Ideal, angústia e compromisso com a vida
Criar filhos não é fácil. Nunca terá sido e em cada época, há uma geração com as suas dores.
A infância da geração dos meus pais foi extremamente curta e a dureza da vida impunha a dureza dos afetos. Crianças tornadas adultas aos dez e onze anos, idade com a qual começavam a trabalhar. O sentido da vida era, talvez, o da sobrevivência e uma resignação calada e funda de um destino determinado à nascença. Reinava um espírito servil, capaz de irritar as entranhas do mais tranquilo. A lei do mais forte sobre o mais fraco, que ainda hoje vigora, porque na verdade, ao longo dos tempos, as revoluções levantadas sob a égide da justiça, não colmataram as injustiças reinantes e, como tal, os vícios perpetuam-se e as assimetrias também. Continuamos sob o lema: “Manda quem pode e obedece quem deve”. Os que obedecem, se quisessem a sublevação, unidos, teriam muita força, porém, o problema maior está no que fazer em seguida, porque prova a História que encontrar líderes capazes e íntegros que se batam pelo bem-estar de uma nação inteira é quase missão impossível. Perdem-se, a maioria deles, nas malhas de um elitismo afastado da realidade que nunca pisaram. Questiono-me, por isso, se a humanização será um caminho possível, porque os homens fazem questão de chacinar o ideal e de não o deixar prosperar. Desconfio mesmo que as elites se aproveitam dele e o usam em vão para a sua autopromoção, numa sede insaciável de poder. Inebriados e febris, vivem uma vida faustosa, longe dos horrores do mundo. Qualquer homem tolera a miséria desde que ela esteja afastada dos seus olhos.
Estes pensamentos são verdadeiramente angustiantes porque, a serem verdadeiros, colocam-nos face a um absurdo inconciliável com os ideais democráticos. A ser assim, somos obrigados a render-nos ao servilismo e à resignação dos nossos antepassados, já que independentemente da nossa vontade, as elites sempre controlam as massas, normalmente pelo medo, e sempre as usarão em seu benefício, oprimindo os mais débeis para satisfação de uns quantos.
A felicidade está, dizem alguns, na capacidade de baixar expetativas e na capacidade de aceitação. O segredo será abraçar o estoicismo e deixar seguir o curso do mundo.
“ Segue o teu destino,/Rega as tuas plantas,/Ama as
tuas rosas./ O resto é a sombra de árvores alheias./ A realidade/ Sempre é mais
ou menos/ Do que nós queremos […]” – É o ensinamento douto do Ricardo
Reis, heterónimo de Fernando Pessoa, instigando à indiferença e à ataraxia. O
que não me diz respeito não me deverá incomodar, talvez porque também ele
pressentisse a luta inglória e perdida. Não me deixa de causar bulício nas
entranhas. O mesmo bulício que me causou ouvir uma psicóloga a aconselhar os
professores, por altura da última grande greve, a darem a batalha como perdida.
A aprenderem a aceitar tranquilamente a derrota para que a angústia não nos
engolisse. Para que a dor não nos embrulhasse. Sei que as minhas entranhas
abalaram. Senti-as tremer a formarem um nó. Eu sei. Viverei eternamente
angustiada, mas não é o homem ser feito de angústia? Entre a angústia de uma
aceitação injusta e uma angústia trazida pela perda do sonho que se almejou,
talvez escolha a segunda.
A aceitação plácida das injustiças torna-nos
cúmplices das atrocidades. A ironia é que independentemente da nossa vontade,
de certa forma, todos nós contribuímos para elas. Essa consciência aterradora das
coisas é implacável e ou a alma encontra refúgio e a sua transcendência ou o nosso
olhar sobre o mundo desumaniza-se, degrada-se e torna-se vazio. Nada pior do que
um olhar vazio, seco e morto. Receio-o, pois nesse dia estarei morta. De modo que
a rejeição do estoicismo, em certas circunstâncias, possa representar a escolha
pela vida, mesmo que esta nos traga muitos escolhos.
Em última análise, poder-se-á dizer que sentir
angústia é sinal de que se está vivo. É sinal de lucidez. Trocá-la por um alheamento
ou um torpor coletivo não confere sentido à existência, antes a apaga e a torna
inútil. Talvez seja esse o projeto mais difícil de traçar e de alcançar: o de justificar
diariamente a existência, saber que se persegue uma quimera exponencialmente maior,
nem sempre de contornos definidos. Saber que nos perdemos demasiadas vezes pelo
caminho e ter a hombridade de recomeçar. Construir-se e reconstruir-se à exaustão,
as vezes necessárias, tantos quantos os dias da nossa vida. Nem o estoicismo cabe
nesta medida justa nem o triunfo é garantido.
Alea jacta
est.
Nina M.
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