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sábado, 28 de dezembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 401

 

Carta aos meus filhos e outros jovens

            Meus caros, o mundo atual não sofre uma evolução tecnológica, mas antes uma revolução. O mundo que conhecíamos até ao momento e a sua organização social, possivelmente, deixará de existir.

            Sabemos que há profissões que se extinguirão e outras novas serão criadas. Aquelas que estiverem ligadas às novas tecnologias e ao desenvolvimento da Inteligência Artificial terão futuro assegurado, mas haverá outras que terão um fim. O homem sempre foi capaz de se adaptar aos novos desafios que a evolução foi trazendo. A minha avó era tecedeira e, hoje, já não há tecedeiras, a menos que seja um nicho para preservação do artesanato, tal como já quase não há cesteiros, latoeiros, entre outras coisas. Estas pessoas tiveram de se adaptar a uma nova realidade, tal como uma boa parte de nós terá de fazer. No entanto, pelo que parece, a (r)evolução tem sido tão rápida que se prevê que, efetivamente, surja uma enorme quantidade de gente que perca o seu ofício e o seu modo de sobrevivência, uma vez que grande parte das tarefas poderão ser executadas por robôs e maquinismos, fruto da Inteligência Artificial. Por isso se fala na hipotética criação de uma renda mensal atribuída pelos Governos àqueles que perderão os seus empregos. Quase adivinho um sorriso e o vosso pensamento… Esta desocupação não é propriamente positiva, ao contrário do que possais imaginar, afinal, ser pago para nada fazer e poder ocupar o tempo consoante se deseja, parece ser o sonho de muitos! A questão é que sempre se ficará prisioneiro da boa vontade política e dos lobbys económicos. Se porventura houver recessões, facilmente se pode imaginar onde serão feitos os cortes: sempre no que são consideradas gorduras do estado, mesmo que essas sejam o tal rendimento global, espécie de pensão de sobrevivência. Na verdade, o que pode acontecer é haver uma minoria a produzir para uma maioria. Não há auxílios que o Estado possa oferecer sem uma economia forte e produtora. É preciso primeiro produzir para depois distribuir. Acontece o mesmo na economia doméstica: não se pode distribuir pelos filhos sem antes ter produzido, porque quem o fizer, abre falência, na certa. Ora, Um dos que veio a terreiro falar dessa possibilidade foi uma personalidade que tantos de vós admirais, mas que pouco tem de admirável: Elon Musk. Foi este senhor que veio recentemente falar do rendimento global. Acontece que este homem não inspira confiança. Não o imagino a distribuir riqueza por aqueles que não ajudaram a edificá-la, o que significa que haverá gente nas mãos do critério arbitrário de “meia-dúzia” de senhores, donos disto tudo.

            Confesso que a ideia me apavora, porque já sou velha o suficiente para vir de outro mundo e de outro ideal. Sou de uma geração em que cada um de nós sabia que quando crescesse teria de dar o seu contributo para a manutenção da organização da sociedade e, se possível, o dever de a melhorar, através do exercício da profissão e de outros atos de cidadania que cada um possa querer pôr em prática.  Por conseguinte, quando vejo vídeos de jovens youtubers que dizem aos seus pares que a sociedade está montada para serem escravos e trabalharem das nove às cinco, todos os dias, e que não o querem fazer, enfureço! A ira toma conta de mim e só me apetece distribuir chapadas a estes palonços (um palonço, no Norte, é um aparvalhado, um estúpido), porque tenho sérias dificuldades em lidar com a estupidez e a maldade. Quando estas duas se juntam, pior ainda! Lembrem-se de que para terem comida, alguém a cultivou, colheu, tratou, transformou, distribuiu, vendeu, cozinhou, até chegar aos vossos pratos. Quando adoecem e recorrem ao hospital ou clínica ou médico encontram alguém que trabalha para lá das nove às cinco, imaginem! Trabalham noites inteiras! Para comerem o pãozinho fresco, de manhã, alguém o fez e distribuiu durante a noite! Para saberem ler e escrever, alguém vos ensinou das nove às cinco, diariamente… Poderia continuar com os exemplos, porque eles são infindáveis! Portanto, os meninos gostam de ser fora do sistema, mas dentro dele! Não querem ser escravos das nove às cinco, mas com os benefícios que aqueles que o fazem vos proporcionam! Como diria o outro: vai mas é trabalhar! A organização social que temos não é perfeita, há que a melhorar, mas é imprescindível!

            Fico possessa com jovens que fazem meia-dúzia de tretas para imbecis no Youtube e vêm dizer que ganham quinhentos euros em duas horas e que são uns privilegiados… Caros jovens… A sorte e a imagem bonita não dura para sempre! Todos vós, se tiverdes sorte, ireis envelhecer e a velhice não vende! Nem mesmo no Only fans! Digo eu, que não frequento esses meandros… Portanto, se vos posso deixar alguns apontamentos em jeito de conselhos futuros são estes: todos nós temos o dever ético (digo ético em vez de moral, porque deve partir de uma construção pessoal e não de uma imposição social) de contribuir para a sociedade que nos permitiu ser aquilo que somos. Ao contrário do que possam pensar, ninguém se faz sozinho; e uma das formas de fazermos isso é através do nosso trabalho, seja ele qual for. Depois, estudem! Com a revolução tecnológica da qual comecei por falar no início da crónica, os mais preparados terão melhores hipóteses de se readaptarem ao que a nova realidade lhes pedir. Aqueles que nunca quiseram fazer nada e nada souberem fazer, ficarão à mercê da benevolência de alguns, sem poderem aspirar a melhorar as suas condições de vida… Não sei se a pseudoprofissão de youtuber ou de influencer digital para idiotas continuará a ter sucesso no novo mundo que se avizinha… Quem sabe, porque com tanta gente desocupada há que lhes dar entretenimento e pela amostra que se vê, o entretenimento oferecido é deplorável!

            Cada um é livre de seguir o caminho que escolher, evidentemente, só não esqueçam que cada opção que fazemos traz consigo uma consequência com a qual é forçoso lidar, sem desculpas nem vitimização, porque a sociedade também só me deve na medida diretamente proporcional ao que eu contribuo.

Boas entradas para todos. Votos de um feliz ano e especialmente para vós, meus filhos, duas coisas: sede bons seres humanos, em primeiro lugar e, em segundo lugar, garanti um bom plano e um bom projeto para o vosso futuro, com o qual possais retribuir o muito que já recebestes e de que continuareis a usufruir.

 

Nina M.

 

           

 

 

 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

A espera

Tem-se-me escapado a voz
A apetecer-me o silêncio
O refúgio de quem anda de cansaços
Em cansaços à espera de repouso
Um desligar deste mundo
Como quem se deita em cama de água
A flutuar numa leveza salgada

A apetecer-me o verão e o sol
E ser tempo de gelo
Nem o crepitar do fogo
Alegra ao ver o mundo
A girar ao contrário
Numa contração muscular dolorosa
É  inverno e frio e o tempo é triste

Hão de vir os rebentos
E a primavera há de triunfar.. 

sábado, 21 de dezembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 400

 

Desejos natalícios

               Cá está o número redondo pouco antes do Natal, pelo que se impõe uma crónica natalícia. Há quem não goste da época, quem apenas fale da hipocrisia que a época carrega consigo, porque de um momento para o outro, as pessoas ficam gentis e boazinhas e desejam o melhor aos outros… Há quem fale do consumismo exagerado e desnecessário, mas isso é comum ao ano todo e não só ao Natal. Há quem fale da Boa Nova que o Deus-menino trouxe ao mundo e é esta mensagem de amor que deve prevalecer, independentemente da crença ou do ateísmo de cada um, porque o amor é bem demasiado precioso para ser dispensado.

