Por dias melhores
Li
um texto que me surgiu na rede onde publico e que me fez regressar no tempo. A
autora remetia para um Portugal miserável, em que as mulheres, absolutamente
submissas, tinham de ser os esteios da casa e suportar os desvarios alcoólicos
dos maridos. Se estes tinham “bom vinho”, como é uso dizer-se, a coisa sempre
ia, mas o maior fadário era quando o “mau vinho” punha cá fora a ruindade,
normalmente, gerida em silêncio. Era pancadaria de meia-noite!
Na
minha freguesia, havia um caso desses. Era habitual, à segunda-feira, ouvir-se
que a Maria (nome fictício), para não ferir suscetibilidades nem expor ninguém,
tinha levado uma tareia do Zé (também fictício), porque o desgraçado chegou embriagado
e desatou à pancada na mulher. Lembra o Sebastião da música infantil que comia
tudo e, no fim, ainda, arreava na mulher! Esta violência povoava,
inclusivamente, o universo das letras das músicas infantis, a comprovar que era
social e culturalmente aceite que o Sebastião, o grande grunho barrigudo, depois
de encher a pança, desse pancada na mulher. Eu sempre me lembro de, em pequena,
esta letra e a do “atirei o pau ao gato” me meter uma confusão medonha! Aquilo
nunca me fez qualquer sentido porque, em minha casa, ninguém atirava paus a
gatos e muito menos o Sebastião, neste caso, João, o meu pai, sequer esboçou
qualquer gesto de agressão à sua mulher e filhos! Bem pelo contrário! Fui muito
menina do seu papá, como deve ser! Portanto, lembro-me, sim, de essas letras me
deixarem desconcertada. O meu universo era distinto de tudo aquilo…
Já
me desviei do assunto… O fluxo do pensamento tem estas derivas, há que as
suportar. Dizia que a Maria era frequentemente espancada pelo Zé, até ao dia em
que decidiu parar com aquilo. Bendita coragem! Houve um sábado que ela não
esteve pelos ajustes. Preparou-se para se defender. O marido, tal como era
habitual, ia para o café, depois do jantar, e a mulher ficava a arrumar a
cozinha e a cuidar dos filhos. A mentalidade comum era esta. Nessa noite, a
coisa correu mal ao sujeito. Embebedar-se, embebedou, o mau vinho também
apareceu, mas dessa vez a Maria não se aquietou, houve sublevação e quem levou
uma valente tareia foi o Zé. O álcool tirara-lhe parte das forças e a esposa,
mulher do campo, habituada à lida, à vida dura e à força braçal, pôs o Zé no
lugar. Quem vai à guerra dá e leva. Na segunda-feira, a novidade percorrera a
aldeia e as mulheres, entre sussurros, diziam, fez ela muito bem! Pecou por ser
tão tarde! Aquela besta, sempre a arrear-lhe sem ter qualquer razão para isso!
Eram estas as palavras… Notemos o discurso subliminar… As próprias mulheres
entendiam que lhes pudessem bater se elas se portassem mal, se o seu
comportamento não fosse o que se esperava de uma mulher, ou seja, se ela não
tratasse da casa e não lhe fizesse a comida e coisas do género… Não entendiam
que por mais que uma mulher pudesse ser falha, isso não justificava a
violência, porque ninguém pode agredir o outro, já que ninguém é propriedade de
alguém.
