquela forma. Uma pesquisa rápida pela Internet permitir-vos-á ler na íntegra uma entrevista feita a Salgueiro Maia, por Adelino Gomes. O amadorismo do processo, as três horas de viagem para fazer o trajeto entre Santarém e Lisboa (os tanques saíram às três da manhã de Santarém e entraram no Terreiro do Paço às seis), as viaturas velhas foram arranjadas pelo pessoal miliciano e havia o receio de que pudessem avariar. Felizmente, parece que só houve um furo, nada de especial e lá conseguiram fazer a viagem até Lisboa à velocidade estonteante de 60 km por hora! Certo é que o professor Marcelo Caetano rendeu-se quase prontamente, apesar de a PIDE ter ainda tentado dispersar a multidão que se aglomerava, percebendo o movimento de revolta, a tiro. Ainda morreram cinco pessoas e houve uma dezena de feridos. O golpe de estado mais pareceu uma passagem tranquila de testemunho. Tempos mais conturbados viriam depois, com o PREC e com novas tentativas para instaurar um regime também totalitário e pernicioso e que culminaria a 25 de novembro de 1975.
Finalmente, abria-se caminho ao pluralismo partidário e à instauração da democracia. Os anos de ditadura salazarista, a miséria e o atraso em que se encontrava o país deveriam ser suficientes para colocar em alerta quem já cresceu em liberdade, assim que pressentisse quaisquer sinais, por ínfimos que sejam, de totalitarismo. Desta forma, entristeço de cada vez que sinto desvalorizada e desrespeitada a democracia. Sucessivos governos têm ferido de morte a democracia. Fizeram-no com a greve de enfermeiros, com a greve de professores (alterando nos primeiros dias de agosto a legislação que regula o funcionamento dos Conselhos de Turma para tornar legal o que sempre foi ilegal), com as sucessivas formas abusivas de pressão através do medo que plantam nas pessoas e com a pressão constante sobre a comunicação social (as recentes notícias sobre o atraso do programa Sexta às Nove, de Fátima Felgueiras e as suas declarações à Comissão Parlamentar, tornam-na visível). Vive-se, nas instituições deste país, o novo tempo do “quero, posso e mando”, num regime democrático e ninguém se incomoda com isso! De repente, quem se revolta contra os continuados abusos perpetrados sobre quem paga impostos desfasados por excesso do parco salário que recebe, é olhado de soslaio e entendido como o revolucionário sindicalista que nunca está satisfeito!
Irrita-me solenemente que volvidos 45 anos após a revolução, ainda haja um espírito servil e acabrunhado no povo português que o impede de lutar por aquilo que lhe pertence por direito! Não fosse a resiliência dos sindicatos e do povo e ainda estaríamos a trabalhar doze horas diárias, sem muitos dos direitos adquiridos! De cada vez que se permite que injustiças sejam cometidas, sem reclamar, por medo, estamos a compactuar com o estabelecimento de regras próprias de regimes totalitários. De cada vez que censuramos aqueles que lutam sabiamente pelos seus direitos, damos uma machadada na democracia. De cada vez que perdemos a noção da força que comporta uma classe e nos desunimos na luta, estamos a beneficiar os tiranos do regime. De cada vez que pensamos que não vale a pena lutar, porque quem nos governa faz o que quer, estamos a abrir-lhes portas para fazerem mesmo isso!
Não! Haja consciência e sentido de bem comum! Leia-se! Leia-se muito, porque a melhor forma de controlarem as massas é através da ignorância e da inconsciência! Perceba-se definitivamente que o verdadeiro poder está na rua e que devemos ser o regulador do bom funcionamento democrático e das suas instituições. Só o faremos se mostrarmos a indignação enquanto cidadãos, exigindo respeito pela nação e pelo povo que representam a quem nos governa! Digamos claramente não a todo e qualquer comportamento abusivo, que ponha em causa a noção de democracia! Quanto ao poder executivo do país, que o faça respeitando a História da bandeira que representa, lembrando-se só chegaram até ali, porque viveram em democracia. Quando perguntaram a Salgueiro Maia, após a revolução, “e agora?”, ele respondeu: “o povo tem de aprender a viver em liberdade e a saber que a dele termina quando começa a do outro”.
Parece-me que nem o povo nem quem nos governa nem quem exerce cargos de decisão neste país compreende o exato sentido dessas palavras.

Nina M.

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