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sábado, 6 de novembro de 2021

Crónica de Maus Costumes 253

 A perda da inocência

         Não sei se é possível a alguém fixar o momento concreto da perda da inocência. Não me refiro ao início da atividade sexual. O que não faltarão no mundo são jovens inocentes com vida sexual ativa.

Falo da queda do anjo, da perceção espantada e dolorosa de que afinal o mundo dói e que nós mesmos, enquanto realidade dele, somos sempre algures a mágoa e a lâmina. Falo das angústias menores que não retiram o sono a ninguém. As maiores, as que preocupam genuinamente são, não raras vezes, longínquas: a fome, a injustiça, a corrupção, a discriminação, as meninas mutiladas e de seios espalmados à força para não serem as culpadas de erguer a besta do homem que as tomam à força como objetos ou seres menores sem direito a decisão… Tudo isto acontece ainda no mundo evoluído do século XXI e parece não gerar espanto. Nem poderia, pois se a humanidade é um contínuo derramamento de sangue… As agruras do mundo e o seu pessimismo são-nos ensinados desde os cueiros…

                - Come, Sónia! Não vês tantos meninos em África a passarem tanta fome e tu nunca queres comer?!

            - Podes dar-lhes a minha comida, então. Eu não me importo. – respondia invariavelmente, muito séria, como se enviar um prato de batata cozida esmagada com ovo e peixe (que ainda hoje não aprecio e nem doente confeciono) fosse simples de enviar para os meninos esfomeados… Porém, talvez acreditasse que fosse mesmo possível fazê-lo. Enquanto não comia, a minha avó Matilde subornava-me com o copo de refresco de vinho (água pintalgada de vinho branco e açúcar) que só obtinha autorização para beber no fim de engolir a pasta amarelada disposta nos prato dos leõezinhos, aquele que levava água quente no depósito para evitar que a comida arrefecesse com a espera… E vejo-te, Glória, com esse mesmo prato na mão, na bouça em frente da minha casa, no penedo grande, junto à poça, onde sempre havia girinos, pacientemente, a dizer-me:

            - Anda, Sonita, abre lá a boca, mais uma colher…

E o mesmo argumento te saía, o dos meninos que querem e não têm comida… E eu abria lentamente (dentro de uma saia de peito, de bombazina azul marinho com dois patinhos brancos a segurar as alças…) devagar, como quem gosta de mastigar bem, mas afinal era só falta de apetite. Nunca sentia fome, na minha infância, e também não recordo o momento em que o prazer do alimento surgiu…

Certo é que a fome do mundo e as guerras nos são ensinadas cedo. Talvez, por isso, a sua existência não espante. Não. Queria lembrar o momento exato em que pela primeira vez nos quebram o coração, a nós, seres amados e protegidos pelos pais e pela família, que desconhecem a dor! Só assim perdemos o olhar virginal e vamos aprendendo a dor de viver. Não me lembro das maldadezitas de catraios. Julgo terem sido insignificantes, dado o apurado sentido de justiça que sempre tive. Nem lembro do momento exato em que a inocência se perdeu e alguns outros passaram a ser desilusão. Não que fossem eles os responsáveis, porque os iludidos somos sempre nós. Os outros não podem nem devem moldar-se às nossas necessidades. Devem ser quem são. É o que se lhes exige, portanto, o erro é nosso. Porém, é nessa dialética difícil com o outro que aprendemos a mágoa e o pessimismo. A alegria também, é certo. Talvez tenha sido um processo progressivo, misturado de saber empírico e do saber dos livros que narram outras vidas. Estes deixam tudo a nu: as pequenas misérias morais pessoais e também as grandes misérias do mundo. Queria lembrar e não sou capaz. Sei, porém, que aos vinte e cinco apanhei a síndrome de desencanto do meu aniversário, por culpa do Mário Sá-Carneiro e, por ironia, celebro-o por arrastamento do meu pequeno. É sempre dele, nunca meu. Especialmente, se a festividade é desfasada da verdadeira data de nascimento…

Tenho a mania de que até o meu nascimento só a mim diz respeito. Prefiro as saudações à distância, do que a exaltação próxima. Há um pudor inexplicável incomodativo, como se a idade já não o justificasse. Sei o momento deste desencanto, mas não sei precisar a da perda da inocência, mas sei que com ela, de algum modo, nasceu em mim a poesia.

 

Nina M.

 

 

 

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