É vinho
Começo a crónica
desta semana a repetir a ideia que tantas vezes registo: como todo o ser humano,
sou mais miséria do que proeza e cometo erros e enganos, mesmo sem ser propositados.
Porém, como dizia o Ronaldo a um colega que cometeu uma falta sobre ele e lhe pediu
desculpa, porque tinha sido sem querer: “está bem, mas sem querer também é
falta.” Eu sem, sem querer, também me enganei.
Valeu-me
a simpatia e a compreensão dos colegas, a quem agradeço. Quem me conhece sabe
do meu brio profissional e fico furiosa quando falho (mesmo sem querer),
principalmente, se o meu erro trouxer transtorno aos outros. Retrato-me
publicamente, ainda que a maioria não o saiba, mas não faz mal, porque o pedido
de desculpa seguiu, imediatamente, para quem de direito. Não é uma falha que
não se possa resolver facilmente, mas sinto-a como um espinho que me fere a
carne. Assim, serve o texto para comprovar a minha absoluta imperfeição e cumpre
o efeito catártico, embora, não seja esse o fim da minha escrita.
Este
episódio obriga-me a pensar na implicação que as nossas ações têm na vida dos
outros. As nossas escolhas que conduzem a ações, já sabemos e devemos ter
consciência de que interferem na vida dos que nos rodeiam, mas mesmo uma ação
involuntária pode condicionar outras vidas ao nosso redor. Pode ser benéfico e
pode ser catastrófico. A vida do ser humano e a sua relação com o outro oscila
como um pêndulo (não como o de Foucault), entre a harmonia e o desentendimento
que só pode ser sanado por meio do diálogo. No entanto, para que isso seja uma
realidade tem de haver disponibilidade de ambas as partes para ouvir,
compreender e acolher. Olhando para o mundo, tudo isto tem faltado à humanidade.
Felizmente, nas nossas relações pessoais, encontramos sempre quem o saiba
fazer.
Ocorre-me
um episódio de infância. O senhor Claudino era um lavrador que fazia uma quinta
próxima da minha casa, vulgarmente, um caseiro. A casa tinha, em baixo, a corte
dos animais e lojas para guardar alfaias agrícolas e ferramentas e, por cima, a
cozinha, escura, com a sua pedra tosca do lar e com o soalho gasto e preto, com
tábuas rompidas, já com buracos que deixavam ver o fundo, que sempre me
causavam uma pequena ansiedade por imaginar escorregar por lá baixo, mesmo que
só coubesse um pé dos meus ou, então, o que me ocorria era que se o chão tinha
buracos, poderia ir abaixo… Enquanto os adultos conversavam, bebericavam o seu
vinho e tragavam uns nacos de presunto, acompanhado de broa, eu lá me ia arrepiando
com a possibilidade de tudo aluir, mortinha por sair dali, para terra mais
firme… Efetivamente, nunca se sabe o que se passa na mente de um gaiato… O
lavrador era brioso (acho que o são, na generalidade) e ancho das suas
habilidades, portanto, ninguém poderia ter melhores colheitas e produtos do que
aqueles que lhe saíam do seu esforço e das mãos. Para além da quinta, o senhor
Claudino fazia outros trabalhos para fora. Era ele quem podava as ramadas de
muitos. Na época da poda, naquela altura toda a gente tinha ramada para
produzir o seu próprio vinho… Amargo como trovisco e pior que vinho de pacote, enquanto
houve ramada em casa, depois da morte do meu avô, que sabia bem do ofício da
poda, vinha lá o senhor Claudino. Para além da jeira, era comum o dono da casa
oferecer o almoço ao podador, de modo que nos dois dias em que o senhor lá
andasse, comia por lá. A preocupação do meu pai era arranjar um vinho que satisfizesse
o paladar apurado do apreciador… A conversa breve repetia-se todos os anos.
O
meu pai enchia-lhe o copo e ficava à espera do veredicto. Assim que o senhor
Claudino enfiasse os beiços e o néctar lhe escorregasse goela abaixo, o meu pai
perguntava:
-
Então, Claudino? Que tal a pinga?
Invariavelmente,
ouvia sempre a mesma resposta:
- É vinho.
Lacónico, de
poucas falas a olhar por baixo, a sentença estava dada. Admitir que aquele
vinho era bom, seria menosprezar, no seu entendimento, o seu próprio produto.
Portanto, a resposta poderia ser: não é mau, mas o meu é melhor. Mesmo que não
fosse verdade, para ele era assim. Sempre todo ufano.
Todos os anos o
meu pai repetia a diatribe, porque já sabia a resposta, que era,
invariavelmente, a mesma. Também a dava em casa de outras pessoas, pelo que
quando se cruzavam lá comentavam o sucedido.
O senhor
Claudino era assim. Não desfazia o seu produto. Orgulhoso do que produzia, não condescendia,
facilmente. Depois, juntou dinheiro, lá deixou a quinta, para se mudar para
Fundo de Vila, junto ao rio, onde não morava ninguém, metido no meio do monte.
Comprou terras e lá as cultivava mais o filhos e a Eva, mulher varonil e
hercúlea que se viu consumida para atravessar a Ponte D. Luís, no Porto, com a
ceira do farnel à cabeça, por ver o rio lá em baixo e achar que ia cair. As
palavras da desgraçada eram: “Ai! os meu boizinhos! Nem por isso apelava pelos
filhos! Mas o que há a admirar? Filhos em catadupa que só davam o que fazer… Realmente,
os bois não aborreciam tanto!
Aos domingos,
quando os meus pais se lembravam de o ir visitar, era um degredo… A canalha
acha sempre a companhia dos adultos um aborrecimento e eu também o pensava e o
problema era que o tempo parecia parar. A única coisa boa que havia na visita
era o presunto caseiro, dos porcos que lá criava. Já em miúda gostava de
presunto e de broa! Na gravidez, enjoei o carapau, mas o presunto e a broa
nunca me causaram fastio!
De maneira que,
lá por casa, entrou a expressão “é vinho”, como dizia o senhor Claudino, quando
alguém acha que tem uma especialidade qualquer que, afinal, se revelou um logro
ou quando queremos, apenas, brincar uns com os outros…
É vinho e “in
vino veritas est”.
Nina M.
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