Leituras e conversas
Há dias nefastos para a escrita. Hoje é um deles.
As ideias pairam e sobrevoam, mas nenhuma se concretiza de forma acertada e
consistente e, assim, a minha alma vagueia dispersa e móbil, sem se
consubstanciar em matéria.
Quando tal acontece, talvez seja sinal de ser
preferível o silêncio, porém, a filhota vai atirando para o ar: “ó mamã,
escreve sobre nós!” E as palavras teimam em dançar à minha volta e fugir-me.
Não me abraçam e fazem-se tão difíceis quanto uma mulher caprichosa.
Neste impasse e na incerteza do que possa dizer,
opto pelo seguro: falar de livros e do que eles nos proporcionam e talvez assim
as ideias comecem a surgir. Enquanto ajudava o meu mais velho a preparar a
leitura de O Cavaleiro da Dinamarca, sou surpreendida pela sua
interrogação. O meu filho é capaz de fazer as observações mais brilhantes, mas
também as mais idiotas, em pequenos momentos em que parece ausentar-se do mundo
e de nós. O pai estrebucha por tudo quanto é lado e suspira, acrescentando que
bastava uma cá em casa dessa espécie. Calo-me, porque há coisas do meu filho que
são tão minhas que seria falta de pudor desmentir. Exceto a idiotice, porque
essa fica toda com os homens como todas as mulheres concordarão. Depois de
aprender quem foi Dante Alighieri e da fantástica viagem que este fez à morte
ainda em vida, perguntou-me:
- Por que motivo estava escrito à entrada do inferno:
“Vós que entrais abandonai toda a esperança?”
Respondi que era o aviso de que as almas condenadas
ao sofrimento eterno não poderiam ter esperança de ter dias sem dor.
- E quem vai para lá?
- Os que tiveram uma conduta deplorável e fizeram
muito mal a outras pessoas.
- Mas Deus não perdoa todos?
- Sim, mas é preciso que se tenham arrependido
verdadeiramente.
- Ah! Achas que o Bin Laden está no inferno?
- A haver inferno, naturalmente, será o seu lugar.
– Respondi.
Ficou admirado com o purgatório e as almas que por
lá passam e voltou a questionar:
- E para aqui quem é que vai?
- Aqueles que erram, mas cujas ações não são assim
tão prejudiciais.
- Para pessoas como eu e tu? Insistiu.
- Talvez. Respondi.
- Mas podem chegar ao céu…
- Podem.
- Olha, ó mãe, e Dante será que foi para o paraíso?
- Com certeza. Dante era poeta e esses têm o
paraíso ganho. Sentenciei. Esperava algo de volta, mas nada disse. Parece-me ter
concordado com a ideia.
Sorri de satisfação, porque o livro tinha cumprido
a sua missão. Inquietou o espírito do meu filho de doze anos que se diz ateu e
que gosta pouco de ler, mas confessou ter gostado da história.
Querendo provar-lhe as vantagens da leitura
disse-lhe não haver motivo para não ler, pois como verificou até tinha gostado
e deveria fazê-lo mais vezes.
- Ó mãe, eu gostei da história, mas não gostei de a
ler…
Quase como quem diz que se lha tivesse contado, continuaria
a gostar dela e tê-lo-ia poupado à tarefa!
Ainda não compreendes, meu filho, mas se ta tivesse
contado, talvez não tivesses tido o tempo necessário para te inquietares. Talvez
um dia consigas compreender a importância dos livros e os universos que nos abrem
e o que hoje é sacrifício, amanhã, será prazer imenso inadiável. Necessidade básica
de sobrevivência e a garantia de fuga à imbecilidade!
Como tua mãe posso conceber que sejas um pouco distraído
a momentos, mas não um adulto profundamente estúpido. Sabes, a estupidez é deveras
insuportável e a melhor prevenção para tal dano ainda é a leitura.
Nina M.
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