É
deste Portugal atrasado, mesquinho e miserável, analfabeto, em que os homens
lavavam o estômago com vinho, em que as mulheres eram espancadas e os filhos
saciados com sopas de vinho e chupetas de aguardente, de que muitos têm
saudades! Do tempo em que as crianças enregelavam de tanto frio, levavam pedras
aquecidas nas lareiras nas mãos para combater a geada ou os nevões, andavam de
socos, na melhor das hipóteses, e descalços na pior delas, sem meias, sem
casacos, à espera de que as senhoras burguesas e caridosas lhes fizessem os
camisolinhas de lã para os pobres, como expiação dos pecados e alívio das
consciências. Um país miserável e motivo de vergonha, até da alheia, cujo único
refúgio consistia na religião que acolhia os pobres e lhes garantia serem os
prediletos de Jesus. E eram, mas uma religião sem obra é como uma comida sem
sal. Tem-se a forma, falta o sabor. E a religião incutida também era um quadro
tenebroso. Deus não era amor! Era um Ser Supremo, omnipotente, omnisciente e
omnipresente (qual big brother!) disposto aos piores castigos! Só de pensar
nisso… Aquela gente já era tão, mas tão miserável, tão desgraçada, tão
subjugada e com pouca esperança no futuro, se é que nele pensavam, porque a
vida era aquilo que conheciam: tormenta, mas ainda havia a necessidade de os
amedrontar com um hipotético castigo de penas infernais, na outra vida! Alertar
para o perigo do inferno a quem por ele passou enquanto viveu! Sempre tem a sua
graça… A mudança começou com o Concílio Vaticano II, ou melhor, o retorno às
raízes da mensagem evangélica de amor deixada por Jesus. Poucos se questionariam
sobre a figura severa de Deus, num país analfabeto, em que a vida era feita do
nascer ao pôr do sol, à procura do sustento, que nunca era suficiente. A
sardinha tinha de dar para quatro e a canalha comia o rabo para não se engasgar
com as espinhas. Não admira que, naquela altura, fôssemos um país pequeno, de
gente mirrada e raquítica, com falta de dentes e completamente acabados aos
cinquenta anos! Um país em que tantos passavam a salto à França, sem dinheiro e
com dois ou três salpicões e pão, para irem aguentando a fome durante a viagem.
Ver fotografias deles é ver os refugiados da atualidade. É neste mesmo país pobre,
que se vê amiúde esventrado por levas de emigração, que há alguns que se
atrevem a erguer a voz àqueles que vêm, iguais a tantos de nós que um dia
também foram!
Surge-me
o avô paterno Francisco, homem franzino, trigueiro, baixo, sempre de cigarro no
canto da boca. O lábio já tinha calo. A sua boca só se despedia dos Definitivos
para dormir. O domingo inteiro com o cigarrito que lhe amarelava os dedos. Isso
e o copito de tinto que bebericava e oferecia às visitas de domingo. Já só
jantava chá com bolacha Maria e comia petinga frita quase diariamente. Creio
que o seu estômago se habituou à parcimónia. A Fartura faz mal. Faleceu o avô
Chico aos setenta e qualquer coisa, de trombose… O homem que gostava de pregar
partidas à vizinhança e que trabalhava como carpinteiro para quem lhe encomendasse
serviço. Os filhos aprenderam com ele a arte, mas todos vieram a arranjar
outros trabalhos, assim que a vida melhorou, depois do vinte e cinco de abril,
quando a educação e a saúde se começaram a abrir às massas, as melhores
conquistas de abril, juntamente, com a liberdade, obviamente.
Há,
ainda, muito por cumprir! Imenso! É preciso defender a educação e a saúde
públicas como garantia de combate às assimetrias sociais que persistem. É
preciso tornar o país mais produtivo. Urgente! É preciso muita coisa, mas querer
olhar para trás, com saudade de um país obscuro e miserável, não! Não acredito
haver quem possa sentir nostalgia da miséria. A saudade é mais funda… É da
memória afetiva de certos momentos… De descobrir que no sapatinho de Natal havia
um molete e uma maçã! E era dia de festa, por isso! A memória que se enternece
com tamanha simplicidade e pureza e é essa limpidez de alma que o ser gosta de
resgatar.
O
meu pai conseguia comer bacalhau, no Natal. Na consoada era à grande; no resto
dos dias reinava a miséria. Talvez a regueifa e os Definitivos que sempre
levava ao avô Francisco quando íamos a Vila Boa de Quires, fosse a compensação
pelo bacalhau de que sempre gostou!
Por
dias melhores!
Nina M.