A perda da inocência
Não sei se é possível
a alguém fixar o momento concreto da perda da inocência. Não me refiro ao
início da atividade sexual. O que não faltarão no mundo são jovens inocentes
com vida sexual ativa.
Falo
da queda do anjo, da perceção espantada e dolorosa de que afinal o mundo dói e
que nós mesmos, enquanto realidade dele, somos sempre algures a mágoa e a
lâmina. Falo das angústias menores que não retiram o sono a ninguém. As
maiores, as que preocupam genuinamente são, não raras vezes, longínquas: a
fome, a injustiça, a corrupção, a discriminação, as meninas mutiladas e de
seios espalmados à força para não serem as culpadas de erguer a besta do homem
que as tomam à força como objetos ou seres menores sem direito a decisão… Tudo
isto acontece ainda no mundo evoluído do século XXI e parece não gerar espanto.
Nem poderia, pois se a humanidade é um contínuo derramamento de sangue… As
agruras do mundo e o seu pessimismo são-nos ensinados desde os cueiros…
- Come, Sónia! Não vês tantos meninos
em África a passarem tanta fome e tu nunca queres comer?!
- Podes dar-lhes a minha comida,
então. Eu não me importo. – respondia invariavelmente, muito séria, como se
enviar um prato de batata cozida esmagada com ovo e peixe (que ainda hoje não
aprecio e nem doente confeciono) fosse simples de enviar para os meninos
esfomeados… Porém, talvez acreditasse que fosse mesmo possível fazê-lo.
Enquanto não comia, a minha avó Matilde subornava-me com o copo de refresco de
vinho (água pintalgada de vinho branco e açúcar) que só obtinha autorização
para beber no fim de engolir a pasta amarelada disposta nos prato dos
leõezinhos, aquele que levava água quente no depósito para evitar que a comida
arrefecesse com a espera… E vejo-te, Glória, com esse mesmo prato na mão, na
bouça em frente da minha casa, no penedo grande, junto à poça, onde sempre
havia girinos, pacientemente, a dizer-me:
- Anda, Sonita, abre lá a boca, mais
uma colher…
E o
mesmo argumento te saía, o dos meninos que querem e não têm comida… E eu abria
lentamente (dentro de uma saia de peito, de bombazina azul marinho com dois
patinhos brancos a segurar as alças…) devagar, como quem gosta de mastigar bem,
mas afinal era só falta de apetite. Nunca sentia fome, na minha infância, e
também não recordo o momento em que o prazer do alimento surgiu…
Certo
é que a fome do mundo e as guerras nos são ensinadas cedo. Talvez, por isso, a
sua existência não espante. Não. Queria lembrar o momento exato em que pela
primeira vez nos quebram o coração, a nós, seres amados e protegidos pelos pais
e pela família, que desconhecem a dor! Só assim perdemos o olhar virginal e vamos
aprendendo a dor de viver. Não me lembro das maldadezitas de catraios. Julgo
terem sido insignificantes, dado o apurado sentido de justiça que sempre tive.
Nem lembro do momento exato em que a inocência se perdeu e alguns outros
passaram a ser desilusão. Não que fossem eles os responsáveis, porque os
iludidos somos sempre nós. Os outros não podem nem devem moldar-se às nossas
necessidades. Devem ser quem são. É o que se lhes exige, portanto, o erro é
nosso. Porém, é nessa dialética difícil com o outro que aprendemos a mágoa e o
pessimismo. A alegria também, é certo. Talvez tenha sido um processo
progressivo, misturado de saber empírico e do saber dos livros que narram
outras vidas. Estes deixam tudo a nu: as pequenas misérias morais pessoais e
também as grandes misérias do mundo. Queria lembrar e não sou capaz. Sei, porém,
que aos vinte e cinco apanhei a síndrome de desencanto do meu aniversário, por culpa
do Mário Sá-Carneiro e, por ironia, celebro-o por arrastamento do meu pequeno. É
sempre dele, nunca meu. Especialmente, se a festividade é desfasada da verdadeira
data de nascimento…
Tenho
a mania de que até o meu nascimento só a mim diz respeito. Prefiro as saudações
à distância, do que a exaltação próxima. Há um pudor inexplicável incomodativo,
como se a idade já não o justificasse. Sei o momento deste desencanto, mas não sei
precisar a da perda da inocência, mas sei que com ela, de algum modo, nasceu em
mim a poesia.
Nina M.
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