            Simbolicamente, o Natal pode significar o renascimento de cada um, se assim o desejarmos. Aproveitamos a boleia do final de ano e dos tradicionais desejos e novas intenções e assumimos o compromisso para connosco de nos tornarmos melhores pessoas, de nos comprometermos com essa ideia tão simples e tão difícil de pôr em prática. Talvez assim as batatas com o bacalhau e as rabanadas possam até saber melhor.

Eu gosto do Natal. Muito. É a festa de que mais gosto, precisamente, porque é a festa da família e da alegria. Pouco aprecio as iguarias gastronómicas. A maioria delas não as como e há muito desperdício alimentar que se deveria evitar, até porque o Natal não é sobre excesso, é sobre partilha. À medida que se cresce, vai-se atribuindo novos sentidos à época. A curiosidade ansiosa da infância cede o lugar à calma da maturidade. A alegria não tem origem nos possíveis presentes que se poderá receber, como quando se é criança, mas no encontro com os que amamos. De modo que quando os filhos insistem em querer saber o que a mãe gostaria de ter no Natal, encolho os ombros, e respondo saúde para mim e para os meus. Depois de alguma insistência e de verificarem que a mãe está cada vez mais velha e esquisita, porque não se apaixona por presentes e diz que nada lhe faz falta e que a roupa ou calçado vale mais que se compre nos saldos de janeiro, logo de seguida, em caso de necessidade, eles recorrem à única coisa que sabem que a mãe nunca diz ter em demasia: livros. De modo que lá andaram a fazer uma lista de possíveis aquisições para as coleções literárias da mãe, enquanto abanam a cabeça com um certo desgosto. Eles ainda são demasiado jovens para compreender, ainda que o mais velho já vá dizendo que o que gosta no Natal é de estarmos todos em casa da avó, na conversa e de ver o avô a pôr a garrafa de vinho do Porto a tocar. Quando chegar à minha idade, estará como eu.

Esta época não deixa, contudo, de ser ambivalente: de alegria para muitos e de tristeza para outros tantos. Não há grande alegria para quem passa o Natal só ou para quem perdeu um ente querido muito recentemente ou para quem tem familiares ou amigos próximos no hospital ou para quem vive a angústia de uma doença grave. Para esses, particularmente, desejo que o Natal possa, efetivamente, significar renascimento, que lhes traga a notícia que lhes permita reacender a luz da esperança, essa luz pequenina, que não pode deixar de brilhar, porque viver uma vida desesperançada não é viver, mas sobreviver. Assim, se puder manifestar um desejo natalício é este: Que sejais brindados com muita saúde e esperança!

Feliz Natal!

sábado, 14 de dezembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 399

 

Juízos e injustiças

               É muito fácil fazer-se juízos de valor amiúde sobre os outros e, na maioria dos casos, talvez sejam injustos. Raramente se pensa na pessoa, apenas se olha ao comportamento que analisamos e condenamos à luz dos nossos princípios e valores, à luz do que somos e como atuamos.

            Não gosto de pactuar com julgamentos mesquinhos, até porque não sou juiz, mas quantas vezes damos por nós a tecer reparos a terceiros. Bem… Se a postura e as opções alheias não interferem em nada com a minha vida, não tenho o direito de tecer considerações, precisamente, por ser a vida de outrem e não a minha.

            Já assisti, algumas vezes, a comportamentos que se alastram a pequenos grupos de boicote ou de maledicência em relação a A ou B, às vezes, por minudências, por falta de empatia, por entendermos que nós fazemos tudo bem feito e só os outros falham.  

Tenho dificuldade em lidar com gente que não sabe desvalorizar a falha do outro, percebendo que não é propositada nem de ronha e que lhe exige aquilo que não exige de si mesmo. Obviamente, falo de pequenas falhas, facilmente resolúveis, mas encaradas por alguns como crime lesa-pátria. Muitas vezes, um pequeno lembrete seria o suficiente, mas o ser humano gosta de complicar tudo e aborrecer-se por coisas que não deveriam retirar a tranquilidade a ninguém. Aprender a relativizar a verdadeira importância das coisas, priorizando o que deve ser priorizado pede maturidade. Antes de tudo, deve-se saber que o outro é diferente de si e que deve ser respeitado nessa diferença; depois, deve-se compreender que a nossa visão de mundo não coincide com a visão alheia. Há quem seja mais previdente e use de cautela, mas também há os mais impulsivos e impetuosos. Nem sempre um e outro acertam e está tudo bem. Há quem se dedique 100% ao trabalho e há quem se dedique apenas 50%. O mercado de trabalho prefere os primeiros, mas a família talvez prefira os segundos. Em última instância, que momentos guardaremos connosco antes de fecharmos definitivamente os olhos? Creio serem as lembranças dos momentos partilhados com os que amamos, com os que gostamos e não as memórias do quão fomos bons na resolução de determinado problema, na atividade profissional. Na verdade, isso perde todo o significado diante de uma turbulência maior. Esta análise não significa uma apologia à incompetência e à falta de brio. Pelo contrário, estou sempre a pedi-lo (o brio) aos filhos, exijo-o de mim quanto baste. No entanto, nunca esqueci as palavras do meu obstetra quando me obrigou a parar aos sete meses, na gravidez da Matilde, atirando-me para a cama um mês, na perspetiva de a aguentar até aos oito meses de gestação, o que aconteceu: “no caso de uma mãe perder o filho, ninguém lho devolverá, mesmo que seja a melhor profissional do mundo”. Estava certíssimo o meu médico e a Matilde, com a mãe sem se levantar da cama, lá se aguentou até aos oito meses e dispensou a incubadora. De modo que se alguém me diz que não se pode querer exigir aos outros o máximo, apenas que cumpra o mínimo exigível, se esse máximo (normalmente não remunerado) lhe retira tempo que lhe pertence, nem que seja para não fazer nada, está no seu direito recusar, porque se há algo que o homem nunca recupera é o tempo perdido.

A quantidade é inimiga da qualidade e parece-me que falta ao homem aprender a viver em função da qualidade, descartando o supérfluo e o ruído. O mundo moderno é avassalador, louco e consumidor de almas. O excesso tomou conta do ser e distinguir o essencial, no meio de tanta poluição, nem sempre é fácil. O mercado pede que sejamos ávidos. Ávidos no trabalho, ambiciosos nos projetos, ávidos na preparação do futuro dos filhos. Ávidos e rápidos quando tudo o que necessitamos é da desaceleração e da calma. Tempo para ser, para olhar e reparar, para não nos deixarmos de encantar com a luz matinal fulva ao nascer do sol de outono ou com a flor que desponta isolada, no canteiro, nem de nos entristecermos com o homem que pede esmola numa rua… Custa-me sempre negar a esmola a alguém e, no entanto, também o faço, por desconfiança, porque não se dá dinheiro para a droga nem para o álcool… Embrenho-me, tantas vezes, no que não se deve fazer, no juízo fácil e prematuro… Mea culpa

Em que parte do nosso trajeto deixámos de ver o outro?

 

Nina M.

