Seguidores

sábado, 15 de novembro de 2025

Crónica de Maus Costumes 442

 

Porta das petições II

            Deveria fazer como o rei do Conto da “Ilha Desconhecida”, de Saramago, e arranjar um primeiro secretário, que por sua vez chamava o segundo e este o terceiro, que chamava o primeiro ajudante e por aí adiante até chegar à mulher da limpeza que abria a porta das petições para ouvir o homem dizer que queria um barco…

            Acontece que cá em casa a mulher da limpeza sou eu, pelo que acabaria por me caber abrir a porta das petições e perguntar às mulheres:

 - Que quereis?

- Uma crónica que seja um brinde à nossa amizade.

            Lá acabaria por dizer que iria ver o que se podia arranjar e como elas fizessem como o suplicante do conto e se fossem sentar a um canto da porta até lhes fazerem chegar o escrito, é melhor satisfazer-lhes a vontade com o coração grato e disponível.

            Honrarei Aristóteles. Ficai a saber, amigas, que este grego prezava imensamente a amizade. Para ele, este vínculo é essencial para os seres humanos, porquanto lhes permite alcançar a eudaimonia (conceito traduzido, normalmente, por felicidade). Segundo ele, as relações sociais são vitais para o desenvolvimento ético e moral do homem. Tem razão, pois claro. O homem não é sozinho e descobre-se na relação com o outro, que nos obriga a estabelecer os nossos limites e a nossa ética que pode ou não se enquadrar na moralidade vigente, mas que só é construída na relação com o outro. Estes gregos sabiam umas coisas e deixam-nos um legado extraordinário e atual. De modo que, ficais a saber que se Aristóteles fosse vivo, provavelmente, seria utilizador de redes sociais e, mais certo ainda, não dispensaria um jantar, na companhia de amigos, tal como fizemos.  Dizia ele que a amizade poderia ser de três tipos diferentes: a amizade útil, que é aquela em que ambas as partes beneficiam da relação. As pessoas juntam-se porque se podem ajudar de alguma maneira, mas também é superficial, pois desaparece a utilidade e desaparece a amizade. Acontece com os colegas de trabalho com quem temos de colaborar, mas com quem não mantemos contacto fora do âmbito profissional. Depois, há a amizade por prazer, aquela que se fundamenta na busca de prazer e de diversão, visível naqueles que se juntam para o exercício de determinada atividade recreativa ou festa. Esta também é passageira. Basta que os interesses mudem e eles mudam ao longo da vida e a amizade termina. Por fim, vem a amizade por virtude: a mais duradoura e elevada. Esta baseia-se na apreciação mútua do carácter e da bondade do outro, desejam o bem de forma altruísta e partilham valores. Esta amizade é mais rara e exige tempo e intimidade para que se possa estabelecer.

            Creio que já percebestes (sois mulheres perspicazes) aonde vai desaguar a conversa. Obviamente, a nossa amizade encontra-se no estágio número três, mas percorreu as três etapas, necessariamente. Passamos pela utilidade. Conhecemo-nos em contexto laboral, depois, juntamos à utilidade a diversão, ocasionalmente, e, entretanto, muitos anos depois, já em lugares de trabalho diferentes, continuamos a marcar encontro e a falarmos, menos do que aquilo que deveria ser, na verdade, mas a vida não está com contemplações e obriga-nos, sempre a muita ocupação. Todos sabemos que não deveria ser assim. Não se pode adiar o amor como não se pode adiar a amizade e umas tantas outras coisas, mas passamos uma vida inteira a fazê-lo e a arrependermo-nos, para voltar a falhar consecutivamente. Felizmente, vamos conseguindo manter de pé o encontro anual. Por mais jantares e encontros brindados com sorrisos!

            Conhecemo-nos na mesma escola. Primeiro a Adelaide e a Zé, depois a Sofia e eu, no mesmo ano, ambas grávidas. Uma no fim de gravidez, a parir em dezembro e a outra em junho. Em seguida, vieste tu, Lurdes, completar o ramalhete. Quiseram os deuses que colaborássemos, que nos divertíssemos algumas vezes e que a amizade por virtude ficasse.

Vou dizer-vos o que mais aprecio no grupo: a ausência de ego. Nenhuma se considera o alfa e o ómega e olhai, mulheres, que tendes boas qualidades: sois competentes, profissionais e empáticas, mas há em vós um desassombro que me agrada profundamente. Gosto de gente desassombrada e livre de vaidades inócuas. Num mundo onde todos se acham tão cheios de si, encontrar pessoas que sabem que fazem um bom trabalho, mas que encaram esse facto com naturalidade e sem artifícios, permitiu construir esta relação de confiança mútua, que nos permite certas partilhas e muitas, muitas risadas. Temos histórias desde o palheiro da Lurdes até Paris! Já sei, Lurdes, fui uma boa guia turística e muito convincente, ninguém duvidaria do meu conhecimento e até fui enfermeira do “chouchou de la maîtresse”, o diabo do rapaz logo tinha de querer experimentar os serviços do SAMU e os hospitais franceses! Valha-nos ao menos que o médico era uma simpatia! Convosco, ainda arriscaria a mais uma viagem de autocarro para Paris (Deus me livre!) onde só a madame Lurdes consegue dormir “super bem!”

            Por mais jantares e brindes à amizade e que a nossa nunca perca a virtude!

 

Nina M.

           

 

 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário