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sábado, 6 de dezembro de 2025

Crónica de Maus Costumes 445

 

Por dias melhores

               Li um texto que me surgiu na rede onde publico e que me fez regressar no tempo. A autora remetia para um Portugal miserável, em que as mulheres, absolutamente submissas, tinham de ser os esteios da casa e suportar os desvarios alcoólicos dos maridos. Se estes tinham “bom vinho”, como é uso dizer-se, a coisa sempre ia, mas o maior fadário era quando o “mau vinho” punha cá fora a ruindade, normalmente, gerida em silêncio. Era pancadaria de meia-noite!

               Na minha freguesia, havia um caso desses. Era habitual, à segunda-feira, ouvir-se que a Maria (nome fictício), para não ferir suscetibilidades nem expor ninguém, tinha levado uma tareia do Zé (também fictício), porque o desgraçado chegou embriagado e desatou à pancada na mulher. Lembra o Sebastião da música infantil que comia tudo e, no fim, ainda, arreava na mulher! Esta violência povoava, inclusivamente, o universo das letras das músicas infantis, a comprovar que era social e culturalmente aceite que o Sebastião, o grande grunho barrigudo, depois de encher a pança, desse pancada na mulher. Eu sempre me lembro de, em pequena, esta letra e a do “atirei o pau ao gato” me meter uma confusão medonha! Aquilo nunca me fez qualquer sentido porque, em minha casa, ninguém atirava paus a gatos e muito menos o Sebastião, neste caso, João, o meu pai, sequer esboçou qualquer gesto de agressão à sua mulher e filhos! Bem pelo contrário! Fui muito menina do seu papá, como deve ser! Portanto, lembro-me, sim, de essas letras me deixarem desconcertada. O meu universo era distinto de tudo aquilo…

               Já me desviei do assunto… O fluxo do pensamento tem estas derivas, há que as suportar. Dizia que a Maria era frequentemente espancada pelo Zé, até ao dia em que decidiu parar com aquilo. Bendita coragem! Houve um sábado que ela não esteve pelos ajustes. Preparou-se para se defender. O marido, tal como era habitual, ia para o café, depois do jantar, e a mulher ficava a arrumar a cozinha e a cuidar dos filhos. A mentalidade comum era esta. Nessa noite, a coisa correu mal ao sujeito. Embebedar-se, embebedou, o mau vinho também apareceu, mas dessa vez a Maria não se aquietou, houve sublevação e quem levou uma valente tareia foi o Zé. O álcool tirara-lhe parte das forças e a esposa, mulher do campo, habituada à lida, à vida dura e à força braçal, pôs o Zé no lugar. Quem vai à guerra dá e leva. Na segunda-feira, a novidade percorrera a aldeia e as mulheres, entre sussurros, diziam, fez ela muito bem! Pecou por ser tão tarde! Aquela besta, sempre a arrear-lhe sem ter qualquer razão para isso! Eram estas as palavras… Notemos o discurso subliminar… As próprias mulheres entendiam que lhes pudessem bater se elas se portassem mal, se o seu comportamento não fosse o que se esperava de uma mulher, ou seja, se ela não tratasse da casa e não lhe fizesse a comida e coisas do género… Não entendiam que por mais que uma mulher pudesse ser falha, isso não justificava a violência, porque ninguém pode agredir o outro, já que ninguém é propriedade de alguém.

               É deste Portugal atrasado, mesquinho e miserável, analfabeto, em que os homens lavavam o estômago com vinho, em que as mulheres eram espancadas e os filhos saciados com sopas de vinho e chupetas de aguardente, de que muitos têm saudades! Do tempo em que as crianças enregelavam de tanto frio, levavam pedras aquecidas nas lareiras nas mãos para combater a geada ou os nevões, andavam de socos, na melhor das hipóteses, e descalços na pior delas, sem meias, sem casacos, à espera de que as senhoras burguesas e caridosas lhes fizessem os camisolinhas de lã para os pobres, como expiação dos pecados e alívio das consciências. Um país miserável e motivo de vergonha, até da alheia, cujo único refúgio consistia na religião que acolhia os pobres e lhes garantia serem os prediletos de Jesus. E eram, mas uma religião sem obra é como uma comida sem sal. Tem-se a forma, falta o sabor. E a religião incutida também era um quadro tenebroso. Deus não era amor! Era um Ser Supremo, omnipotente, omnisciente e omnipresente (qual big brother!) disposto aos piores castigos! Só de pensar nisso… Aquela gente já era tão, mas tão miserável, tão desgraçada, tão subjugada e com pouca esperança no futuro, se é que nele pensavam, porque a vida era aquilo que conheciam: tormenta, mas ainda havia a necessidade de os amedrontar com um hipotético castigo de penas infernais, na outra vida! Alertar para o perigo do inferno a quem por ele passou enquanto viveu! Sempre tem a sua graça… A mudança começou com o Concílio Vaticano II, ou melhor, o retorno às raízes da mensagem evangélica de amor deixada por Jesus. Poucos se questionariam sobre a figura severa de Deus, num país analfabeto, em que a vida era feita do nascer ao pôr do sol, à procura do sustento, que nunca era suficiente. A sardinha tinha de dar para quatro e a canalha comia o rabo para não se engasgar com as espinhas. Não admira que, naquela altura, fôssemos um país pequeno, de gente mirrada e raquítica, com falta de dentes e completamente acabados aos cinquenta anos! Um país em que tantos passavam a salto à França, sem dinheiro e com dois ou três salpicões e pão, para irem aguentando a fome durante a viagem. Ver fotografias deles é ver os refugiados da atualidade. É neste mesmo país pobre, que se vê amiúde esventrado por levas de emigração, que há alguns que se atrevem a erguer a voz àqueles que vêm, iguais a tantos de nós que um dia também foram!

               Surge-me o avô paterno Francisco, homem franzino, trigueiro, baixo, sempre de cigarro no canto da boca. O lábio já tinha calo. A sua boca só se despedia dos Definitivos para dormir. O domingo inteiro com o cigarrito que lhe amarelava os dedos. Isso e o copito de tinto que bebericava e oferecia às visitas de domingo. Já só jantava chá com bolacha Maria e comia petinga frita quase diariamente. Creio que o seu estômago se habituou à parcimónia. A Fartura faz mal. Faleceu o avô Chico aos setenta e qualquer coisa, de trombose… O homem que gostava de pregar partidas à vizinhança e que trabalhava como carpinteiro para quem lhe encomendasse serviço. Os filhos aprenderam com ele a arte, mas todos vieram a arranjar outros trabalhos, assim que a vida melhorou, depois do vinte e cinco de abril, quando a educação e a saúde se começaram a abrir às massas, as melhores conquistas de abril, juntamente, com a liberdade, obviamente.

               Há, ainda, muito por cumprir! Imenso! É preciso defender a educação e a saúde públicas como garantia de combate às assimetrias sociais que persistem. É preciso tornar o país mais produtivo. Urgente! É preciso muita coisa, mas querer olhar para trás, com saudade de um país obscuro e miserável, não! Não acredito haver quem possa sentir nostalgia da miséria. A saudade é mais funda… É da memória afetiva de certos momentos… De descobrir que no sapatinho de Natal havia um molete e uma maçã! E era dia de festa, por isso! A memória que se enternece com tamanha simplicidade e pureza e é essa limpidez de alma que o ser gosta de resgatar.

               O meu pai conseguia comer bacalhau, no Natal. Na consoada era à grande; no resto dos dias reinava a miséria. Talvez a regueifa e os Definitivos que sempre levava ao avô Francisco quando íamos a Vila Boa de Quires, fosse a compensação pelo bacalhau de que sempre gostou!

               Por dias melhores!

 

Nina M.

 

 

 

 

 

sábado, 29 de novembro de 2025

Crónica de Maus Costumes 444

 

 Uma árvore que cai faz mais barulho do que uma floresta que cresce

               Ouço a notícia do agente da PSP e dos militares da GNR que escravizavam os imigrantes, depois, junta-se a notícia dos onze bombeiros que decidiram sodomizar o colega, ainda rapazito jovem… Que diabo se passa com esta gente? Não sei como se deixa tanto mal criar-se em nós. A maldade faz-me sentir impotente. Felizmente, meia-dúzia de meliantes não põem em causa uma classe inteira.

