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sábado, 6 de dezembro de 2025

Crónica de Maus Costumes 445

 

Por dias melhores

               Li um texto que me surgiu na rede onde publico e que me fez regressar no tempo. A autora remetia para um Portugal miserável, em que as mulheres, absolutamente submissas, tinham de ser os esteios da casa e suportar os desvarios alcoólicos dos maridos. Se estes tinham “bom vinho”, como é uso dizer-se, a coisa sempre ia, mas o maior fadário era quando o “mau vinho” punha cá fora a ruindade, normalmente, gerida em silêncio. Era pancadaria de meia-noite!

               Na minha freguesia, havia um caso desses. Era habitual, à segunda-feira, ouvir-se que a Maria (nome fictício), para não ferir suscetibilidades nem expor ninguém, tinha levado uma tareia do Zé (também fictício), porque o desgraçado chegou embriagado e desatou à pancada na mulher. Lembra o Sebastião da música infantil que comia tudo e, no fim, ainda, arreava na mulher! Esta violência povoava, inclusivamente, o universo das letras das músicas infantis, a comprovar que era social e culturalmente aceite que o Sebastião, o grande grunho barrigudo, depois de encher a pança, desse pancada na mulher. Eu sempre me lembro de, em pequena, esta letra e a do “atirei o pau ao gato” me meter uma confusão medonha! Aquilo nunca me fez qualquer sentido porque, em minha casa, ninguém atirava paus a gatos e muito menos o Sebastião, neste caso, João, o meu pai, sequer esboçou qualquer gesto de agressão à sua mulher e filhos! Bem pelo contrário! Fui muito menina do seu papá, como deve ser! Portanto, lembro-me, sim, de essas letras me deixarem desconcertada. O meu universo era distinto de tudo aquilo…

               Já me desviei do assunto… O fluxo do pensamento tem estas derivas, há que as suportar. Dizia que a Maria era frequentemente espancada pelo Zé, até ao dia em que decidiu parar com aquilo. Bendita coragem! Houve um sábado que ela não esteve pelos ajustes. Preparou-se para se defender. O marido, tal como era habitual, ia para o café, depois do jantar, e a mulher ficava a arrumar a cozinha e a cuidar dos filhos. A mentalidade comum era esta. Nessa noite, a coisa correu mal ao sujeito. Embebedar-se, embebedou, o mau vinho também apareceu, mas dessa vez a Maria não se aquietou, houve sublevação e quem levou uma valente tareia foi o Zé. O álcool tirara-lhe parte das forças e a esposa, mulher do campo, habituada à lida, à vida dura e à força braçal, pôs o Zé no lugar. Quem vai à guerra dá e leva. Na segunda-feira, a novidade percorrera a aldeia e as mulheres, entre sussurros, diziam, fez ela muito bem! Pecou por ser tão tarde! Aquela besta, sempre a arrear-lhe sem ter qualquer razão para isso! Eram estas as palavras… Notemos o discurso subliminar… As próprias mulheres entendiam que lhes pudessem bater se elas se portassem mal, se o seu comportamento não fosse o que se esperava de uma mulher, ou seja, se ela não tratasse da casa e não lhe fizesse a comida e coisas do género… Não entendiam que por mais que uma mulher pudesse ser falha, isso não justificava a violência, porque ninguém pode agredir o outro, já que ninguém é propriedade de alguém.

