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sábado, 23 de outubro de 2021

Crónica de Maus Costumes 251

 Manifestantes de tasca e de sofá

                Faço a vontade ao meu amigo escritor, Luís Altério, que após ter lido o meu comentário à sua publicação, sugeriu que o transformasse numa crónica. Ora, na verdade, agradeço a sugestão, porque o tema até tem pernas para andar…

                O Luís manifestava a sua incredulidade perante o comportamento apático dos portugueses perante as subidas constantes dos combustíveis, que atingem valores incomportáveis e questionava se os portugueses seriam reivindicadores de sofá. O meu comentário confirmava-lhe isso mesmo. O português é, por natureza, manifestante de tasca ou de sofá. Ainda brinquei, dizendo que para haver manifestações sérias neste país seria preciso que acontecesse uma hecatombe ao clube de coração dele, o seu Benfica. Eu, por mim, prendia já o Vieira e arrolava o Rui Costa como testemunha e depois, quando os benfiquistas, muito indignados saltassem para a rua, os indispostos com os preços do gasóleo, pimba, infiltravam-se, erguiam uns cartazes e poderia ser que se conseguisse alguma visibilidade…

 Nem eu nem ele somos originais: Miguel Torga escreveu-o muito antes. O português, em conversa de café, estica o peito e era um havíamos de fazer isto e aquilo, mas quando surgem ações concretas, acobarda-se, geme desgraças e não mexe uma palha para lutar pelos seus direitos e pela sua dignidade. Encontra sempre razões válidas para não se incomodar e isto fere-me. Profundamente. As marcas quer do poder régio quer da ditadura fazem-se perenes. Habituamo-nos a obedecer mansamente, a amolecer como o esparguete em água que ferve e, sem força, facilmente abandonamos a nossas convicções e a luta. O que mais me aborrece é saber que os representantes escolhidos para nos governar sabem que é assim. Sabem de antemão que até os olhos podem arrancar… Poucos se incomodarão e esses poucos serão fáceis de silenciar.

                Ouço, atónita, nas notícias, o desconto anunciado, para supostamente auxiliar as famílias nessas despesas. Estas poderão recuperar até à quantia máxima de cinco euros por mês, no que se refere ao abastecimento de combustível, depois de fazerem umas quantas operações burocráticas ou não estivéssemos nós no país que adora papelinhos, sejam eles nos moldes tradicionais sejam eles de registo informático. Só a trabalheira que implica é um convite à desistência do reembolso. Eles sabem-no! Fico siderada e questiono se serei a única a considerar isto uma piada de muito mau gosto porque, como diria o humorista, “é gozar com quem trabalha”, e eu, que nem sou de asneiras, sai-me um chorrilho de impropérios dirigidos às boas intenções do senhor Costa e dos seus correligionários, sugerindo que guardem os cinco euros no orifício traseiro do seu organismo!

                Depois, aparece mais um iluminado a sugerir que a solução reside na escolha do veículo elétrico e que talvez o preço dos combustíveis deva ser alto para promover uma economia sustentável. Se conhecesse o país onde vive, saberia que uma família que aufira dois salários mínimos mensais não tem dinheiro para comprar carros elétricos, dado o seu preço exorbitante. Mesmo uma família de classe média tem de ponderar bem, porque o diferencial no preço dá para muito litro de combustível! Já agora, seria bom que as pessoas se informassem bem sobre as energias limpas. Só são limpas para os europeus burgueses, porque nos países de onde extraem os minérios raros para o fabrico das baterias, sobeja um rasto de destruição - seca, terra árida e infértil, mas é lá longe e o que os olhos não veem o coração não sente. Esquecem-se que no dia que o planeta explodir, não vai perguntar se o mal é oriundo da Ásia ou da Europa. É de todos.

                De modo que aceitar placidamente todas as tropelias e desgovernos parece ser o destino dos portugueses. Qual tragédia grega! Qual fatum! Encolhemos os ombros e consideramos que reclamar não adianta de nada, perante governantes surdos e insensíveis, que aprovam leis sem as discutir e negociar com quem quer que seja. Assim funciona o XXII Governo da República Portuguesa! Todos os setores que tenham de negociar com os representantes do povo sabem que não serão escutados nem haverá negociação. Pela primeira vez, a ANTRAM abandonou as negociações. Sentiram-se traídos. O Governo aprovou leis que não foram discutidas nas negociações. Os reivindicantes poderão nem ter razão relativamente ao teor (não pensei nem me informei o suficiente sobre o assunto), mas têm, com certeza, razão no que diz respeito à postura do Governo.  Fizeram o mesmo aos sindicatos de professores! Estiveram oito horas à espera sem serem ouvidos! É uma vergonha e uma desconsideração pelas associações representativas de trabalhadores. Uma pulhice travestida de comportamento ditatorial. Portanto, os representantes do povo, na verdade, desconhecem e não querem conhecer as reais dificuldades pelas quais o povo passa, porque uma boa parte dos políticos portugueses é oriunda de uma elite burguesa e abastada que desconhece as agruras da vida e para quem tudo foi sempre demasiado fácil. Não se exige que passem pelas mesmas necessidades, mas exige-se respeito, empatia e autenticidade na atuação!

                Ouvir gente que trabalha diariamente, às vezes mais do que o que lhes compete, e que mesmo assim não saem do limiar da pobreza, resignar-se, encolher os ombros, deixando escapar que “eles” são todos iguais e que não querem saber da política, deixa-me perplexa e irada. Ouvir de gente instruída a mesma ladainha ainda me faz pior! Se pudesse, obrigava-os a todos a ler atentamente o Germinal, de Zola. Lembro-me bem da pedrada no charco que a obra me causou, ainda gaiata, na casa dos vinte e poucos anitos… A coragem daqueles mineiros! A fome e a miséria trazida pela falta do trabalho, mas a dignidade e a luta que não podia ser abandonada! A luta dói. A greve dói. Nenhuma melhoria das condições de vida foi oferecida com gentileza. Enquanto o povo português não compreender isto, continuará complacente com os desmandos governativos, por mais torpes que eles sejam…

Desde que haja pão e circo, que é como quem diz bola à fartazana, a vida segue o seu curso como sempre foi: exploradores e explorados a coabitarem numa estranha paz social. Uns a acharem que as massas se dominam assim, pela força e pelo temor e os outros resignados, porque contra a força não há argumentos.

 

Nina M.

 

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