 Quando soube da prisão preventiva de um sujeito conhecido por suspeita de crimes de associação criminosa, fraude fiscal qualificada, falsificação de documentos e de branqueamento de capitais, lesando pessoas e o Estado em cinco milhões e meio de euros, eu já só penso que, pelo menos, este e os seus compinchas, porque há mais falsários envolvidos, não exploraram violentamente ninguém…

            Cismo no mundo em que vivo e a fúria ataca-me e, juntamente com este tempo cinzento, tempo de chuva, tempo húmido e frio, fico mal-humorada. Imagino a habitação social que se poderia construir com esse dinheiro, para que os jovens possam ter a sua independência e construir família mais cedo e penso, sobretudo, em quantos outros cinco milhões e meio esvoaçam na economia paralela para manter vidas, às vezes, pornograficamente faustosas de que ninguém necessita, sem o mínimo pudor, a mínima consciência social, a mínima noção de que todos, todos, todos, devemos contribuir para uma sociedade melhor, porque a sociedade evoluída é aquela em que todos cuidam de todos. Olhar o mundo e ver que há gente tão desumanamente e miseravelmente estúpida, que não vê além do seu umbigo, ensandece-me! Porém, não me compadeço deles. Compadeço-me daqueles que lhes são próximos e são arrastados para esse lodaçal, sem responsabilidade. Dos desonestos, por ambicionarem excessivamente mais do que aquilo que necessitam, por mera vaidade, ou dos cruéis, não sou capaz de sentir misericórdia. Que cada um colha aquilo que plantou e veja a justiça a funcionar.

Ouvir notícias, hoje, é uma prova de resistência à sanidade. Se partirmos para o panorama internacional, então, a ação humana fede: a invasão russa da Ucrânia; a guerra entre Israel e Palestina, com milhares de mortos e bloqueios à ajuda humanitária; o genocídio e a guerra civil no Sudão; o domínio de gangues e massacres no Haiti; censura e crimes de lesa-humanidade na Nicarágua; perseguições e prisões políticas na Venezuela; intensificação da repressão na Bielorrússia; perseguição dos uigures na China; extinção dos direitos das mulheres pelo regime talibã no Afeganistão; violência do narcotráfico no México e no Brasil; sequestros e massacres de cristãos na Nigéria e Moçambique, entre muitas outras que, certamente, me faltará designar.

Maioritariamente, não ligo a televisão. Pouco vejo e o que vejo é porque alguém da casa a ligou. Se estiver só, faz-me companhia o silêncio, o livro ou programas radiofónicos que abraçam a cultura ou me envolvem numa boa conversa, enquanto trato de tarefas domésticas, porque em minha casa, em catraia, nunca fui tratada com o síndroma da princesa e, como tal, lá cumpro com a regra de que quem usa ou suja limpa. Mais depressa me colariam à pele o síndroma da gata borralheira para aprender que a vida se leva com esforço, trabalho e empenho. As mulheres da minha família sempre foram muito kantianas sem sequer imaginarem o que isso significa. A moral cristã do trabalho, também, lhes foi bem passada e eu… Mais calaceirita me confesso, porque nos meus devaneios reflexivos reconheço o papel produtivo do ócio e, à boa maneira do pós-modernismo, abraço a ideia de que o trabalho é necessário com conta peso e medida e que romantizar os que trabalham em excesso é contribuir para a normalização dos esgotamentos, a doença do século. De modo que enquanto atimo as lides caseiras, procuro consolo nesses placebos que se revelam eficazes enquanto duram e me ajudam a não perder totalmente a fé na humanidade.

Hoje, no “Vencidos” de Luís Osório, fiquei a conhecer um pouco melhor Luís Portela, o homem que foi médico durante três anos, seis anos professor universitário e aos 27 anos assumiu a presidência da Bial. Em 1994, criou a fundação Bial, que atribui inúmeras bolsas para investigação na ciência e inúmeros prémios, alguns bem chorudos, na área da saúde. Ouvir este homem falar do seu sentido de vida, apesar de ter uma vida confortável e economicamente abastada, que se sente feliz quando recebe e-mails de doentes a agradecer-lhe a descoberta do medicamento que lhes permitiu controlar a epilepsia ou ouvi-lo dizer que diariamente procura ser melhor do que aquilo que foi no dia anterior e que esse caminho de aperfeiçoamento deverá ser um propósito ou, ainda, o cuidado que punha na escolha dos trabalhadores da Bial, desde o cientista à senhora da limpeza, pois é preferível escolher um bom ser humano, ainda que menos evoluído tecnicamente, do que um técnico excelente, mas de má índole, é um verdadeiro bálsamo que minimiza as iniquidades a que vamos assistindo neste mundo. São estes seres que, ainda, permitem alguma fé na humanidade e, tal como ele, também o meu “vencido” preferido é Jesus, ele, homem de ciência, não-religioso, mas absolutamente crente na espiritualidade, ainda entende ser possível que Ele e a Sua mensagem triunfem. Jesus, o maior e melhor líder espiritual, diz ele, apesar de também admirar Confúcio e Buda.

Quando se ouve ou lê gente desta, seres absolutamente admiráveis, quer profissionalmente quer humanamente, aqueles que comecei por referir nos primeiros parágrafos da crónica tornam-se-me tão pequenos, tão desprezíveis e, sobretudo, absolutamente, ridículos! Compraz-se o meu coração por saber de homens que justificam a sua existência. De alguma forma, sereno um pouco e agradeço ao Luís Osório a possibilidade que nos dá de os descobrir. No meio do deserto encontrar um oásis é, seguramente, uma forma de salvação.

Ide ouvir, ide.

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sábado, 22 de novembro de 2025

Crónica de Maus Costumes 443

 

Ideias de jerico

            Quem nunca teve ideias luminosas, que depois de executadas se percebe que só podem ter sido sopradas ao ouvido por Belzebu, atire a primeira pedra!

Eu tenho algumas e faço o impensável: sei que pode correr mal, mas ainda assim ponho em prática… Já aconteceu duas vezes e não há duas sem três e não adianta jurar que não volto a incorrer na asneira, porque sei que basta que as circunstâncias conspirem e zás! Lá estou eu novamente… Há quem abane a cabeça e chame de teimosia, mas eu prefiro dizer que é … Técnica de aperfeiçoamento…

Não aprecio muito ir à cabeleireira nem a salões de estética. Aborrece-me ter de telefonar para marcar. Sei lá… Não me apetece falar para isso. Ando constantemente a dizer para mim mesma que preciso de ligar, mas nunca me apetece fazê-lo e o tempo vai passando e eu vou procrastinando…

 Entedia-me o tempo gasto nesses locais… Falta-me a paciência e dá-me cabo dos nervos. Ponho-me a pensar no que poderia estar a fazer naquela 1h30 que para ali estou. Um desperdício! Que rica caminhada faria e mais proveitosa!