 

 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Mudez

Escrever versos é recordar
Outro ouvir-te. Outro falar-te.
Devolver ao coração o que lhe pertence
Ele que anda, assim, tão aflito e estreito
Como a viela onde não cabe a viatura...
Não sei o que fazer com as vozes
Que me esventram a alma.
Ora dóceis ora amargas ora angústias
De quem tem a vida entre parênteses
A pairar sobre o arame do equilibrista.
O mínimo sobressalto pode ser a queda.

[Já te disse que recordar é voltar ao coração?
Esse órgão sangrento e asqueroso
que fabrica as emoções.
Um aborrecimento quando ele se faz estreito para o caos que nos governa, sabes?]


Escrevo como quem te fala baixinho
O único modo de te saber falar...
Eu, que julgava não perder vontades,
Aqui a apetecer-me o silêncio.
Talvez os versos sejam o modo possível
A minha forma de expressão mais pura
Como aquele amor que vem para resgatar
Almas desesperançadas e difíceis.
Os versos são palavras económicas
 Silenciosas como o gato pachorrento
Que se nos deita aos pés a fazer-nos
Companhia.
Os versos são o meu falar-te e o meu ouvir-te
Ainda que a mudez me tome o coração.

sábado, 7 de dezembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 398

 

Escritas e leituras

               Se me tivessem dito, quando inaugurei esta rubrica semanal, em setembro de  2016, que a iria sustentar por muito tempo (está a duas semanas de fazer um número redondo, novamente), talvez, não acreditasse e, no entanto, cá está ela, não sei por quanto tempo mais…

            Os meus filhos eram ainda pequenitos e também eles foram acompanhando a vida da rubrica. À medida que vão crescendo, são eles mesmos que me vão lembrando, se porventura lhes parecer que há algo a modificar a rotina de sábado à noite, que tenho de escrever a crónica. Certo é que estou vinculada ao texto semanal que já faz parte da minha rotina e também da rotina de alguns, pressuponho. Sei que há gente que toma o pequeno-almoço acompanhado da crónica, outros são leitores de horas tardias, assim que ela aparece disponível no mural, outros serão leitores esporádicos, outros mais ou menos regulares e outros, possivelmente, ao verem tanto texto, pulam, porque não há paciência para tal. Farão bem …

            Interrogo-me, às vezes, o que me levará ao cumprimento inequívoco da rubrica sem a ela estar vinculada por qualquer contrato ou benefício monetário. Há a questão do compromisso, obviamente. Se me dizem que me leem ao domingo de manhã, enquanto tomam o pequeno-almoço, tendo-se já tornado numa espécie de ritual, de certa forma responsabilizam-me, porque se cria uma espécie de compromisso tácito entre quem escreve e o leitor. Portanto, a recompensa do meu trabalho (que é o reconhecimento que um ou outro me vai fazendo chegar diretamente ou por interposta pessoa) é também o veneno que alimenta a engrenagem e que faz com que cumpra semanalmente o afazer, com maior ou menor vontade, mas sempre com gosto.

            Esta relação entre mim e quem lê cria vínculo e este, a obrigatoriedade de respeitar quem reserva uma parte do seu tempo para ler meia-dúzia de linhas mal-amanhadas. Ora, não posso deixar de pensar que os escritores a sério ou outras figuras públicas estão sujeitos a uma certa pressão, dado o compromisso com o público. Dou por mim a interrogar-me como o Luís Osório desenterra material para tanto postal do dia. Não é ter apenas assunto, porque a sua rubrica segue uma espécie de linha editorial, ou seja, nalguns casos dá-nos a conhecer anónimos, que pela sua história de vida, o Luís decide destacar ou figuras conhecidas do grande público e que o Luís decide agraciar, porque a maioria das rúbricas mostram o lado bom das pessoas. Há, nos postais do Luís Osório, algo de que gosto: a capacidade de mostrar heróis como nós, isto é, de destacar as virtudes e, por vezes, também defeitos comuns a tantos seres humanos, de mostrar que antes de se vencer, tantas vezes se falha e que, muitas vezes, os verdadeiros heróis são os desconhecidos que nos vai apresentando, nas histórias que nos vai narrando. Mostra a vida como é, feita de muitas dificuldades e de perseverança para as conseguir ultrapassar. Um dia destes, pergunto-lhe onde arranja tanta matéria para escrever, porque o Luís Osório tem a humildade suficiente e o respeito necessário pelo seu público para com ele interagir.

Consigo imaginar a preocupação que será ficar sem ideias para mais um romance ou medo da repetição, que deve existir… Só não vale vender a alma em prol de um público, isto é, deixar de fazer as coisas com verdade para semear fãs.

            De mim, bem… Esperai a cronicazita semanal enquanto houver paciência, vontade e imaginação para a poder apresentar, nem que seja para não dizer grande coisa, como é o caso da de hoje, mas também… Nem sempre se acerta.

 

Nina M.

sábado, 30 de novembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 397

 

A vida tal como é

               A vida não é fácil. Põe-nos à prova inúmeras vezes e puxa-nos o tapete quando menos esperamos, obrigando-nos a equilíbrios difíceis, a tropeções, quedas e recomeços. Oscila entre os píncaros das poucas conquistas e os fundos das perdas, das dores e das angústias.

               É assim quando um amor acaba, é assim quando um amor desponta, é assim quando somos abalados por eventos que nos engolem. Não poupa ninguém. Nisso, a vida é bastante democrática, cada um com os seus sofrimentos e alegrias, realizações e frustrações. Viver exige coragem, mesmo a existência mais tranquila, em algum momento, será transtornada. Uma pedra inesperada que se desloca e surge no caminho que precisamos de continuar a percorrer. Ela é cíclica e exige paciência, resiliência, pede sabedoria para que se compreenda que depois de um ciclo mau virá um ciclo bom. A voz do povo nem sempre tem razão, mas às vezes, acerta: não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe.

               Enquanto escrevo, ocorre-me a situação vivida pelo escritor Pedro Chagas Freitas. Não sou apreciadora do género que oferece aos leitores, mas tenho de lhe reconhecer a coragem. Depois de já ter perdido o pai, viu-se na situação pela qual ninguém quer passar e pela qual tantos passam: o seu filho, o seu pequeno Benjamim, juntamente com os pais, a lutar pela vida. Felizmente, após duras batalhas, três meses de internamento hospitalar, receios e ânsias tão dolorosas, o pequeno Benjamim venceu. O Pedro a aprender com o filho, todos os dias. Talvez nunca o pai tenha escrito com tanta verdade nem com tanto temor, à medida que ia dando notícias ao seu público. Num gesto bonito, o Pedro escreveu “O Rei Tigão”, um conto infantil que expõe as misérias da vida e o seu absurdo, mas onde, ainda assim, há espaço para o riso e para a amizade. Não ganhará um cêntimo. O dinheiro reverterá a favor da Unidade de Hepatologia de Coimbra, o serviço que salvou o seu menino. Fica aqui a sugestão de um presente de Natal. O Benjamim venceu, mas há tantos outros que perdem a guerra e deixam os pais inconsoláveis, na dor maior… E continuam. A vida exige coragem. Todos os dias, com os filhos sempre diante dos olhos a bailar-lhes no coração. Pais enormes! Seres gigantes! Os heróis de ontem, de hoje e de amanhã… Diz-se que cada um só pode dar o que tem para oferecer e muitos destes seres, para quem a vida foi a perder, ainda têm alma para dar. Nunca perderam a doçura no olhar. Conseguiram conservar a pureza, o olhar inocente e limpo perante a vida, mesmo depois do desespero. É tão difícil consegui-lo!

