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sexta-feira, 20 de julho de 2018

Poesia




Era poeta. Escreveu-lhe poemas, porque sabia que ela gostava. Estratégia de quem espera alcançar a glória e repousar longamente no seu corpo. Ofereceu-lhe outros escritos por outrem, mas que diziam o que ele não fora capaz de pôr por palavras.

Trinta anos depois, esporadicamente, ainda os reliam. Quando a saudade trazida pela lembrança ainda fazia nó no coração e pregas na alma. Então, sentiam-se um trapo. As memórias do que tinha sido não eram cristalinas e apareciam envoltas numa névoa de dúvida.

Questionavam-se se também o outro ainda era assaltado por si nos seus pensamentos, mesmo que raramente. Se efetivamente sentiu o que escreveu e o que mostrou em ciúme travesso e pueril. Não tinham direito a nada, mas queriam tudo.

“Deixa que corra paralelamente à tua/ A minha vida, vivida assim, dá-me a mão”. Terminava assim um dos seus poemas e paralelas se tornaram a vida de ambos. As linhas paralelas não se cruzam, todos o sabem.

Como eles se atreveram a entrelaçá-las e a desordenar o concerto do mundo, foram punidos pelo crime. Foi longo e doloroso o castigo imposto a quem se atreve a quebrar regras que regem o universo. Supõe-se que tem de ser, para andar tudo concertado. E no meio de tanta ordem, viravam costas dois corações quebrados, usados pela vida como trapos esfrangalhados para limpar o chão.

Depois da vida, a morte, e na ressurreição subsequente, há que saber renascer sob nova forma e aparato mais alinhado, não vá Clio aborrecer-se por lhe abalarem a ordenação dos acontecimentos e lembrar-se de nova punição…

 De modo que se perderam um do outro sem saberem se efetivamente foi assim, por ausência de despedida. Esporadicamente, cada um, na sua realidade, perguntava-se pelo outro. No entanto, nenhum se atrevia a pontapear o alinhamento da existência e assim, mornamente passavam pelos pingos da chuva que lhes traziam saudade.

Há quem diga que esta é o amor que fica…


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