Quando a falta de tempo aperta, por obrigações profissionais, tudo se torna pior e sou obrigada a fazer escolhas. O cabelo não se compadece com alturas ocupadas e há momentos em que uma mulher se põe a olhar e aquilo… Bem… Já lhe começa a meter ranço… Dita o juízo que se ligue e se marque uma hora na cabeleireira e pronto. Ficaria resolvido. No entanto, esta alminha, lembra-se que até pode ir buscar a tinta e fazer o procedimento em casa e, enquanto, a tinta está no cabelo, até se pode ir fazendo outras coisas! Muito prático, pois claro… Seria muito prático, se a cor que a nossa cabeleireira faz existisse prontinha… Porém… Não acontece exatamente assim e vamos arriscando…

Mulheres! Tenham cuidado com os acobreados! Garanto-vos que já consegui ficar rosa, laranja e ruiva mais escura. Pois… Desta vez foi ruiva… E atrevi-me dois dias, mas aquela mulher não era eu e nem a Nina que tão bem conheço! E a esta altura já se estão a questionar … Foi à cabeleireira arranjar o que estragou… Pois claro que não! Não ia arriscar ouvir sermão da minha cabeleireira que já deve andar pelos cabelos das invenções ranhosas que vou arranjando… Nem pensar! Já sabem que a única pessoa que nos manda baixar a cabeça e a gente obedece é, precisamente, a cabeleireira! Não senhor! A Internet também serve para coisas boas e lá aprendi que os verdes e os azuis, por serem do espectro oposto cortam os vermelhos e que uma tinta clara que diga cinza ou mate mitiga o problema. Ufa! Safei-me do ruivo… Mais ou menos… O acobreado lá está, mas a coisa está mais aproximada do que tinha e dá para o gasto…

Agora… Tranquilamente, deixarei passar esta fase ruim e quando estiver mais desafogada e a tinta já mais desbotada, prometo-me que lá vou ao salão e se a Zeza estranhar, eu lá direi que… Enfim… Tive de meter uma coisita caseira a meio para arranjar as raízes por falta de tempo, mas que foi uma cor aproximada, mas que sempre é melhor ir lá retificar bem aquilo. Placidamente, ela fingirá acreditar, enquanto me separa as mexas e vê os acobreados que considerará mitigar, que ela é que sabe o que põe a mais ou menos para o resultado ser decente, enquanto pensa com os seus botões que já andei a inventar, mais uma vez, e que espero que ela arranje o que eu mesma andei a arruinar… Mas também… Vá lá… É só cabelo! Já que lá vou menos vezes do que o desejável, dar-lhe um bocadinho mais que pensar não fará assim tão mal…

Em casa, os filhos abanam a cabeça e já me dizem… Já estás a inventar outra vez. Na segunda, perante os comentários da canalha, que nunca deixa escapar nada, vão-me dizer: “a stôra pintou o cabelo, outra vez!”. Serenamente, responderei: “a outra era a base que precisei de fazer para chegara a esta.” Assunto encerrado durante dois meses, até à próxima tentativa, quer dizer… Ida à cabeleireira…

 

Nina M.

 

 

 

 

 

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Há sempre sombra

Há sempre sombra 
Por detrás da luz
E uma certa penumbra
Por detrás do brilho
Um chovisco impercetível
Em dia soalheiro

E quem não sabe ver
Nem escuta
Não adivinha
Ou sequer perscruta
Silêncios

Imagina céus limpos
Sem nevoeiros
Drama
Sem tragédia
E mares
Sem fúria


Na janela
Olhares distantes
A fixar horizontes

Quem tem um sol dentro
Sabe limar-lhe as sombras



segunda-feira, 17 de novembro de 2025

É uma brisa que perpassa

É uma brisa que perpassa  
E me estremece o ser
Vem de longe e abraça
Até ao anoitecer

Não é friagem este sopro
Que sinto também na alma
É tépida aragem que sofro
E me transtorna a calma

Que será e o que diz?
Assim não o sei dizer
É sopro, brisa, aragem
Que me faz estremecer

Neste arrepio de alma
Onde baila o coração
Acende-se imensa chama
Incendeia-se a paixão.

sábado, 15 de novembro de 2025

Crónica de Maus Costumes 442

 

Porta das petições II

            Deveria fazer como o rei do Conto da “Ilha Desconhecida”, de Saramago, e arranjar um primeiro secretário, que por sua vez chamava o segundo e este o terceiro, que chamava o primeiro ajudante e por aí adiante até chegar à mulher da limpeza que abria a porta das petições para ouvir o homem dizer que queria um barco…

            Acontece que cá em casa a mulher da limpeza sou eu, pelo que acabaria por me caber abrir a porta das petições e perguntar às mulheres:

 - Que quereis?

- Uma crónica que seja um brinde à nossa amizade.

            Lá acabaria por dizer que iria ver o que se podia arranjar e como elas fizessem como o suplicante do conto e se fossem sentar a um canto da porta até lhes fazerem chegar o escrito, é melhor satisfazer-lhes a vontade com o coração grato e disponível.

            Honrarei Aristóteles. Ficai a saber, amigas, que este grego prezava imensamente a amizade. Para ele, este vínculo é essencial para os seres humanos, porquanto lhes permite alcançar a eudaimonia (conceito traduzido, normalmente, por felicidade). Segundo ele, as relações sociais são vitais para o desenvolvimento ético e moral do homem. Tem razão, pois claro. O homem não é sozinho e descobre-se na relação com o outro, que nos obriga a estabelecer os nossos limites e a nossa ética que pode ou não se enquadrar na moralidade vigente, mas que só é construída na relação com o outro. Estes gregos sabiam umas coisas e deixam-nos um legado extraordinário e atual. De modo que, ficais a saber que se Aristóteles fosse vivo, provavelmente, seria utilizador de redes sociais e, mais certo ainda, não dispensaria um jantar, na companhia de amigos, tal como fizemos.  Dizia ele que a amizade poderia ser de três tipos diferentes: a amizade útil, que é aquela em que ambas as partes beneficiam da relação. As pessoas juntam-se porque se podem ajudar de alguma maneira, mas também é superficial, pois desaparece a utilidade e desaparece a amizade. Acontece com os colegas de trabalho com quem temos de colaborar, mas com quem não mantemos contacto fora do âmbito profissional. Depois, há a amizade por prazer, aquela que se fundamenta na busca de prazer e de diversão, visível naqueles que se juntam para o exercício de determinada atividade recreativa ou festa. Esta também é passageira. Basta que os interesses mudem e eles mudam ao longo da vida e a amizade termina. Por fim, vem a amizade por virtude: a mais duradoura e elevada. Esta baseia-se na apreciação mútua do carácter e da bondade do outro, desejam o bem de forma altruísta e partilham valores. Esta amizade é mais rara e exige tempo e intimidade para que se possa estabelecer.

            Creio que já percebestes (sois mulheres perspicazes) aonde vai desaguar a conversa. Obviamente, a nossa amizade encontra-se no estágio número três, mas percorreu as três etapas, necessariamente. Passamos pela utilidade. Conhecemo-nos em contexto laboral, depois, juntamos à utilidade a diversão, ocasionalmente, e, entretanto, muitos anos depois, já em lugares de trabalho diferentes, continuamos a marcar encontro e a falarmos, menos do que aquilo que deveria ser, na verdade, mas a vida não está com contemplações e obriga-nos, sempre a muita ocupação. Todos sabemos que não deveria ser assim. Não se pode adiar o amor como não se pode adiar a amizade e umas tantas outras coisas, mas passamos uma vida inteira a fazê-lo e a arrependermo-nos, para voltar a falhar consecutivamente. Felizmente, vamos conseguindo manter de pé o encontro anual. Por mais jantares e encontros brindados com sorrisos!

            Conhecemo-nos na mesma escola. Primeiro a Adelaide e a Zé, depois a Sofia e eu, no mesmo ano, ambas grávidas. Uma no fim de gravidez, a parir em dezembro e a outra em junho. Em seguida, vieste tu, Lurdes, completar o ramalhete. Quiseram os deuses que colaborássemos, que nos divertíssemos algumas vezes e que a amizade por virtude ficasse.

Vou dizer-vos o que mais aprecio no grupo: a ausência de ego. Nenhuma se considera o alfa e o ómega e olhai, mulheres, que tendes boas qualidades: sois competentes, profissionais e empáticas, mas há em vós um desassombro que me agrada profundamente. Gosto de gente desassombrada e livre de vaidades inócuas. Num mundo onde todos se acham tão cheios de si, encontrar pessoas que sabem que fazem um bom trabalho, mas que encaram esse facto com naturalidade e sem artifícios, permitiu construir esta relação de confiança mútua, que nos permite certas partilhas e muitas, muitas risadas. Temos histórias desde o palheiro da Lurdes até Paris! Já sei, Lurdes, fui uma boa guia turística e muito convincente, ninguém duvidaria do meu conhecimento e até fui enfermeira do “chouchou de la maîtresse”, o diabo do rapaz logo tinha de querer experimentar os serviços do SAMU e os hospitais franceses! Valha-nos ao menos que o médico era uma simpatia! Convosco, ainda arriscaria a mais uma viagem de autocarro para Paris (Deus me livre!) onde só a madame Lurdes consegue dormir “super bem!”