                Li um pequeno trecho de Edgar Morin a propósito da expressão sapiens, que no mínimo, significará razão, mas aponta para a sabedoria, a sapiência, acabando por ligá-la à afetividade. Deixou-me a pensar… Na verdade, a inteligência sem o afeto, sem que o amor viva no interior do homem, cria monstros. Não faltam exemplos históricos a comprová-lo, mas também há seres pródigos em ternura e talvez sejam estes os heróis que verdadeiramente merecerão ser lembrados, aqueles que resistem estoicamente às adversidades de coração limpo, como o preso político que, depois do 25 de abril, religiosamente, recebia em sua casa, às três da tarde, na véspera de Natal, o ex-PIDE que lhe impedira a fuga e que sempre lhe levava um presente. Um pedido de perdão anual, que era sempre concedido, como narra Luís Osório, nos seus Ficheiros Secretos. Nada disto seria possível se o afeto não os habitasse.

            Talvez tenhamos de passar pela vida com ternura, porque quando ela nos esmaga, só os afetos nos resgatam. Eles e a esperança, os motores que nos mantêm à superfície e nos permitem respirar, mesmo que seja com esforço, em certos momentos.     A vida é feita disto. É uma tragicomédia sem ensaio prévio, momentos de fragilidade e de misérias e também momentos de risos e de alegrias. Um pêndulo que oscila entre um ponto e outro e, nesse vaivém de que a vida é feita, resta-nos beber tudo: a ambrósia e a cicuta, quando assim tem de ser.

 

Nina M.

 

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Estranhamente

Estranhamente
Não tenho nada para te dizer
Tudo o que dissesse poderia
Ser usado contra mim
E no silêncio é contra mim que ando
Com o esqueleto ao contrário
E o vento a assobiar-me nas costelas

Há silêncios pesados como tumbas
Irrespiráveis
Como se perante a morte
Acabasse o direito à vida
Como se o adiar da eternidade
Resultasse em escárnio
Dos que a avistam e recusam

Na tragédia sobra o silêncio
O pântano do que ainda há
Mas tão indizível que se faz vazio
E tu... Preso no lodaçal... À espera
A lenta agonia do caminho da esperança
A vida oscila entre os destroços
E as  colinas do que construímos

Frágil, inútil, um cão danado...

terça-feira, 26 de novembro de 2024

Veio a noite

Veio a noite
Cobriu-me o véu de inverno
A gelar os ossos
A quebrar as esquinas da alma
[A vida é sempre a perder]
Ecoa o homem do leme

Veio o vento de madrugada
A revoar os recantos do coração
Sobram detritos nas veias
Sangue contaminado - aflição
[A vida é sempre a perder]
Ecoa o homem do leme

Veio a chuva com ímpeto
Fustigar as vidraças
Olhos inundados torrente sobre a face
Naúfrago sôfrego de vida
[A vida é sempre a perder]
Ecoa o homem do leme

E no meio da tormenta
Da procela inusitada
Há sempre um raio de luz
A iluminar a estrada
[A vida é sempre a perder]
Ecoa o homem do leme

A vida é todos os dias
O destino é viver...





sábado, 23 de novembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 396

 

               Encontros e fugas

            Três amigas que gostam de literatura e que souberem que o professor Carlos Reis iria estar em Famalicão para uma conferência sobre Camilo e Eça decidiram assistir, pois não é sempre que se tem a oportunidade de ouvir tão ilustre convidado.

            O serão prometia ser auspicioso, apesar do desdém dos “aborrescentes”, que reviram os olhos e encolhem os ombros quando sabem da atividade planeada. “A sério que vais a uma aula?! Ó mãe! Tu não és muito normal!…

            Pois muito bem… Conforme o combinado, encontramo-nos e fomos ter ao destino, com a ajuda do GPS, de maneira a estar lá um pouco antes das 21h30, hora prevista para dar início à comunicação. Seria suposto encaminharmo-nos para a Sala da Cultura Crédito Agrícola Mútuo. Era a única informação que possuíamos. Certo é que chegamos a uma dependência do banco, mas estava tudo apagado, vazio, e não havia aspeto de qualquer evento cultural ou outro nas imediações… Bem, certamente, não estamos no sítio certo… Vejo um senhor com uma certa idade a aproximar-se para entrar no café defronte. Dirijo-me a ele, em passo acelerado e pergunto-lhe se me sabia dizer onde ficava a sala da cultura onde seria realizada a conferência do professor Carlos Reis. Desconhecia, mas sugeriu que o seguisse até ao café para perguntar ao senhor Machado, que era dali e, certamente, saberia… Assim fiz. Esse nome também lhe soou estranho e acabaram por sugerir que talvez fosse a Casa das Artes, o único espaço dedicado a essas atividades culturais…

Não era o que a informação nos dizia, mas sem a morada, só nos restava ir verificar à Casa das Artes e lá, quem sabe, saberiam dizer-nos alguma coisa. Entrámos, perguntámos… Não era ali e também não sabiam da existência de tal espaço, acrescentando que há pouco um casal havia perguntado o mesmo, mas que pesquisaram na Internet… Pois claro, isso já nós tínhamos feito também… Para não desperdiçar a viagem, voltámos a inserir os dados no GPS e… Calcorreamos Famalicão. Andámos de Herodes para Pilatos um bom pedaço. Acabamos por tropeçar noutro senhor a quem perguntámos pelo destinos pretendido e que teve a amabilidade de nos levar até lá. Efetivamente, um edifício bonito, imponente, iluminado, com gente lá dentro e a porta fechada. Quais alunos que chegam atrasadíssimos a uma aula e já não têm a coragem de entrar! Lá ficamos uns segundos a olhar para o cartaz com a cara do professor a censurar-nos o atraso. Já passavam quarenta e cinco minutos da hora. A Lurdes Martins, sempre expedita, ainda antes de nos dirigirmos à casa das Artes, tentou ligar por Messenger ao professor que, obviamente, não atendeu.

            Não restou alternativa… Viemos para casa desconsoladas, com o amargo da desilusão. Mais uma vez, a Lurdes envia uma mensagem ao professor a pedir desculpa pelo telefonema, relatando que tinha andado perdida por Famalicão, com outras duas doidas, que fizeram vários trajetos até encontrar uma alma gentil que as conduzira ao local certo, mas que a porta já estava fechada e já passavam quarenta e cinco minutos da hora, pelo que tinha sido uma desilusão. Logo de seguida, obteve a resposta do douto professor a consolá-la do desfecho: valia a intenção, também ele e o organizador que o convidou se viram aflitos para dar com o local, que também desconheciam!

            Para nos vingarmos deste desfecho, hoje, foi dia de Luís Osório, em Ermesinde. Orientámos a rota e apesar de eu e a Lurdes já termos assistido ao seu Ficheiros Secretos, voltámos, porque o espetáculo nunca é exatamente igual, mas a qualidade é sempre a mesma. Algumas histórias repetem-se, mas é sempre bom recordar e ainda tivemos a oportunidade de aplaudir a Aurora Cunha e a Rosa Mota, também presentes.

            Para a próxima, temos de arranjar forma de trazer o professor Carlos Reis a Paços de Ferreira, a lugar escorreito e de fácil acesso, ele, que durante um certo intervalo de tempo, foi o homem mais procurado em Famalicão, mas que não se deixou encontrar!

