Porta das petições II
Deveria
fazer como o rei do Conto da “Ilha Desconhecida”, de Saramago, e arranjar um
primeiro secretário, que por sua vez chamava o segundo e este o terceiro, que
chamava o primeiro ajudante e por aí adiante até chegar à mulher da limpeza que
abria a porta das petições para ouvir o homem dizer que queria um barco…
Acontece que
cá em casa a mulher da limpeza sou eu, pelo que acabaria por me caber abrir a
porta das petições e perguntar às mulheres:
- Que quereis?
- Uma crónica que seja um brinde à nossa amizade.
Lá acabaria
por dizer que iria ver o que se podia arranjar e como elas fizessem como o suplicante
do conto e se fossem sentar a um canto da porta até lhes fazerem chegar o escrito,
é melhor satisfazer-lhes a vontade com o coração grato e disponível.
Honrarei
Aristóteles. Ficai a saber, amigas, que este grego prezava imensamente a
amizade. Para ele, este vínculo é essencial para os seres humanos, porquanto
lhes permite alcançar a eudaimonia (conceito traduzido, normalmente, por
felicidade). Segundo ele, as relações sociais são vitais para o desenvolvimento
ético e moral do homem. Tem razão, pois claro. O homem não é sozinho e
descobre-se na relação com o outro, que nos obriga a estabelecer os nossos
limites e a nossa ética que pode ou não se enquadrar na moralidade vigente, mas
que só é construída na relação com o outro. Estes gregos sabiam umas coisas e
deixam-nos um legado extraordinário e atual. De modo que, ficais a saber que se
Aristóteles fosse vivo, provavelmente, seria utilizador de redes sociais e,
mais certo ainda, não dispensaria um jantar, na companhia de amigos, tal como
fizemos. Dizia ele que a amizade poderia
ser de três tipos diferentes: a amizade útil, que é aquela em que ambas as
partes beneficiam da relação. As pessoas juntam-se porque se podem ajudar de
alguma maneira, mas também é superficial, pois desaparece a utilidade e
desaparece a amizade. Acontece com os colegas de trabalho com quem temos de
colaborar, mas com quem não mantemos contacto fora do âmbito profissional.
Depois, há a amizade por prazer, aquela que se fundamenta na busca de prazer e
de diversão, visível naqueles que se juntam para o exercício de determinada atividade
recreativa ou festa. Esta também é passageira. Basta que os interesses mudem e
eles mudam ao longo da vida e a amizade termina. Por fim, vem a amizade por
virtude: a mais duradoura e elevada. Esta baseia-se na apreciação mútua do carácter
e da bondade do outro, desejam o bem de forma altruísta e partilham valores.
Esta amizade é mais rara e exige tempo e intimidade para que se possa
estabelecer.
Creio que já
percebestes (sois mulheres perspicazes) aonde vai desaguar a conversa.
Obviamente, a nossa amizade encontra-se no estágio número três, mas percorreu
as três etapas, necessariamente. Passamos pela utilidade. Conhecemo-nos em
contexto laboral, depois, juntamos à utilidade a diversão, ocasionalmente, e,
entretanto, muitos anos depois, já em lugares de trabalho diferentes,
continuamos a marcar encontro e a falarmos, menos do que aquilo que deveria ser,
na verdade, mas a vida não está com contemplações e obriga-nos, sempre a muita
ocupação. Todos sabemos que não deveria ser assim. Não se pode adiar o amor
como não se pode adiar a amizade e umas tantas outras coisas, mas passamos uma
vida inteira a fazê-lo e a arrependermo-nos, para voltar a falhar
consecutivamente. Felizmente, vamos conseguindo manter de pé o encontro anual.
Por mais jantares e encontros brindados com sorrisos!
Conhecemo-nos
na mesma escola. Primeiro a Adelaide e a Zé, depois a Sofia e eu, no mesmo ano,
ambas grávidas. Uma no fim de gravidez, a parir em dezembro e a outra em junho.
Em seguida, vieste tu, Lurdes, completar o ramalhete. Quiseram os deuses que
colaborássemos, que nos divertíssemos algumas vezes e que a amizade por virtude
ficasse.
Vou dizer-vos o que mais aprecio no
grupo: a ausência de ego. Nenhuma se considera o alfa e o ómega e olhai, mulheres,
que tendes boas qualidades: sois competentes, profissionais e empáticas, mas há
em vós um desassombro que me agrada profundamente. Gosto de gente desassombrada
e livre de vaidades inócuas. Num mundo onde todos se acham tão cheios de si,
encontrar pessoas que sabem que fazem um bom trabalho, mas que encaram esse
facto com naturalidade e sem artifícios, permitiu construir esta relação de
confiança mútua, que nos permite certas partilhas e muitas, muitas risadas. Temos
histórias desde o palheiro da Lurdes até Paris! Já sei, Lurdes, fui uma boa
guia turística e muito convincente, ninguém duvidaria do meu conhecimento e até
fui enfermeira do “chouchou de la maîtresse”, o diabo do rapaz logo tinha de
querer experimentar os serviços do SAMU e os hospitais franceses! Valha-nos ao
menos que o médico era uma simpatia! Convosco, ainda arriscaria a mais uma
viagem de autocarro para Paris (Deus me livre!) onde só a madame Lurdes
consegue dormir “super bem!”
Por mais
jantares e brindes à amizade e que a nossa nunca perca a virtude!
Nina M.
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