            Por mais jantares e brindes à amizade e que a nossa nunca perca a virtude!

 

Nina M.

           

 

 

 

sábado, 8 de novembro de 2025

Crónica de Maus Costumes 441

                A porta das petições

               Não aprecio por aí além escrever a pedido, mas há certas petições, feitas de modo indireto, que na verdade dissimulam pequenas recriminações, que não me atrevo a ignorar.

            Vá-se lá saber a razão, o meu rapaz decidiu perguntar-me sobre o que tinha sido a crónica, na semana passada, talvez porque se aproximasse a hora de me sentar, para a escrever. Certamente, uma curiosidade inócua, visto que não lê a mãe. Não faltaria mais nada! Não basta ouvi-la quanto mais lê-la! Lá lhe disse o tema, a polarização política a que se assiste no mundo atual. Atira-me com um “isso é bom”! Entenda-se, a temática, não a crónica em si, obviamente. Disse-lhe que foi referenciado no texto. Ainda antes de acrescentar o que quer que fosse, a pequena, a irmã, olha para mim e diz-me que esta semana poderia escrever sobre ela, que estou sempre a falar do Rodrigo… Nem sempre é em tom elogioso, sempre com muito carinho e amor de mãe, é certo, mas isso ela não sabe. Também não me lê. Pergunto-lhe, então, queres que escreva sobre ti?! “Olha, fala que eu te vou buscar as camisolas e que as uso…”

            Lá lhe fiz o reparo que também tem algumas crónicas em que aparece, mas não a convenci. De modo que, minha pequena amorosa ciumenta, a crónica de hoje é tua, da filha que não escolhi, mas que desejei muito e que não trocaria por outra. A Matilde gosta de reconhecimento, sente necessidade de aprovação e gosta de reforço positivo. Não é difícil conseguir fazê-lo. É uma menina empática e sensível, dona de um coração meigo e que se comove facilmente. É criativa e habilidosa. Ao contrário da mãe, que é uma desajeitada, ela tem jeito para tudo: desenrasca-se muito bem nos trabalhos manuais, é uma boa atleta e uma boa aluna. Tem um brio e uma exigência implacáveis consigo mesma e é muito comprometida com o que decida fazer. A minha menina é aquela pequena ansiosa para quem falhar é insuportável. É assim desde pequenina. Ainda no infantário, fui obrigada a ligar à educadora para lhe dizer que havia dias em que os pais não a conseguiam levar à escola e que precisávamos de recorrer à ajuda do tio. Ainda hoje, quando é preciso, entreajudamo-nos e levamos filhos e sobrinhos, de modo que se acontecesse, de um dia por entre outro, a Matilde chegar ligeiramente mais tarde, a responsabilidade não seria dela. A educadora Denise (beijinho para ela), quando alguns meninos se atrasavam muito, brincava com eles e perguntava-lhes: “Já chegaste, ó turista?” A Matilde, só de pensar que poderia chegar um pouco depois e ouvir a educadora chamar-lhe turista, entrava em sofrimento sério. Teve de me ouvir falar com a educadora para poder serenar. É a menina ansiosa a quem treme as mãos e dói a barriga em dia de certos testes, apesar de se preparar muito bem e tem de recorrer ao “sedatif”, medicamento natural, recomendado pela pediatra, mais placebo do que outra coisa, para controlar o nervosismo. Já está um bocadinho melhor. É a menina a quem tenho de lembrar que não é obrigada a ter “muito bom” a tudo. Ela diz que sim, que sabe, mas chega ressabiada quando as coisas não correm como deseja e apresenta um oitenta e oito. Para ela, abaixo de noventa não é grande coisa… Se for de oitenta cinco para cima, ainda vai, menos disso fica rezingona, o que lhe vale o epíteto de “aziada”, posto pelo irmão, que não é dessas tolices nem compreende tamanhos desvarios… Tenho o mais relaxado que possa existir e a mais ansiosa. Quem sofre é a mãe, que tem de ser diferente, a mãe que cada um deles precisa é o oposto da outra.

            Esta menina delicada e sensível é, também, alegre, sociável, mas tímida, desenrascada, proativa, mas com pelo na venta. Se lhe dá na veneta, não faz fretes e acabou a conversa! É a minha doçura que em tenra idade gostava de me preparar lanches surpresa e de ver a minha reação de felicidade, que consistia em abraçá-la muito e dar-lhe muitos beijinhos. No fim, perguntava se tinha ficado feliz. Tinha de lhe garantir que sim. Precisava extremamente desse reconhecimento, porque gosta de agradar. É a menina que me pedia abraços. “Dás-me um abraço?”. Dava, claro! Muitos e prolongados, até ela se querer soltar de mim. A adolescência limpou algumas destas características. Os afetos começam a envergonhar-se…

            Matilde, raramente me pedes abraços, agora, e quando os dou não os recusas liminarmente, mas és mais comedida, invadida pela vergonha da adolescência. Não gostas de estar na mesma escola da mãe e ainda menos de seres vista comigo. Assim que estaciono o carro, é ver-te sair porta fora o mais rapidamente que consigas! Eu compreendo, filha. E deixo-te seguir, mas sabes… Tenho saudades dos abraços e das tareias de cócegas e de beijos que vos fazia, antes de vos deitar e de vos ler a história, antes de vos adormecer.

            Quando implicáveis um com o outro para saber a quem pertencia a fatia maior do amor da mãe, eu garantia que era exatamente igual: muito e imensurável. O teu mano, mais pequeno, por falta de melhor argumento, dizia-te que eu gostava dele há mais tempo. Não havia como negar, ele é mais velho. Veio primeiro. Fazer-te entender que a partir do momento em que te aninhaste na barriga da mãe te tornaste igual no amor, não era tarefa fácil. Via sempre uma pequena sombra no teu olhar, uma certa tristeza por não seres a primogénita.

O comentário de hoje é a sombra no teu olhar. Eu sei. O teu irmão exige mais da mãe, consome-lhe mais energia e, de certa maneira, mais atenção. A tua mãe é diferente da mãe do Rodrigo, porque assim tem de ser, mas aborrece-se muito, muito menos contigo e podes ter a certeza de que a medida do amor é a mesma: muito e imensurável.

Aqui tens a tua crónica, minha pequena Mati. Dás-me um abraço?

 

Nina M.

              

           

 

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Em qualquer cais

Não te canso de esperar, Amor,
Mesmo se te não espero
Nesta vida gasta e vã

Sinto-te aninhado a meu lado
A ofereceres o peito calado
Numa ausência já prevista

Talvez fosse hora de não esperar
De desesperançar da hora tardia
Conhecer o sabor do dia

De uma manhã que raiou fria
Filha da noite sem calma
Em hora fugidia

Não te canso de esperar, Amor,
Neste inverno que é a vida
Nem em cada despedida

E  se o dia se renova
A espera feita treva
Traz esperança luminosa

Nesse nada feito ausência
A correr para o vazio
Vaga a vida como um fio

Não te canso de esperar, Amor,
Nem que leve duas vidas
Num navio encalhado

À espera em qualquer cais




sábado, 1 de novembro de 2025

Crónica de Maus Costumes 440

 

Bom senso e bom gosto

               O grande revolucionário, hoje, é aquele que mostra equilíbrio e bom senso. Entre o tudo e o nada deve haver alguma coisa e entre o céu e a terra, mais do que se possa suspeitar. Hoje, numa sociedade tão polarizada, o se não és por mim és contra mim vigora, num cerrar de fileiras surdo e absurdo.