 

            Nina M.

sábado, 16 de novembro de 2024

Crónica dos Maus Costumes 395

 

Vítimas do S. Martinho

            As probabilidades de alguém assistir a um jogo de vólei, no topo da bancada e levar com uma bola de hóquei a toda a velocidade, por efeito de ricochete, eram mínimas, mas as coisas acontecem e sucedeu a alguém.

É conhecida a teoria do caos e o efeito borboleta e o que vou narrar exemplifica-a. Bastaria que eu tivesse escolhido ir ver a partida ao invés de corrigir testes, que afinal ficaram por corrigir, e tudo teria sido diferente.

De banho tomado e de pijama vestido, com uns carapins quentinhos, preparava-me para me sentar quando recebo um telefonema do marido a informar que tinha sido apanhado de surpresa por bola de hóquei que lhe acertara em cheio na testa. O impacto foi de tal forma violento que, prontamente, foi chamado o INEM que o conduziu ao hospital. Uma fúria tomou conta de mim… Qual a probabilidade de alguém que assiste a uma partida de vólei, num sítio específico da bancada ser colhido por uma bola de hóquei oriunda do recinto de jogo contíguo, numa trajetória diagonal?! O miúdo que bateu a bola, no treino, desencadearia uma série de acontecimentos imprevistos, gerando o caos, tal como prevê a teoria. O marido não acabou de ver o jogo, eu não corrigi testes, voltei a vestir-me e fui ter ao hospital. Pelo menos, a filha ganhou a partida. Enquanto esperava que ela chegasse do jogo para poder sair tranquila, ele cruzou-se no hospital com vizinhança boa. Valeu-lhe a companhia até à minha chegada.

Inicialmente, a experiência foi algo kafkiana:

- Tem de preencher a ficha. É no outro balcão. Vira à esquerda, ao fundo, novamente à esquerda.

- Certo. Esquerda… Fundo… Esquerda… Boa noite, vinha aqui para…

- Já está fechado. Fecha à meia-noite! Já tenho tudo desligado.

- Foram as suas colegas que disseram que era para vir aqui…

- Ai!… Lamento, mas já fechou.

- (Não lamentas coisa nenhuma, pensei…) E então? Dirijo-me ao outro balcão, outra vez?

- Sim. Elas sabem bem que já fechamos.

- Direita, fundo, direita… Boa noite, novamente! Do outro lado já estava fechado, tudo desligado. Disseram-me que fecha à meia-noite e que vocês sabem…

- Ah! Ainda faltam dois minutos… Pronto… Eu trato disso (disse-o com ar de fastio). Fui interromper a cavaqueira. Como se chama o paciente? E o contacto da senhora?

Colocam-me a fita no pulso e deixam-me entrar… Corredores, seguranças, macas… Um corrupio de gente para trás e para a frente. Ninguém vê quem chega, ninguém vê ninguém. Tive de incomodar… desculpe, precisava de saber onde fica a cirurgia interna… Entra ali, vira à direita, depois… Já não me lembro… Corredores, gabinetes, mais corredores… Lá encontrei… Sentei-me. Levantei-me. Assisti ao curativo e aos pontos que estavam a ser dados. Novo corredor, nova sala, à espera para fazer a TAC.

Não sei qual foi o bater de asas que desencadeou tudo quanto se passou a seguir…

Aproxima-se um sujeito cinquentão bem entrado, bem-arranjado, de boina na mão e cabeça enfaixada… Sangue na parte de trás…

- Então… Eu vou ficar aqui, no meio desta gente toda? – pergunta à enfermeira – enquanto tenta manter a pose de uma certa altivez.

- Pois claro! - responde-lhe – não me diga que está com medo da Covid…

Não percebi o que lhe respondeu… Entrou a resmonear, a falar consigo mesmo, a andar um pouco torto e a entaramelar as palavras… Pegou no telemóvel. Baixinho, quase em surdina, explicava a alguém que estava no hospital, que tinha caído…

 Que grande piela, pensei! Se estivesse aqui a Dona Júlia, diria que se te destilassem o sangue, poderiam fazer vinho do porto! Calei-me. Isto… Com ébrios vale mais o silêncio. Ele tagarelava sozinho…

Feita a TAC, regresso ao anterior corredor. Há que aguardar pacientemente… Nova cadeira. Olho para o relógio… Uma da manhã… Ouço alguém que se aproxima a falar alto, animado… Nariz e braço enfaixados… Parecia um Cristo… Senta-se pesadamente na cadeira. Comentei baixinho: este é comparsa do outro. Vieram da mesma festa… O indivíduo pega no telemóvel e faz uma chamada:

- Mário Jorge! Onde estás, Mário? (falava muito alto) Eu também estou no hospital, mas não te vejo… Ó Mário! Já te pus um processo, pá! A culpa foi tua! Ria-se. Vais pagá-las! Vias!... Olha… Vou pedir 750 mil euros e vou reformar-me… Tenho este braço incapacitado para o resto da vida… Vais, vais…

Talvez o outro tenha sido chamado para fazer a TAC, porque desligou. A esta altura, já me via aflita para permanecer séria… Olhava para o fulano, que já tinha o nariz como uma batata e para a sua boa disposição, fruto do álcool, que o deixava anestesiado… Pega num cigarro.

- Olhe que o senhor não pode fumar aqui.

- Eu sei! Eu vou lá fora e olhe… Se chamarem pelo António Machado… Diga que eu morri! Ele morreu. Diga assim.

Ainda não tem dado meia-volta, apercebe-se do compincha, que saía da TAC e vinha para o mesmo corredor… Numa cena de filme, correm um para o outro…

- Ó Mário! Estás aqui! Até que enfim te encontro! Abraço daqui, empurrão dali… Ouviu-se um catrapum, pás, tás… Os doentes nas camas à espera de serem atendidos a rirem-se como perdidos… O Mário e o António enrolados, em cima das camas rolantes e o enfermeiro, aflito: “então, meus senhores! Isso é para ficar quieto! Ninguém mexe!” Quais adolescentes de idade avançada!

Lá vêm os dois esmoucados abraçados, corredor fora, enquanto o Mário Jorge proclamava para quem o quisesse ouvir que eram vítimas do S. Martinho! Esse malvado!… Param junto de uma senhora que estava com dor, coitada… Ela não se ria… E diz o António: “esta está pior do que eu, olha bem… Coitada… Vai morrer… Amanhã…”

 Por esta altura, eu já tinha perdido a compostura e só me lembrava da crónica que escreveria…

Foi chamado o António Machado. Senta-se o Mário Jorge ao meu lado… Ai! O meu lado diabólico a querer soltar-se e a querer pormenores da história… Não preciso. Mete conversa…

- Que grande livro! – diz-me - Isso… Tem aí livro para dois dias inteiros neste hospital! (Continuava a entaramelar-se todo e, às vezes, não o percebia…)

- Pois tenho - assenti. Tenho tempo.

- Tem alguma coisa? – pergunta-me. Eu, não. E o senhor? Espetou-se aos tombos?

- Pois foi… Eu só queria divertir-me… Isto é o hospital de Penafiel, não é?

- É.

- Sabe dizer-me como posso fugir daqui? Eu já tentei, mas não dou com a saída… Foi a polícia que me trouxe…

- Não pode sair - disse-lhe a sorrir - Agora, tem de esperar pelo resultado da TAC que fez.

