Mulher para lá do tempo
Tenho
vindo a falar, nas últimas crónicas, de mulheres que deixaram a sua marca.
Hoje, Natália Correia andou a bailar na minha mente. Uma figura feminina
incontornável da cultura e também da política portuguesa.
Natália
era açoriana, nasceu em Ponta Delgada, mas mudar-se-ia para Lisboa. Era uma
intelectual que vivia para tudo o que toca o espírito: a beleza, o amor, a arte,
de forma livre e torrencial. Uma mulher de paixões que não suportava a
mediocridade e a mesquinhez, para quem a liberdade era o “valor mais estimável
da vida”, por ser indispensável à criação e esta, o “corolário de uma existência”,
palavras suas. Era absolutamente corajosa. Opunha-se, abertamente, ao regime
bafiento de Salazar e viu a sua Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e
Satírica censurada, por ofensa aos bons costumes. Provocadora, afirmava que o volume
continha “a poesia maldita dos nossos poetas”. Os exemplares da primeira
edição, com ilustrações de Cruzeiro Seixas, foram apreendidos ao cabo de três
dias e a escritora, o editor e alguns dos poetas representados foram
processados e condenados num julgamento que se arrastou ao longo de mais de
seis anos e que terminou, de forma simbólica, com alguns exemplares a serem
queimados. Os canalhas opressores sempre queimam os livros e não suportam a
poesia, porquanto esta seja a expressão mais elevada da liberdade e da criação.
Enquanto decorria o julgamento, as leituras clandestinas da antologia
continuavam, já que o editor portuense, Ribeiro de Mello, tinha planeado uma
reedição pirata, desde sempre, por prever, precisamente, a apreensão dos
livros.
Natália
tinha a coragem de não deixar nada por dizer. Dona de uma verve e de uma
presença encantatória, intimidava homens feitos com os seus remoques, fustigando-os
com palavras caso lhe desagradassem. As pequenas e maldosas coisas e pessoas deixavam-na
perdida, enquanto as grandiosas coisas e pessoas a galvanizavam. Era
exuberante, audaz, um vulcão em erupção, como a própria diz “sou da ilha das
línguas de fogo” e, portanto, é uma dessas existências raras desinteressada do
mediatismo e das convenções sociais, destinada a tornar a vida mais bela e mais
livre, para quem o bem é o belo e o mal, o feio.
Um
ser como Natália não passa modestamente pela vida… Despertava facilmente
paixões e, segundo Maria de Santa Cruz, professora de Literatura, viu alguns
jovens debaixo das mesas a beijarem-lhe os pés, apaixonados, no seu Botequim,
criado em 1971. Este espaço tornou-se a sala de visitas da poetisa, onde ela
declamava, cantava, acompanhada ao piano, e onde se conspirava e aspirava a um
Portugal novo. Quem quisesse saber o que se passava em Portugal, teria de
passar pelo Botequim, que acolhia enormes figuras da cultura e da política
portuguesas, mas também estrangeira.
Paradoxalmente,
esta mulher extraordinária, rebelde, portadora de uma lucidez implacável, mas
também caprichosa, que gostava de ocupar a cena e de ser ouvida, era a mesma
mulher frágil que não conseguia dormir sozinha em casa, inconsequente, no que
ao pragmatismo da vida diz respeito. Vivia numa bolha própria, presa às coisas
do alto, sem se importar com as minudências da vida. Natália não cozinhava, não
fazia contas, não sabia gerir uma vida… Após a morte de Alfredo Machado, com
quem foi casada trinta anos, o terceiro dos seus maridos, de certa forma, uma
figura paterna que “tomava conta dela”, acabou por ter de vender o Botequim. A
indisciplinada e mordaz Natália foi também deputada da Assembleia da República,
tantas vezes, em part-time, por não acordar a tempo das sessões da manhã. Facilmente
se incorre na injustiça de fazer uma caricatura de Natália como a mulher de
oratória fácil e inflamada, rebelde, sarcástica, exuberante, de figura voluptuosa
e sempre de boquilha, pronta a largar um chiste, mas ela foi mais do que isso:
uma intelectual corajosa, uma mulher inteligentíssima e frontal, sem medo de
dizer o que pensava numa época cinzenta, moralista, assaz hipócrita, em que a
liberdade, incluindo a de expressão, não era permitida - não teve pejo em
erguer a voz contra o regime e, mais tarde, dizer que as expetativas do povo
tinham sido goradas, o que desagradou a extrema-esquerda, nos tempos quentes do
PREC. Ora, foi precisamente essa bandeira que Natália empunhou bem alto, antes
e após 25 de abril, quer na sua poesia, que não se integra numa escola
literária, quer nas suas posições políticas, porque nunca subjugou o seu
pensamento ao partidarismo, quer na própria vida, por nunca ter vivido presa a
convenções sociais e sempre ter feito o que a sua consciência e moral lhe
ditavam. Como a própria explicou, a sua moral tem o seu fundamento na estética,
desprezando a piedade pelo miserável arrependido. Não há bem nem mal, antes o
nobre e o vil. O nobre faz o bem e este é belo, tal como o mal é feio. Acredito
que, naquela época, a tivessem visto como uma libertina, porque a sua
insubmissão, exuberância e liberdade seria uma ofensa para os que se deixam
domesticar.
Impossível
não admirar Natália! Seguramente, uma mulher à frente do seu tempo.
Nina M.
Sem comentários:
Enviar um comentário