            O jovem da casa, que alcançou há poucos meses o direito de votar, é adepto do ideal liberal. Confere. Nunca gostou e muito se contorce quando lhe ditam regras que, de alguma forma, sente como coercivas ao ser. Tenho sempre de lhe recordar que a Liberdade vem a par da responsabilidade, porque implica escolha e estas, consequências. Assim, o que nos acontece, de bom e de mau, é fruto das nossas escolhas, pelo que não adianta tergiversar.  Depois da escolha, exige-se o arcabouço para aguentar as consequências. Algumas trazem ranger de dentes. Como todo o jovem, é cheio de muitas certezas e apresenta algumas dúvidas. Tenho de o fazer pensar, constantemente, que no mundo não existe só o preto e o branco. Como me sabe adepta de políticas sociais, na área da saúde e estou sempre a lembrá-lo da enorme conquista que foi e é o nosso SNS, mesmo que esteja em agonia, por isso, temos o dever de o proteger, assim como defendo uma excelente educação pública, porque não deve haver nenhum jovem que tenha muita vontade de estudar, mas não o consiga fazer por falta de recursos ( e ambos podem coexistir com o privado, mas não deve haver desinvestimento público nestes dois setores), diz-me constantemente que sou de esquerda. Escusado será dizer que, para ele, o atual Governo é de esquerda, ao que lhe respondo que para um comunista, o mesmo é de direita. Não sei dizer exatamente o momento em que os partidos de centro se transformaram, para uns, em partidos de direita e, para outros, em partidos de esquerda. Eu sou uma social-democrata de génese europeia. Neste país, temos dois partidos que representam a social-democracia e que, se fosse noutro país, provavelmente, já se teriam fundido e as franjas de um e de outro teriam de procurar outros lugares. Na política, o vazio não existe. Significa que pretendo para o país a implementação de uma política social responsável, mas que coexista com uma economia que possa ser fulgurante. Quem não produz pouco tem para dar. A política social é implementada através dos impostos e todos devemos ser chamados à nossa responsabilidade, já que os Estados não fabricam dinheiro quando lhes apetece. São as pessoas que geram riqueza através dos seus trabalhos. Por isso, é importante haver uma economia de mercado e uma forte iniciativa privada. Quanto mais produtivo for um país, melhor política social poderá implementar, mas tem de a implementar ou reforçar de modo significativo, porque todos somos responsáveis por todos. Assim se vive nos países mais a Norte da Europa e vive-se muito bem: boa política social aliada a uma economia forte. Falta cumprir Portugal, neste sentido.

            De modo que tenho de lembrar o meu jovem que a esquerda e a direita não são apenas virtudes ou defeitos e, precisamente, por isso, há um centro democrático que deve procurar conjugar o melhor dos dois mundos. E tenho de lhe fazer entender que os direitos laborais como as oito horas de trabalho, ao invés do laborar até que o sol se deite, o direito às férias e feriados pagos, entre muitos outros, foram conquistas da esquerda e que ninguém está disposto a perder. Deve haver, sim, uma economia produtiva e funcional, mas que não singre por conta de uma escravização moderna e, por isso, o estado deve ter um papel regulador sem, no entanto, se imiscuir em demasia ou se tornar demasiado paternalista em relação aos seus cidadãos. É um equilíbrio difícil e que nem sempre é óbvio e muito menos fácil de conseguir. No entanto, é preciso haver discernimento para não sermos arrastados para um lodaçal sem exercício de uma reflexão crítica séria.

            Hoje, se alguém se atreve a dizer que deve haver um maior controlo sobre as pessoas que entram e de quem o país precisa para trabalhar, para proteção dos próprios trabalhadores, evitando que caiam em mãos mafiosas e para se saber quem entra, zelando pela segurança de todos, sujeita-se a ser apelidado de fascista. Os que defendem a abertura de portas, com regras menos exigentes são apelidados de esquerda radical, que procura o caos e a anarquia. É fascista quem se mostra preocupado com questões de segurança e defende as forças de segurança e de extrema-esquerda os que as criticam; É facho e burguês aquele que aspira a possuir alguma coisa de seu, que reconhece o valor do empresário, que cria postos de trabalho e gera riqueza, na sua maioria, o pequeno empresário que faz pela vida (com o suor dos outros todos podemos bem); comunista ou de extrema-esquerda, o que se insurge contra o patrão, ainda que possa ter razão.

            Entre estes dois polos andará a virtude e neste mundo, é um verdadeiro ato revolucionário encontrar-se o equilíbrio. É possível defender-se o imigrante e reconhecer o seu valor, respeitando-o, mas defendendo uma entrada de acordo com as necessidades do país e com as condições que o país lhes possa proporcionar; é possível defender as forças de segurança para que o país continue seguro e estas sejam reconhecidas, mas exigindo-lhes o compromisso com uma atuação respeitosa, recorrendo apenas ao uso proporcional da força, sabendo o cidadão que deve manifestar um comportamento colaborativo. É possível reconhecer o valor do patronato, mas exigir condições laborais e o patrão valorizar o trabalhador sem o qual nada seria possível.

O radicalismo na política e na vida nunca me convenceu. O seis também pode ser um nove, dependendo da perspetiva. Sempre serei de consensos. Sempre serei um ideal que reconhece a necessidade do pragmatismo. Na política, tal como na vida, a pitada dos diversos condimentos será o que lhe dá sabor. Nem só doce nem só amargo. O agridoce é-me agradável. Por mais equilíbrios e menos polarizações, com rejeição total de quem se manifesta intolerante, insultuoso e cultivador de ódios.

Resta acrescentar que o centro democrático tem a sua responsabilidade na insanidade destes tempos, porque não foi capaz de responder aos desafios, aos ressentimentos e frustrações de muitos, perdendo-se em joguinhos, malabarismos e aproveitamentos políticos. Depois, há a franja dos invejosos, imbecis e ignorantes contra os quais a razão nada pode. Contra esses, apenas o desprezo.

Como escreveu Antero, em resposta a Feliciano Castilho, na sua carta “Bom senso e bom gosto”: “pela limpeza interior duma alma que só vê e busca o bem, o belo, o verdadeiro.”

Nina M.

 

sábado, 25 de outubro de 2025

Crónica de Maus Costumes 439

 

A hora do diabo

               Estes tempos não têm corrido de feição. Esta semana o coração dos portugueses congelou com a notícia do assassinato da mãe de Vagos pelo próprio filho menor.

               Impossível ficar indiferente. Impossível não nos lembrarmos de uma série que passou em certo canal e deixou os pais em estado de alerta. Impossível não nos interrogarmos sobre o que se passa com os nossos filhos.

               Este caso tem contornos distintos… O miúdo não reagiu motivado por uma alteração emocional oriunda de uma situação causadora de conflito, por exemplo, não é produto de uma família desestruturada como tantas que sabemos existir, pelos vistos, era afável com os colegas e bom aluno, mas, aparentemente, tudo foi planeado. O último dado que li sobre o caso apontava para o facto de o menino poder sofrer de um transtorno compulsivo-obsessivo e terá chegado muito ansioso e arrependido ao centro educacional onde vai ficar. Espero que sim, que se verifique essa angústia genuína da criança, porque pode significar que ela, ainda, terá salvação. A mãe, que já partiu, quereria, certamente, que o seu menino tivesse salvação e não fosse um monstro. Se isto não se verificar, a pior das hipóteses, é tratar-se de um caso de psicopatia. Os psicopatas não sentem empatia, por deficiência biológica, e não se arrependem. Não são, contudo, inimputáveis, normalmente, pois têm a consciência do bem e do mal, apenas não estremecem perante este último. O arrependimento poderá ser um sinal positivo para este jovem que, apesar do mal, não pode ser abandonado.

               Não imagino o sofrimento do pai e do irmão que, neste momento, por um lado, têm um filho e irmão causador da tragédia familiar e de toda a dor, mas que em simultâneo, continua a ser o bebé que viram nascer e que terá sido criado com amor. Será uma ambivalência de sentimentos e uma fratura de alma que dilacera e destrói, onde o amor se mistura de modo intrincado com dor. Talvez a certeza de que não se poderá votar ao abandono, mas o terrível sofrimento de saber que aquele menino, ainda imberbe, empunhou friamente a arma e disparou pelas costas. Nada nos prepara para isto. Bastou um momento de trevas num coração e tudo ruiu.