- Ó! Eu não queria estar aqui… Não tenho nada… Só tenho aqui uma coisita… Foi a polícia que me trouxe… Eu não gosto de violência nem de incomodar…

- O Mário Jorge levanta-se, entretanto, é chamado novamente. Em cima de uma cadeira, fica o telemóvel, a carteira e o tabaco do compincha António. O Mário liga… liga… Ninguém atende…

02h30. Finalmente, alta! Continuava a rir-me dos episódios e só me lembrava do velho homem de casaco coçado, do conto do Mário Dionísio, que entra no elétrico à pinha e, descontraidamente, começa a assobiar com um à-vontade que deixa os passageiros, inicialmente, desconfortáveis, exceto uma criança e a sua mãe, mas ao longo do trajeto, a descontração instala-se.

Esta dupla de marretas - Mário Jorge e António - tiveram esse efeito nos corredores inóspitos do hospital. O bom vinho de ambos arrancou algumas gargalhadas. A mim, ajudaram-me a passar o tempo. Não li nada, é certo, mas ri bastante. Hoje, ao acordar, pensei nos dois desgraçados e nas dores que deveriam estar a sentir, principalmente, o António, de nariz empanzinado… Ontem, nada lhes doía! Pudera! A anestesia do álcool valeu-lhes… Eram as vítimas alegres do S. Martinho, mas hoje, coitaditos… Não devem estar assim tão felizes…

Penso cá com os meus botões que os homens… Nãaaa… tanto faz terem 16 como cinquenta… Não podem sair sem mulheres, em grupo! Dá-lhes para isto… Malham no vinho e depois esmoucam-se todos!

Que bater de asas terá causado o caos aos amigalhaços foi o que não descobri. Porém, ganhei uma crónica. Estou a pensar pedir a reserva de uma cadeira nos corredores de um hospital qualquer. Tenho a impressão que lá não devem faltar histórias para contar!

 

Nina M.

 

 

 

sábado, 9 de novembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 394

 

Vivências e processos

O meu aborrescente decidiu lembrar-me do meu afazer habitual de sábado à noite, ao jantar. “Tens de escrever a tua crónica”, alerta-me. Respondo que sim, mas que ainda nem sabia sobre o que ia escrever… É então que do alto da sua sapiência me diz:

- Ai, ainda não sabes?! Olha, ficas a saber que se queres ser bem-sucedida nisso, tens de fazer um plano… Não é assim… Os outros fazem planos, com tempo…

Estive dois segundos boquiaberta para lhe responder de seguida que… Sim senhor… Vindo dele era um conselho absolutamente extraordinário!… Não fosse o ditado “olha para o que eu digo e não para o que eu faço”, até estaria muito certo…

- Ficas a saber – responde - que eu faço planos para os meus dias… Só que às vezes eles correm mal… por isso detesto quando já tenho tudo pensado no que vou fazer e vocês me vêm inquietar para eu fazer isto ou aquilo…

- Meu menino, digo-lhe, foram muitos anos a ter de te responsabilizar… Como não partilhas os teus planos e não sabemos para o que te vai dar, estamos sempre a alertar-te… Não vás esquecer do que tens de fazer…

A conversa ficou por aqui e como me manda escrever, mas não lê uma linha, nem imagina as vezes que é referenciado… Acabei por lhe dizer que se ele desistir da ideia de engenharia informática pode sempre enveredar por um caminho na comédia…  Porém, ficava absolutamente mais tranquila, porque, finalmente, o meu filho já faz planos, mesmo que saiam gorados, de vez em quando…

A irmã, mais metódica e organizada, olha para ele, encolhe os ombros e abana a cabeça como quem diz que o irmão não tem remédio… Planos já faz ela há muito… Quando não lhe diz que não fosse a idade e o conhecimento das matérias, sente que está mais preparada para ir para a Universidade do que ele, apontando-lhe tudo o que já é capaz de cozinhar…

Eu, que pari estes dois seres tão distintos, vou olhando para ambos com o mesmo amor, a tentar descortinar o que sairá dali. Ela mais pragmática, ansiosa, mexida e briosa; ele mais relaxado, com um sentido de humor peculiar, sem angústias e sem pressas… Ela diz não querer medicina, mas quer algo na área da saúde; ele, para já fala na engenharia informática, mas tem saídas mais artísticas…

No outro dia, fez questão de me dizer que tinha feito uma boa ação que me teria deixado orgulhosa… Já nem me lembro do que foi… Sei que foi prestativo ou que ajudou alguém e lá lhe respondi que esperava que os ensinamentos colhessem os seus frutos…

Olho-os. Ela, sempre mais adulta e despachada. Desde sempre. A Matilde é a menina que aos seis ou sete anos era capaz de preparar o seu pequeno-almoço e o lanche para a escola. A menina que assume as suas responsabilidades e que detesta falhar. Ele, o que se esquecia de todos os recados… Ele… agora mais crescido, mais responsável, mas com tanto para amadurecer ainda…

Eu, aqui, a ampará-los para que possam ser o que quiserem, para voarem em direção ao seu destino, de asa aberta para os receber a cada regresso a casa.

Nina M.

 

 

Porvir

Será que ainda me verás no futuro?

Mesmo velha e um pouco engelhada

Ainda procurarás o encantamento

No meu olhar?...

Mais pardo quem sabe...

Menos esperançoso no brilho...

Será que ainda nos reconheceremos assim

Imperfeitos e tão perfeitos para o outro

Ainda nos veremos os mesmos

Ou seremos estranhos enfiados

Num corpo usado e gasto e velho...

Ainda me contarás histórias 

E dirás: "sempre gostas de histórias"...

Ou me pedirás ainda restos de escrita por ler...

Seremos ainda amantes na confidência 

De um ombro dado depois do amor

E restará ainda o olhar aceso que

Poisa sobre o fulvo amanhecer outonal

Ou sobre o rosáceo céu a despedir-se do sol...

Vejo sempre a partida

Como um ocaso que se tarda de tão belo

[E as minhas mãos vazias do que não tive]

Um desejo de repouso como quem cansa da vida 

e se despede com atrevida elegância

Uma figura ao longe que se afasta devagarinho... 

sem dor nem espanto...

Como quem entra naturalmente em casa

Como quem pisa um paraíso qualquer 

 

 






quarta-feira, 6 de novembro de 2024

O pêndulo


Oscila a vida
Como um pêndulo
Num perpétuo movimento
Num balancear seguro

Ambivalente
Entre a alegria e a tristeza
A paz e a angústia
O desejo e o tédio
O ser e o não ser

A vida é baloiço de jardim
Sob o sol e a chuva
É aquilo que existe
Entre Deus e mim

sábado, 2 de novembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 393

 

Diferenças e convivência

               A convivência e coabitação não são fáceis. Há ajustes, tolerância e cedências necessárias perante visões de mundo diferentes e personalidades distintas. Há personalidades que não se ajustam, por mais que as pessoas gostem umas das outras, o que pode dificultar uma convivência sadia.

            Para que duas pessoas possam coabitar ou conviver sadiamente é necessário que, no mínimo, tenham valores e princípios alinhados e gostos semelhantes. Se for para ser amor, então, ainda são necessários mais um pozinhos mágicos de mais alguma, mas isto é o mínimo exigível. A famosa teoria de que os opostos se atraem até pode ser verdadeira, inicialmente, e ter muita piada, mas em algum momento redundará em fracasso. Com o tempo, os opostos afastam-se. Se não é fácil manter a proximidade com quem, de alguma forma, nos identificamos, fará com aqueles com quem estamos nos antípodas!