               É deste Portugal atrasado, mesquinho e miserável, analfabeto, em que os homens lavavam o estômago com vinho, em que as mulheres eram espancadas e os filhos saciados com sopas de vinho e chupetas de aguardente, de que muitos têm saudades! Do tempo em que as crianças enregelavam de tanto frio, levavam pedras aquecidas nas lareiras nas mãos para combater a geada ou os nevões, andavam de socos, na melhor das hipóteses, e descalços na pior delas, sem meias, sem casacos, à espera de que as senhoras burguesas e caridosas lhes fizessem os camisolinhas de lã para os pobres, como expiação dos pecados e alívio das consciências. Um país miserável e motivo de vergonha, até da alheia, cujo único refúgio consistia na religião que acolhia os pobres e lhes garantia serem os prediletos de Jesus. E eram, mas uma religião sem obra é como uma comida sem sal. Tem-se a forma, falta o sabor. E a religião incutida também era um quadro tenebroso. Deus não era amor! Era um Ser Supremo, omnipotente, omnisciente e omnipresente (qual big brother!) disposto aos piores castigos! Só de pensar nisso… Aquela gente já era tão, mas tão miserável, tão desgraçada, tão subjugada e com pouca esperança no futuro, se é que nele pensavam, porque a vida era aquilo que conheciam: tormenta, mas ainda havia a necessidade de os amedrontar com um hipotético castigo de penas infernais, na outra vida! Alertar para o perigo do inferno a quem por ele passou enquanto viveu! Sempre tem a sua graça… A mudança começou com o Concílio Vaticano II, ou melhor, o retorno às raízes da mensagem evangélica de amor deixada por Jesus. Poucos se questionariam sobre a figura severa de Deus, num país analfabeto, em que a vida era feita do nascer ao pôr do sol, à procura do sustento, que nunca era suficiente. A sardinha tinha de dar para quatro e a canalha comia o rabo para não se engasgar com as espinhas. Não admira que, naquela altura, fôssemos um país pequeno, de gente mirrada e raquítica, com falta de dentes e completamente acabados aos cinquenta anos! Um país em que tantos passavam a salto à França, sem dinheiro e com dois ou três salpicões e pão, para irem aguentando a fome durante a viagem. Ver fotografias deles é ver os refugiados da atualidade. É neste mesmo país pobre, que se vê amiúde esventrado por levas de emigração, que há alguns que se atrevem a erguer a voz àqueles que vêm, iguais a tantos de nós que um dia também foram!

               Surge-me o avô paterno Francisco, homem franzino, trigueiro, baixo, sempre de cigarro no canto da boca. O lábio já tinha calo. A sua boca só se despedia dos Definitivos para dormir. O domingo inteiro com o cigarrito que lhe amarelava os dedos. Isso e o copito de tinto que bebericava e oferecia às visitas de domingo. Já só jantava chá com bolacha Maria e comia petinga frita quase diariamente. Creio que o seu estômago se habituou à parcimónia. A Fartura faz mal. Faleceu o avô Chico aos setenta e qualquer coisa, de trombose… O homem que gostava de pregar partidas à vizinhança e que trabalhava como carpinteiro para quem lhe encomendasse serviço. Os filhos aprenderam com ele a arte, mas todos vieram a arranjar outros trabalhos, assim que a vida melhorou, depois do vinte e cinco de abril, quando a educação e a saúde se começaram a abrir às massas, as melhores conquistas de abril, juntamente, com a liberdade, obviamente.

               Há, ainda, muito por cumprir! Imenso! É preciso defender a educação e a saúde públicas como garantia de combate às assimetrias sociais que persistem. É preciso tornar o país mais produtivo. Urgente! É preciso muita coisa, mas querer olhar para trás, com saudade de um país obscuro e miserável, não! Não acredito haver quem possa sentir nostalgia da miséria. A saudade é mais funda… É da memória afetiva de certos momentos… De descobrir que no sapatinho de Natal havia um molete e uma maçã! E era dia de festa, por isso! A memória que se enternece com tamanha simplicidade e pureza e é essa limpidez de alma que o ser gosta de resgatar.

               O meu pai conseguia comer bacalhau, no Natal. Na consoada era à grande; no resto dos dias reinava a miséria. Talvez a regueifa e os Definitivos que sempre levava ao avô Francisco quando íamos a Vila Boa de Quires, fosse a compensação pelo bacalhau de que sempre gostou!

               Por dias melhores!

 

Nina M.

 

 

 

 

 

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