               A mãe, a que partiu, no meio da tragédia, talvez seja a menos infeliz. Não viu quem desferiu o golpe nem o olhar glacial de quem carregou no ventre. Não viu o seu menino contra si, a quem já terá tudo perdoado.

               Resta o vazio e a incompreensão, o pesar, o desejo de que todos, sem exceção, se salvem e consigam sobreviver nos meio dos escombros. Será difícil e muito doloroso. Todos eles precisarão de um apoio silencioso e de muito respeito. Não precisam de condenações nem de julgamentos fáceis. Não precisam de comentários recriminatórios que pululam nas redes sociais. Precisam do nosso pesar e do nosso silêncio, da certeza de que o país chora juntamente com eles as dores de cada um.

               A sociedade precisa de começar a olhar mais atentamente para as suas crianças e os pais, particularmente, de tempo de qualidade com elas, com brincadeiras e conversas, mas também com a imposição de limites. Mais lentidão e menos ecrãs vorazes, mais amor. A sociedade precisa, urgentemente, de amor!

               O meu coração enlutou e o miúdo de catorze anos não me sai do pensamento como se fora meu… Há horas do diabo e a tua, pequeno jovem, foi uma delas. E eu quero tanto que te consigas salvar!

 

Nina M.

 

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Carta

A ti, meu filho, que desferiste 
O golpe fatal
Não te desculpo, mas perdoo
Uma mãe perdoa sempre tudo
Mesmo morta
Por viver com o coração
Do lado de fora
Que raiva tão fúria se te instalou
Sem que tivesse visto os teus olhos
Flamejantes como setas vorazes
Mas eu perdoo, filho,
A partida sem despedida
Queria saber o momento
Em que não soube ver
A tua ira a tua natureza feroz
Quando se deu tal que não pude perceber?
Responsabilizo-me pela tua escolha
Perdoo-te, filho, mas não me perdoo
Por não ver
Deve ter havido sinais
Um aperto de lábio crispado
Um cenho franzido
Uns punhos cerrados
Uma porta que escapou das mãos violenta
Não vi. Não soube ver.
Perdoo-te, filho,
E prefiro a minha morte
A ter de sobreviver ao desgosto
À dor emaranhada do novelo
À ruína das paredes do meu ser
À falha imperdoável de não ter visto
A sobrevivência é tua
Passares para lá do sangue
Do tiro certeiro à queima-roupa
Da frieza de quem orquestrou um plano
A morte é minha e a sobrevida é tua
Morri no instante em que me quiseste matar
Ainda antes do tiro fatal e depois do amor
Morri-te como quiseste. Sobreviveste-me
E eu perdoo-te, filho, mas não desculpo.

sábado, 18 de outubro de 2025

Crónica de Maus Costumes 438

 

Burcas e opressão

            O país incendiou com a proibição das burcas e os discursos polarizam-se e sobem de tom, num ruído ensurdecedor, perdendo-se a capacidade de ouvir e de refletir sobre o assunto. Eu não discordo da medida, apesar de saber que há constrangimentos.

Entendo haver questões mais urgentes e que exigem debate na Assembleia. Eu gostaria, sobretudo, que os deputados refletissem sobre os motivos que fazem com que o país não consiga incrementar a produção de itens de valor acrescentado, de modo a melhorar o nosso PIB para, de seguida, poder distribuir o dinheiro e aplicá-lo no Estado social. Sem dinheiro não há Estado Social de qualidade e, por isso, os serviços públicos como o SNS e a Escola pública agonizam. Há entendidos que dizem que Portugal tem capacidade para o poder fazer, que basta gizar uma estratégia bem conseguida, direcionada a três ou quatro produtos, por exemplo, no âmbito da Inteligência Artificial e das energias renováveis, para pôr a economia a mexer positivamente ao invés de se apostar apenas na prestação de serviços e turismo. Urge melhorar a capacidade produtiva do país e, por isso mesmo, é preocupante que o número de estudantes universitários tenha baixado. É fundamental investir no conhecimento e na educação para que as ideias surjam, garantindo as condições necessárias aos empreendedores para que o país se torne mais rico e, assim, consiga combater mais eficazmente as assimetrias sociais. Estas são as grandes questões que ao longo de séculos Portugal não soube resolver e me entristecem, mas não me perguntem por soluções… Não estudei economia.

O parlamento ocupou-se, porém, das burcas e o caldo entornou. Quase toda a esquerda votou contra e toda a direita votou a favor da lei da proibição. Não obstante, a esquerda fez questão de deixar claro que considera o uso obrigatório da burca inadmissível, por se tratar de um atentado à liberdade da mulher, mas votou contra uma proibição que não foi suficientemente refletida. Poderá ser, mas parece-me que o voto contra não é tanto pelo desacordo em relação ao assunto em si, mas pelo facto de a proposta ter saído de um grupo pouco escorreito e que não é propriamente amigo da mulher. Muitos deles ainda guardam saudosamente o ideal de mulher prendada, dedicada às delícias da cozinha e aos filhos e, naturalmente, absolutamente devota do marido, sem grandes ambições profissionais e pessoais e, se possível, que a sua maior qualidade seja entender que o marido tem sempre razão e a esposa existe para o servir. Eu sei disto e acredito que a maioria dos portugueses o saiba. Reina, portanto, o populismo, a propaganda e a hipocrisia. No entanto, a intenção com que se propõe não torna, necessariamente, a medida descabida. Compreendo o argumento que alerta para uma possível maior submissão da mulher, que passará a ser impedida de sair de casa por estas comunidades. Esse comportamento abusivo é crime e enquadrará, talvez, a moldura penal de violência doméstica, no entanto, as mulheres dessas comunidades nunca irão denunciar os seus maridos, quer por receio das retaliações quer por uma submissão cultural que acatam, já resignadas, fruto da opressão que sempre lhes foi imputada. Se, no mundo ocidental, o patriarcado ainda se faz sentir, principalmente, nas gerações mais velhas, o que dizer destas culturas absolutamente fechadas e castradoras da vontade das mulheres. Basta olhar para as punições violentas e inaceitáveis perpetradas contra as mulheres que saem à rua sem o tradicional lenço a cobrir o cabelo, em determinados países de religião muçulmana. Para mim, é óbvio: a aceitação advém de uma imposição opressiva e violenta feita ao longo dos tempos com manipulação religiosa à mistura. Por isso mesmo, é inadmissível que o admitamos num Estado democrático e de direito.

As razões de segurança são válidas, ainda que, neste momento, o problema não se faça sentir no país, no entanto, tem de haver coerência no que se legisla. Se os vidros dianteiros de um veículo não podem ser fumados (é expressamente proibido fazê-lo), precisamente, para se poder ver o rosto dos seus ocupantes, não me parece legítimo permitir que se ande de rosto tapado, seja quem for. Aliás, numa situação que exija a confirmação de identidade, ninguém o consegue fazer com alguém que tapa completamente o rosto. A aplicação de uma discriminação positiva não me parece de bom senso, neste caso.

Fundamentalmente, entendo (esta é a principal razão para estar de acordo com a proibição) que uma sociedade laica, livre e democrática não deve permitir comportamentos opressivos e violadores da liberdade da mulher e que comprometem a sua autodeterminação e o seu reconhecimento enquanto ser igual ao homem, nos seus direitos e deveres. A proibição é dirigida a uma peça de vestuário que apenas é a evidência da opressão, humilhação, coação e controlo que o homem exerce sobre a mulher. A burca não é um símbolo religioso e não é imposto pela religião, mas antes pelo homem tão inseguro e tão covarde que precisa de subjugar para se sentir superior. O culto religioso não lhes é proibido (o Estado é laico), o uso do lenço e de roupas largas, discretas e compridas também não lhes é vedado. Estão no seu pleno direito. De modo que não vejo em que a lei possa ser atentatória contra a liberdade individual, muito pelo contrário, estimula o sentido crítico e desperta consciências para o pleno direito de ser. Assim, a discordância que assenta no princípio de que não se está a respeitar a cultura de uma determinada comunidade pode ser falacioso. Lembro que a prática de excisão de clítoris, para muitas comunidades africanas, é entendida como normal e advém de uma cultura, mas é uma prática que não podemos nem devemos aceitar, porque se trata de uma mutilação feminina que pode provocar a morte e que impugna, desde logo, uma vivência saudável e plena da sexualidade a que a mulher tem direito. Significa que as opressões ao abrigo de uma cultura não devem ser toleradas. Tolerá-las significa perpetuar práticas, significa cair num relativismo cultural exagerado, que protege comportamentos atentatórios contra os Direitos Humanos. Anular a mulher perante a sociedade, obrigando-a a esconder-se totalmente por debaixo de um pano, atenta contra o seu direito de ser livre.