            Evidentemente, há diferenças superáveis e diferenças insanáveis. Os valores e princípios pelos quais orientamos a nossa caminhada e nos quais assentamos a nossa ética pertencem ao domínio do que não pode ser negociado. Se para alguém o valor da honestidade e da integridade for indispensável, por exemplo, não conseguirá permanecer ao lado de alguém que seja mais flexível e que use da consciência da manga larga em certas situações. Não compactuará com estratégias menos lícitas para alcançar os objetivos pretendidos. Se alguém pauta a sua vida por valores humanistas, não suportará a convivência com alguém muito moralista, mas pouco tolerante e discricionário. Nestes casos, talvez se esteja perante diferenças insanáveis. No entanto, também há as diferenças superáveis, que dizem respeito à personalidade, mas que se pode, com vontade, ultrapassar. Se uma pessoa gosta de dormir até tarde e a outra de se levantar cedo, basta que se respeitem para que nem um nem outro se incomodem mutuamente. Há quem diga que os relacionamentos terminam pelas pequenas coisas e não pelas maiores… Bem, eu entendo que podem terminar por uma infinidade de fatores e também pelas pequenas, porque a convivência é feita de irritações que se vão tolerando: as pequenas idiossincrasias de cada um que cansam ao cabo de uns anos e irritam sempre, mas que estão presentes, porque as pessoas são o que são, inconscientemente e, mesmo que façam um esforço, no sentido de minimizar o que irrita o outro, haverá sempre momentos em que o que se é se torna mais forte. Quando há um comportamento padrão que nos enerva, significa que é da natureza da pessoa e, provavelmente, tenderá a ser repetido, mesmo que seja alguém comprometido e esforçado.

            Perante isto, confrontando-nos com um comportamento ou maneira de ser que nos desagrada especialmente, só há duas atitudes racionais que se pode tomar e uma absolutamente irracional. Pode-se escolher o afastamento, apesar do amor ou da amizade por se entender que aquele tipo de postura só causa tristeza e mal-estar, um desconforto com o qual não se é capaz de lidar e uma angústia à qual se tem de pôr fim, a bem da sanidade mental. Isto é uma escolha racional. Por outro lado, a pessoa pode entender que o comportamento a incomoda verdadeiramente, mas que respeita o outro e ficará ao seu lado, esperando ver um esforço para minimizar o problema, não deixando de a apoiar e de estar ao seu lado. É também uma escolha racional e válida e que deve ser respeitada. A irracionalidade está, porém, na escolha de ficar, mas com o propósito de querer mudar o outro à força, por coação, manipulação, violência, seja o que for… Acontece que quem o faz torna-se numa pessoa tóxica, que exige do outro o preenchimento das suas necessidades e vazios. Ninguém é obrigado a suprir as necessidades do outro. Esse é um papel que cumpre a cada um em relação a si mesmo e não é justo que se queira mudar alguém, apenas para ver as suas necessidades atendidas. Todos temos o direito de não aceitar ou de não tolerar certos comportamentos, mas ninguém tem o direito de manipular nem de tentar colonizar o outro, tentar transformá-lo no que não é, na base da discussão e da força. O máximo que se pode fazer é tentar chegar a um entendimento confortável para ambos, se houver razoabilidade.

            Há pessoas matinais e pessoas notívagas. Há quem acorde a cantar de manhã e quem não suporte a cantoria nem nenhum barulho matinal. Há que respeitar essas personalidades que acompanham as pessoas ao longo da vida. Não adianta querer obrigar aquele que gosta de prolongar um pouco mais o sono a levantar-se cedo nem obrigar o que gosta de se levantar a permanecer na cama. Não se pode obrigar o outro a ser o que não é por mero capricho ou forma de encarar o mundo. Não adianta pedir ao ansioso para ter calma nem ao calmo para se apressar. Há que respeitar os tempos de cada um, desde que cada um cumpra com as suas obrigações nos prazos necessários.

            Enfim, sem estes reajustamentos e adaptações, a vida em sociedade torna-se infernal e é preciso que nos lembremos sempre de que o outro tem direito a ser quem é e o máximo que podemos fazer é escolher entre ficar, com uma dose extra de paciência para gerir as diferenças ou partir se as considerarmos insanáveis. Só não vale a pena querer mudar um comportamento padrão, porque, no final, ninguém muda ninguém e o desgaste é tremendo para ambos.

            Há, por isso, quem afirme que o amor é uma escolha diária e, a partir de uma certa altura, percebe-se claramente que também é isso.

 

Nina M.

           

 

sábado, 26 de outubro de 2024

Crónica de Maus Costumes 392

 

Memórias musicais

 

               Esta semana, não trago à cena nenhuma mulher que se tenha destacado na sociedade nem falarei dos incidentes da Cova da Moura, dos problemas sociais que afetam o bairro desde sempre, da criminalidade a ele associada, da morte infeliz do habitante, do homicídio perpetrado pelo agente, que acredito ter sido fruto de uma reação precipitada, no meio de acontecimentos que elevam terrivelmente os níveis de ansiedade. Há horas do Diabo e aquela foi uma delas…

Lamento pesarosamente os ferimentos do motorista do autocarro, que apenas fazia o seu trabalho, e ficará com marcas para a vida. Lamento a situação em que se encontra o agente, porque há erros que saem caros, mesmo que possam existir circunstâncias atenuantes… O inquérito apurará os factos. Com ou sem negligência, a sua carreira termina aqui. Lamento a morte de um ser humano, lamento a destruição e os danos causados a terceiros que ficam sem as suas viaturas e com prejuízos tremendos… Sabe Deus da vida de cada um, lamento pelos habitantes do bairro, por aquelas pessoas honestas e trabalhadoras que se veem a braços com esta violência e apenas querem paz. Indigno-me com o aproveitamento político que alguns abutres tentam retirar de toda esta infelicidade, sem pudor e com uma desfaçatez torpe… Mas não quero falar sobre isto…

Morreu Marco Paulo, um ícone da música ligeira portuguesa. Confesso nunca ter sido propriamente uma fã, mas também confesso que sei muitas das suas letras. O cantor era idolatrado por muitos portugueses e sabia ser grato por todo o carinho com que o tratavam. Lutou variadas vezes contra o cancro. Saiu vencedor nas anteriores, mas desta vez, o mal foi mais forte. Ao que parece, terá partido em paz, ao lado dos que amava.

O artista traz-me memórias de infância que explicam o motivo de saber de cor muitos trechos das suas letras, associadas a recordações felizes. Ouvir Marco Paulo significava passeata em família. Havia o carro onde a canalha se misturava. Neste caso, eu passava para o carro da minha madrinha e fazia a viagem com os meus primos… Eis que o pai deles, já era da praxe, sacava da cassete do marco Paulo e aquilo era música até enjoar… era a “Anita”, o “Ninguém, ninguém”, “os dois amores…” Quando acabava o lado B, era ejetar e pimba: lado A novamente!

