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domingo, 27 de outubro de 2019

Crónica de Maus Costumes 153


Costela cristã
Já me disseram, por outras palavras, que a minha esperança e bonomia para com o outro reside na minha costela cristã. Sorri. Não tenho só uma costela cristã. Tenho várias. É a minha matriz cultural e a de quase todos os que nasceram neste país e a minha matriz educacional também. Não a larguei. Poderia tê-lo feito, mas escolhi não o fazer.
Assumo, assim, a minha identidade cristã, de pertença a uma comunidade católica. Também assumo as minhas dúvidas e as minhas críticas face a uma igreja (diferente de Deus) que nem sempre soube ou sabe dar o exemplo e que é falível, porque é feita de homens. Há erros mais desculpáveis do que outros. O que mais me inquieta e desgosta na posição da Igreja (entenda-se representante de toda uma comunidade crente) é o isolamento e a necessidade de ocultação de factos por sentirem que fragilizam a sua estrutura e a sua importância. A transparência será sempre o melhor caminho. Sinto que falha principalmente junto dos jovens. A sociedade não é mais a mesma e se é verdade haver valores imutáveis que devem continuar a ser preconizados, também não é menos verdade que o conhecimento torna as pessoas mais críticas e questionadoras, faz com que haja dificuldade em lidar e em acreditar em determinados dogmas instituídos. Ou se sabe valorizar a mensagem da Boa Nova, o essencial do Cristianismo, ou se perde a identidade. Sinto e vejo muitas vezes esta identidade perdida, à deriva, no seio dos que deveriam ser os primeiros a darem o exemplo.
Se escolhi permanecer ligada a esta comunidade, ainda que me recuse a embarcar na ideologia de rebanho, como a apelida Nietzsche, e, por isso mesmo, manter um espírito crítico, é devido à sua mensagem de amor. É o convite constante à vigilância do ego e o reconhecimento da imperfeição, fruto da vil condição humana. Porém, é sobre esta consciência de pequenez que se constrói o ser dia após dia, com paciência e numa tarefa árdua que exige resiliência, um exame introspetivo quase diário, a humildade de se reconhecer pequeno e ser que falha; a humildade para recomeçar diariamente um trabalho de Sísifo, que sabendo não alcançar a perfeição, permite, no entanto que se evolua. Tal só será viável se a mensagem frutificar e se houver terreno que a saiba acolher e olhar-se. É difícil confrontarmo-nos com as nossas angústias e olhá-las de frente, com o fariseu que habita em cada um e domesticá-lo, mas é do nada que se ergue o melhor templo.
Humano é o que erra e pede desculpa, o que fracassa e recomeça, o que assume a sua insignificância no universo, mas tenta fazer o melhor que pode com as circunstâncias em que vive. Humano é o que se preocupa em responder sem subterfúgios à sua consciência, a única a quem deve verdadeiramente justificações. Humano é o que nem sempre é corajoso, às vezes é frágil, mas luta para ser melhor. Eu vejo poucos seres humanos e muitos super-heróis decadentes. Como diria Pessoa, ou melhor, Álvaro de Campos no seu “Poema em linha reta”:

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
[…]
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”
[…]
Vale certamente a pena ler na íntegra… “Tudo vale a pena/Se a alma não é pequena”.
Nina M.

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