Tolerar a opressão é tornar-se opressor. Tal como afirmou Edmund Burke, há sempre um limite além do qual a tolerância deixa de ser uma virtude”.

 

Nina M.

 

 

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Leve como a brisa a queimar como sol de verão

Ainda que as ruínas do mundo
Os seus projéteis e ferozes ataques
Queiram a destruição
De quem passa como quem paira
Como quem sabe que o seu mundo é outro

Passa leve como a brisa
E queima como o sol de verão
Sabe ser chuva de outono na melancolia
E o poema em folha branca

O poema que não serve para nada
Mas transtorna a alma
Estranho às hipocrisias alheias
Às coisas pequenas e mesquinhas

Assim passa o poema e o dono
De alma altiva
Leve como a brisa e a queimar
Como sol de verão
A molhar como a chuva de outono
A despir as árvores
A pintar as suas folhas

Assim passa quem se sabe
Alheio ao que renuncia
E se por um segundo, um só segundo,
Todas as dúvidas assaltarem o coração
Vê-se por outros olhos
A sua poesia
E deixa que o mundo passe sem abalo 
Sem estugar o passo
Leve como a brisa e a queimar
Como o sol de verão



sábado, 11 de outubro de 2025

Crónica de Maus Costumes 437

 

Flotilha e Nobel

A atualidade tem sido dominada por dois temas que deixam as redes sociais em polvorosa pela polarização de opiniões que desencadeiam e por dois comportamentos de ideais opostos que, afinal, se tocam. O mais incrível é nenhuma das fações perceber que se iguala ao outro.

Começarei pela flotilha de Mariana Mortágua, também de Sofia Aparício e de Miguel Duarte. Relativamente aos dois últimos, ambos são ativistas habituais, com visibilidade maior para o Miguel Duarte, conhecido pelo seu trabalho ligado a missões civis de resgate de migrantes, no Mediterrâneo. Sei que já escrevi uma crónica a propósito, a louvar-lhe o bom coração e a generosidade. A Sofia Aparício, pelo que se sabe, também costuma marcar presença em certas manifestações em defesa de causas que considerará pertinentes. A polémica gerou-se com a participação de Mariana Mortágua. Uns consideram que procedeu mal, porque ao participar na missão, deixou de cumprir com as suas responsabilidades no Parlamento e para isso foi eleita deputada, pelo que só se quis fazer notar. Para outros, Mariana terá agido em conformidade com a sua consciência e o seu coração. A partir destas duas visões antagónicas, o caldo entornou e, obviamente, passou-se ao exagero. No meio de tudo isto, andará a virtude. Acredito que Mariana terá agido em conformidade com a sua consciência e com a minha também. Netanyahu já tinha ultrapassado os limites há muito e ninguém mais aguentava ver o extremo sofrimento do povo palestino, em especial, o horror passado pelas crianças. É importante, porém, salientar que o povo palestino estava refém de dois demónios: um exterior, o presidente de Israel e o pernicioso inimigo vindo de dentro, o Hamas. Este grupo terrorista que os usa como escudos, que os executa à luz do dia se alguém se atreve à mínima oposição e lhes confisca os bens, fruto da ajuda humanitária que lhes ia chegando, sempre mal e insuficiente. É bom não nos esquecermos de que se o Hamas tivesse um pingo de decência e de preocupação para com o seu próprio povo, talvez, as coisas não se tivessem extremado tanto. Afirmar isto, não iliba Netanyahu da matança cometida e, se houver alguma decência neste mundo, ele e Putin, um dia, responderão no Tribunal Penal Internacional (TPI) pelas suas ações.

De modo que a Mariana Mortágua não pensa diferentemente da maioria ao falar do genocídio em Gaza e está a ser injustiçada quando alegam que ela não condena o Hamas. É falso. Uma pesquisa rápida pela Internet comprova isso mesmo. Em 18 de outubro de 2023, há uma notícia em que Mortágua condena ambos os países, defendendo a autodeterminação do povo palestino, que tem o mesmo direito que os ucranianos. Eu não sou fã da Mariana, nunca votei e não votarei Bloco de Esquerda, mas nesta matéria concordo inteiramente com ela. No conflito israelo-palestiniano, a responsabilidade é dividida por ambos os povos: a existência dos colonatos, por um lado e da Fatah e, recentemente, do Hamas pelo outro. Um imbróglio de difícil resolução. O atual cessar-fogo não me convenceu totalmente, mas vamos ver o que se seguirá. Por isso, não entendo toda a celeuma em torno da Mariana, que fez o que lhe pediu o coração. Se entendo que a flotilha teve alguma importância no desenrolar dos acontecimentos? Nem por sombras. Todos os que lá iam e nós, que ficamos, sabíamos que Israel não ia autorizar a passagem da flotilha. Já Greta Thunberg tinha sido barrada. Se a ação foi importante para alertar para o que se estava a passar? Não… A menos que as pessoas sejam cegas, surdas e mudas, as televisões mostravam em horário nobre os acontecimentos. Portanto, na minha opinião, foi uma operação inócua e que não contribuiu para nada, mas o facto de ser assim não me concede o direito de maltratar a Mariana, de brincar com petições a pedir que Israel não a devolva à procedência. Estes documentos públicos são um exercício sério de democracia e de liberdade e não devem ser usados de forma leviana e jocosa. Também acredito que os ativistas sabiam, minimamente, com o que contavam. Foram detidos, é certo, mas a comunidade internacional assistia e Israel não iria querer prejudicar, ainda mais, a sua imagem no mundo. Para além de tudo, Israel é um Estado democrático e de direito, ainda, e espero que não se deteriore com a presença dos extremistas israelitas, de quem Netanyahu está refém e que são tão maus quanto o Hamas (também é preciso dizê-lo). Foi, assim, com alguma segurança que estes ativistas partiram para lá, também é bom saber-se disso. Foi um gesto válido, que implicou uma certa coragem, mas não uma coragem desmedida. Essa seria necessária para seguir até ao Iémen ou até ao Sudão, por exemplo. E não faltaria por onde escolher. Façam o seguinte exercício: procurem na Internet por países onde vigoram autocracias e aparecerá uma lista de 89 países distribuídos por listas intituladas de autocracias duras, autocracias moderadas e regimes híbridos. Significa que não faltam territórios esquecidos, a terra de ninguém que todos ignoram e onde seria urgente intervir e dar a conhecer.

Assim, a polémica em torno de Mariana não passou de um “fait divers” e de politiquice matreira para a qual não tenho paciência. Deixo, porém, um alerta: a defesa dos palestinos não deve servir de todo para o reacender de um sentimento antissemita nos países europeus. Há muitos israelitas que se opõem à política de Netanyahu. Tal como a maioria dos palestinos não é terrorista, também a maioria dos israelitas não é extremista. Ver queimar livros em praça pública porque se discorda do ponto de vista de Henrique Cymerman, com quem tantas vezes o Papa Francisco falava, é de uma ignomínia indescritível, de gente tão acéfala e fanática quanto aqueles que criticam.

Agora, a prémio Nobel Maria Corina Machado. Em primeiro lugar, é uma mulher; depois, é muito corajosa. Poderia estar noutro país, mas escolheu ficar na Venezuela, sabendo que se os esbirros do Maduro a apanham, tão cedo não vê a luz do sol, na melhor das hipóteses.