E a viagem lá se ia fazendo com o pai dos rapazes a gabar a voz do Marco, a dizer que era o melhor cantor português e nós a desdenhar um pouco daquilo e a achar que era música para velhos… O problema era que no carro do meu pai não era melhor… Ou levávamos com o Fado do Frei Hermano da Câmara ou com a banda musical do Marco de Canaveses, onde o meu pai tinha sido músico… Certo é que não me lembro das letras do frei Hermano da Câmara… Ao contar isto aos meus filhos, a propósito da notícia do cantor, o Rodrigo sai-se com esta: “e olha que a banda não é assim tão má, porque eu também ouvi essa cassete toda… O avô punha-nos no carro a ouvir a banda, quando éramos pequenos!”

O meu filho com três anitos sabia as músicas do Padre Borga, porque a tia punha-lhe também a cassete e ele cantava aquilo tudo! Certa altura, na rua de Santa Catarina, ele cantava como se não houvesse amanhã! Sorte a dele que é afinado… Se saísse à mãe estaria desgraçado… Não me lembrei, na altura, de lhe colocar um chapeuzinho, porque os transeuntes riam-se à brava com ele!

Certo é que o Marco Paulo fará parte das memórias de muitos. Li um texto de Rui Couceiro, o editor da Lello e também escritor, autor do “Morro da Pena Ventosa”. Narrava a experiência de ter ido a um concerto do artista no Coliseu e o quanto se divertiu. Bem, eu nunca fui a um concerto do Marco, mas dizem os que foram que energia não lhe faltava e nem entrega ao seu público.

Goste-se ou não do estilo, certo é que Marco Paulo inscreveu o seu nome no panorama musical português e, na verdade, tinha uma voz inconfundível.

Descanse em Paz!

 

Nina M.

 

           

sábado, 19 de outubro de 2024

Crónica de Maus Costumes 391

 Mulher para lá do tempo

               Tenho vindo a falar, nas últimas crónicas, de mulheres que deixaram a sua marca. Hoje, Natália Correia andou a bailar na minha mente. Uma figura feminina incontornável da cultura e também da política portuguesa.

               Natália era açoriana, nasceu em Ponta Delgada, mas mudar-se-ia para Lisboa. Era uma intelectual que vivia para tudo o que toca o espírito: a beleza, o amor, a arte, de forma livre e torrencial. Uma mulher de paixões que não suportava a mediocridade e a mesquinhez, para quem a liberdade era o “valor mais estimável da vida”, por ser indispensável à criação e esta, o “corolário de uma existência”, palavras suas. Era absolutamente corajosa. Opunha-se, abertamente, ao regime bafiento de Salazar e viu a sua Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica censurada, por ofensa aos bons costumes. Provocadora, afirmava que o volume continha “a poesia maldita dos nossos poetas”. Os exemplares da primeira edição, com ilustrações de Cruzeiro Seixas, foram apreendidos ao cabo de três dias e a escritora, o editor e alguns dos poetas representados foram processados e condenados num julgamento que se arrastou ao longo de mais de seis anos e que terminou, de forma simbólica, com alguns exemplares a serem queimados. Os canalhas opressores sempre queimam os livros e não suportam a poesia, porquanto esta seja a expressão mais elevada da liberdade e da criação. Enquanto decorria o julgamento, as leituras clandestinas da antologia continuavam, já que o editor portuense, Ribeiro de Mello, tinha planeado uma reedição pirata, desde sempre, por prever, precisamente, a apreensão dos livros.

               Natália tinha a coragem de não deixar nada por dizer. Dona de uma verve e de uma presença encantatória, intimidava homens feitos com os seus remoques, fustigando-os com palavras caso lhe desagradassem. As pequenas e maldosas coisas e pessoas deixavam-na perdida, enquanto as grandiosas coisas e pessoas a galvanizavam. Era exuberante, audaz, um vulcão em erupção, como a própria diz “sou da ilha das línguas de fogo” e, portanto, é uma dessas existências raras desinteressada do mediatismo e das convenções sociais, destinada a tornar a vida mais bela e mais livre, para quem o bem é o belo e o mal, o feio.

               Um ser como Natália não passa modestamente pela vida… Despertava facilmente paixões e, segundo Maria de Santa Cruz, professora de Literatura, viu alguns jovens debaixo das mesas a beijarem-lhe os pés, apaixonados, no seu Botequim, criado em 1971. Este espaço tornou-se a sala de visitas da poetisa, onde ela declamava, cantava, acompanhada ao piano, e onde se conspirava e aspirava a um Portugal novo. Quem quisesse saber o que se passava em Portugal, teria de passar pelo Botequim, que acolhia enormes figuras da cultura e da política portuguesas, mas também estrangeira.

               Paradoxalmente, esta mulher extraordinária, rebelde, portadora de uma lucidez implacável, mas também caprichosa, que gostava de ocupar a cena e de ser ouvida, era a mesma mulher frágil que não conseguia dormir sozinha em casa, inconsequente, no que ao pragmatismo da vida diz respeito. Vivia numa bolha própria, presa às coisas do alto, sem se importar com as minudências da vida. Natália não cozinhava, não fazia contas, não sabia gerir uma vida… Após a morte de Alfredo Machado, com quem foi casada trinta anos, o terceiro dos seus maridos, de certa forma, uma figura paterna que “tomava conta dela”, acabou por ter de vender o Botequim. A indisciplinada e mordaz Natália foi também deputada da Assembleia da República, tantas vezes, em part-time, por não acordar a tempo das sessões da manhã. Facilmente se incorre na injustiça de fazer uma caricatura de Natália como a mulher de oratória fácil e inflamada, rebelde, sarcástica, exuberante, de figura voluptuosa e sempre de boquilha, pronta a largar um chiste, mas ela foi mais do que isso: uma intelectual corajosa, uma mulher inteligentíssima e frontal, sem medo de dizer o que pensava numa época cinzenta, moralista, assaz hipócrita, em que a liberdade, incluindo a de expressão, não era permitida - não teve pejo em erguer a voz contra o regime e, mais tarde, dizer que as expetativas do povo tinham sido goradas, o que desagradou a extrema-esquerda, nos tempos quentes do PREC. Ora, foi precisamente essa bandeira que Natália empunhou bem alto, antes e após 25 de abril, quer na sua poesia, que não se integra numa escola literária, quer nas suas posições políticas, porque nunca subjugou o seu pensamento ao partidarismo, quer na própria vida, por nunca ter vivido presa a convenções sociais e sempre ter feito o que a sua consciência e moral lhe ditavam. Como a própria explicou, a sua moral tem o seu fundamento na estética, desprezando a piedade pelo miserável arrependido. Não há bem nem mal, antes o nobre e o vil. O nobre faz o bem e este é belo, tal como o mal é feio. Acredito que, naquela época, a tivessem visto como uma libertina, porque a sua insubmissão, exuberância e liberdade seria uma ofensa para os que se deixam domesticar.

               Impossível não admirar Natália! Seguramente, uma mulher à frente do seu tempo.

 

Nina M.

              

 

           

 

 

 

           

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Poética

A poesia não se faz abstrata
Difusa, amorfa
Prolixa nos sentidos
A poesia é exata

A saudade é uma caixa vazia
Esquecida a um canto

A melancolia é um cão de olhos tristes
Após o ralhete do dono

A ira, a folha amarrotada
Por via do poema que não saiu

O amor... Ah o amor...
Limonada gelada em dia quente

A tristeza, lágrimas aflitas
A salgar o rosto

A angústia, nó no estômago
Por desatar

A alegria, sol e mar
Sobre a pele

O luto... O deserto
O nó, as lágrimas, o cão triste

A felicidade... A chuva
necessária que não caiu...