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sábado, 30 de outubro de 2021

Crónica de Maus Costumes 252

 

Alienação parental

                Sei que uma das crónicas mais ternas que li de Lobo Antunes falava da sua relação difícil com o pai. Um pai austero, cirurgião, médico que sente nas suas mãos a vida e a morte dos seus pacientes. Um pai exigente e que queria um percurso de sucesso para os filhos, mas um pai de poucas falas, severo, a quem não era fácil agradar e homem de poucos mimos.

                Calhou a Lobo Antunes a rebeldia suficiente para irritar o pai e talvez se sentir pouco amado. Aliás, nas suas crónicas, os desabafos em relação à falta de carinho dos pais são vários. Valia-lhe os avós e umas tias que lhe ensinavam os mistérios dos afetos. Pressinto nessas crónicas uma necessidade urgente de ouvir o que nunca ouviu do seu progenitor. Ouvir-lhe dizer que sentia orgulho nele e no seu trajeto. Ouvi-lo dizer que mesmo não tendo sido um aluno brilhante de medicina, por só se interessar pela escrita, acabando por trocar a psiquiatria pela ofício de escritor, afinal não se tinha saído mal. Lobo Antunes até lhe adivinha a satisfação, mas nunca ouviu as palavras que o confirmassem. Ficamos com a sensação de que ainda hoje, já velho, continua a perseguir a aprovação e a admiração paternas. Um vazio que ficou por colmatar. Naquele tempo, na primeira metade do século XX, a vida era difícil. A preocupação com o sustento da casa, em tempo de miséria, não deixava espaço para ternuras e o relacionamento entre pais e filhos pautava-se por uma distância glacial, um relacionamento fundamentado mais na autoridade do que no amor. Os pais faziam-se respeitar e os filhos temiam os seus progenitores. Hoje, a proximidade é maior e ainda bem. O problema começa a ser o inverso: a existência de pais que confundem papéis, incapazes de fazer prevalecer a sua autoridade e de estabelecer limites comportamentais, gerando crianças e futuros adultos com pouca tolerância à frustração. Infelizmente, para conseguirmos viver, precisamos de saber lidar com os nossos fracassos e com as adversidades que a vida nos vai oferecendo ao longo do nosso percurso. Apesar disso, creio que vale mais pecar por excesso de amor do que por falta dele.

                A crueza parental (que existe) deixa cicatrizes profundas naqueles que a sofreram. Uma criança que cresce com a falta de amor e de carinho, com a falta de compreensão pelas suas feridas, torna-se, não raras vezes, um adulto inseguro, com baixa autoestima e com uma necessidade constante de se sentir amparado por alguém. Cairá facilmente nas mãos do que primeiramente lhe abrir os braços para depois o maltratar, repetindo-se o padrão. A pessoa vai assumindo uma culpa que não tem, sentindo-se um incapaz, mesmo que, na verdade, seja um vencedor, dadas as adversidades ultrapassadas. Conheço casos destes, de gente adulta que não se consegue valorizar, porque os seus progenitores nunca foram capazes de lhes demonstrar o afeto. Talvez gente sofrida também, cheia de dores próprias, incapaz de ver a dor dos filhos ou então, vendo-a, ignoraram-na. Ficam mágoas enormes por resolver e as crianças pequenas, agora adultas, à espera do reconhecimento do erro e do pedido de desculpa que tarda a chegar ou nunca vem. O afastamento será inevitável para que a paz não seja perturbada, mas o mal está feito e o coração de quem já foi pequeno foi demasiadas vezes amarrotado e enxovalhado, como trapo de chão.

Deveria ser proibido fazer estas maldades. Os filhos têm o direito de serem amados e os pais o dever de amar, independentemente das idiossincrasias dos filhos. Seria bom que todas as crianças crescessem sabendo que quando o pai ou a mãe se zanga é o comportamento errado que está em causa e não o amor que se tem pelo filho. Procuro sempre deixar isto claro aos meus dois. A mãe amá-los-á para sempre até ao infinito, apesar da asneira. O amor não está em causa, mas não pode tolerar esse comportamento.

                Custa-me ver adultos sofrerem por mazelas antigas e também crianças maltratadas a quem os pais, zangados com a vida, responsabilizam pelas suas agruras. Como se eles tivessem pedido para vir ao mundo e fossem responsáveis pelos adultos. Não se diz a um filho que ele é um encargo, que se está farto de o aturar ou que não faz nada de jeito ou que é um inútil. São palavras que nunca serão esquecidas, nos mais frágeis, serão devastadoras. Muitos conseguem varrer a sujeira para debaixo do tapete, até ao dia em que este fica tão sujo que é necessário lavar.

O amor é bom de se dizer e de se sentir, por isso, quando antes de ir para a escola, a minha pequenina me larga um adoro-te e eu correspondo e o meu filho adolescente, já com a vergonha ao peito, mas deixa um até logo, mãe, no seu tom carinhoso, o meu dia foi ganho e penso que alguma coisa hei de estar a fazer bem…

 

Nina M. 

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