Não falta gente de esquerda descontente com a atribuição do prémio Nobel da Paz a Corina, alegando que ela pediu uma intervenção militar contra o próprio país e acusando-a de ligações perigosas a Netanyahu e a Trump, ou seja, de querer incentivar a guerra no seu país. Que raciocínio mais torpe e mais cego! Estes são os mesmo que defendem a flotilha de Mariana contra a opressão que Israel exerce sobre a palestina, mas não reconhecem o ativismo de uma mulher que luta pela liberdade no seu próprio país, desde os tempos de Chávez até ao momento atual em que Maduro mata o próprio povo à fome e o deixa na miséria. E a responsabilidade não é dos embargos dos EUA. É de um sistema político autocrático onde a corrupção, o crime, o cartel, a opressão, a má política económica e o silenciamento da oposição se fazem sentir. Esta mulher corajosa tem a força, a integridade de se opor a tudo isto e gente tonta entende que ela não merece o prémio. A mesma gente que tece loas a Cunhal e a outros pelo combate ao fascismo! Em que ficamos? O combate pela liberdade é sempre sinónimo de paz ou só é válido se for contra as autocracias de direita, porque de esquerda já não interessa?!

Não me venham com o argumento de ingerência externa, porque ninguém é tão ingénuo para não saber que a queda de uma ditadura só se faz com o apoio das forças armadas e estas, normalmente, estão ao serviço dos chefes de estado que untam muito bem as mãos e os beiços aos seus generais para que estes mantenham a ordem no quartel. Portanto, ou acontece de o movimento começar a corroer por dentro das forças armadas, mas de forma a saberem que têm apoio que os possa auxiliar ou as ditaduras perpetuam-se. Esses dois pulhas (Chávez e Maduro) aproveitaram-se da democracia para a derrubarem e se perpetuarem no poder. Não foi para isso que o povo os elegeu. Os venezuelanos não querem Nicolás Maduro. As fortes suspeitas de fraude nas últimas eleições confirmam-no, mas os canalhas são sempre canalhas. Legitimamente, se Corina Machado puder contar com o apoio de Trump para libertar o seu povo da ditadura, aproveitá-lo-á, porque se esperar pelas forças armadas do seu próprio país, compradas a peso de ouro, esperará uma vida eterna e sem sucesso. Depois, se verá, em democracia, o caminho a seguir. Para já, Corina fala numa transição segura e pacífica de um regime autocrático para um regime democrático. Assim seja.

Parabéns, Corina. Faço votos para que esse Maduro e todos os que o rodeiam e contribuíram para o desastre económico da Venezuela e para a opressão dos venezuelanos sejam rapidamente destituídos. Faço votos para que a democracia e a liberdade vençam sempre, sempre!

Não há boas ditaduras, venham elas de onde vierem e não há paz onde não houver liberdade, portanto, quem luta pela liberdade luta pela paz. Prémio bem atribuído.

 

Nina M.

 

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Terra de ninguém

A fome e o cansaço  
A angústia e o desespero
A água com sal em copo baço
Um sorriso em olhos tristes
Em equilíbrio sobre escombros

Ao longe o deserto a aridez e a poeira
Sonho longínquo de mar aberto
De rotas de viagens e descobertas
Apenas alegria sepultada

Sempre amanhece e sempre anoitece
Ergue-se o sol e deita-se a lua
O dia entra na noite
Como quem entrega a alma
Depois da perda

As fontes secam
E a água cristalina é miragem
Quem ouvirá o choro e acudirá?
Quem te lancará a mão 
Terra de ninguém?

sábado, 4 de outubro de 2025

Crónica de Maus Costumes 436

 

Democracia e Liberdade

               A semana tem decorrido com arruadas e debates, na disputa pelo executivo autárquico. Felicito todos os candidatos, e faço votos para que todos eles estejam na disposição de cumprirem com honra a missão para a qual vierem a ser eleitos.

               O tempo de campanha deve servir para o diálogo profícuo, a troca de ideias, a apresentação do projeto que se pretende desenvolver à frente da edilidade, com a comunidade e para ela. Seria tempo de diálogo sereno entre intervenientes que, eventualmente, se conhecem e se devem respeitar.

               As autárquicas têm uma característica particular : a maioria das pessoas já não olha aos partidos nem ao voto útil, mas ao candidato, de quem se espera a capacidade de fazer política de proximidade. Os futuros presidentes de câmara não se devem fechar nos gabinetes sem contactar com a realidade, para não padecerem do mesmo mal do governo central. O afastamento entre os políticos e o cidadão comum cava o fosso entre a população e a política, aumentando a perceção errónea e injusta de que a maioria dos políticos apenas se pretende servir a si mesmo e não os cidadãos. A perceção do país que habitamos parece-me distinta, quando se trata do político e do vulgar compatriota. Para o primeiro, o rosto de Portugal apresenta um rosto mais lavado, jovial e enérgico e para o segundo, um velho doente sem cura à vista. Entre uma visão e outra andará a realidade. Por essa razão, os autarcas são importantes.

A generalidade dos cidadãos talvez se preocupe mais com as faturas da água e dos resíduos que lhe chegam a casa, com a acessibilidade dos transportes, com a celeridade de licenças e outras diligências de que necessitam para a sua vida quotidiana e com os apoio para a revitalização de associações desportivas e culturais do que com a doideira dos líderes mundiais que insistem em fazer do mundo um lugar inóspito e pouco recomendável. Porém, é num pequeno canto em que vivemos e, por mais empático que se possa ser e também consciente, as nossas pequenas dores parecem sempre maiores do que as grandes dores de um mundo enorme e longínquo. Assim, o autarca deve conhecer bem a realidade dos seus munícipes e ser capaz de articular com as entidades que lhes prestam serviços e apoios, nomeadamente, as Juntas de Freguesia, a quem, em primeira instância, as pessoas se dirigem. É absolutamente essencial que todos os políticos e, em especial, os autárquicos, tenham respeito fundamental pela democracia e saibam ouvir em modo de escuta ativa o que os seus opositores têm a propor e a recomendar. Eles têm a representação que outros eleitores do mesmo município, igualmente merecedores de respeito, lhes confiaram. Assim, não é positivo quando o vencedor não sabe escutar nem consegue dialogar com verdadeiro espírito democrático e até encontrar convergências. Este é o principal problema da política : muitos advogam uma democracia que, depois, não praticam. Nunca serei capaz de entender e nem de relevar que não se chegue a consensos em matérias em que a visão estratégica não é, de todo, antagónica. Vislumbro apenas má-vontade, má-fé e sanha política. O vencedor não quer admitir que aproveitou a ideia de um adversário nem proporcionar a oportunidade para que este se vanglorie disso e este, por sua vez, não quer ceder a sua tão prezada ideia ao opositor, para a usar como troféu em debates e discussões. Enquanto duram estas guerras de alecrim e de manjerona, perde o cidadão.

Às vezes, acontecem situações deploráveis na política local : pessoas que recebem ameaças, pelo simples facto de se identificarem com outros ideais, perseguições e retaliações, com trejeitos de autoritarismo, porque alguém não cedeu a pressões do poder, assembleias em que o objetivo passa a ser o ataque usado como arma de arremesso em vez do diálogo construtor de pontes. Nunca ninguém faz tudo bem que não possa ser melhorado e nunca ninguém faz tudo mal que não possa ser emendado.

Tudo isto existe, tudo isto é triste e tudo isto poderá não ser fado, se o político quiser. Boa sorte para os candidatos. Vencerá aquele que os munícipes elegerem no sufrágio. Depois de fechadas as urnas e contados os votos, vença a democracia e a liberdade, trabalhem todos os eleitos em prol de ambas e dos seus conterrâneos. Se não forem capazes disso, saibam que não passam de fraudes travestidas de hipocrisia e, tal como Padre António Vieira, que sugere que se lance fora como inútil o pregador que não cumpre com a sua missão de servir a Cristo, não será diferente com nenhum outro ofício, principalmente, com o político que não cumpre com a missão de servir o cidadão, já que político vem de « politicus», aquele que tem por missão organizar a « polis », vulgo, cidade.

Dia 12 de outubro, os ventos da democracia cobrirão o país.

 

Nina M.