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sábado, 29 de outubro de 2022

Crónica de Maus Costumes 297

 “Saramago, Ainda e Sempre”

Constitui o subtítulo “Saramago, Ainda e Sempre” o mote da tertúlia a que acabo de assistir, no âmbito da comemoração do centenário de José Saramago     , iniciativa da Câmara Municipal de Paços de Ferreira, por intermédio do pelouro da cultura, em parceria com a Biblioteca Municipal Professor Vieira Dinis.
Normalmente, eu venho agradada destas iniciativas culturais e hoje não foi exceção, ainda que parte do que ouvi sobre o autor e a sua obra não tenha constituído novidade para mim. Congratulo, porém, todas as iniciativas que possam tornar o Nobel próximo das pessoas, garantindo a perpetuação da sua obra e, por consequência, a sua própria imortalidade. O painel era constituído pela Dra. Manuela Bentes, responsável pela condução da conversa e os ilustres convidados, pelo Dr. José Carlos Vasconcelos, filho desta terra, o grande timoneiro do Jornal Artes, Letras e Ideias, conseguindo mantê-lo vivo já há quarenta e dois anos e também coordenador do Gabinete Editorial da “Visão e por um dos responsáveis pela Fundação Saramago, Dr. Sérgio Letria.
O meu agrado prende-se, sobretudo, com as experiências narradas pelos convidados que tiveram, ambos, o privilégio de privar com Saramago. José Carlos de Vasconcelos esteve presente em Estocolmo, para além de ter sido o primeiro jornalista a entrevistar Saramago para a televisão. O Sérgio Letria trabalha na Fundação desde a sua criação, em dois mil e sete, projeto do próprio Saramago. (Ainda venho meio abismada com a forte semelhança física entre ele e o Valter Hugo Mãe!).
O Homem por detrás do escritor, de aparência dura, firme e distante era também um homem de afetos. Testemunhos vários confirmaram já a generosidade de Saramago. A geração dos escritores contemporâneos, todos eles crescidos com Saramago, não tem pejo em referir essa generosidade do ilustre em relação aos iniciantes nas lides da escrita. Hoje, foi uma vez mais confirmada. Ficamos a saber que a Fundação é sustentada com os direitos de autor de Saramago e com as vendas de livros e outras atividades que organize. Mostra coerência e lisura por parte do escritor. Ouvir contar que quando saía um novo livro, Saramago insistia em premiar monetariamente os funcionários da editora, do seu próprio bolso, por meio dos direitos de autor é extraordinário ou que certa vez, no Brasil, o puseram apenas a ele num hotel de luxo e o resto da comitiva portuguesa noutro menos conceituado e ele decidiu acompanhá-los, trocando o luxo pelo respeito para com os outros, é de valor. Na verdade, gostei da confirmação de que nos pequenos gestos do quotidiano, o escritor mostrava a mesma militância cívica e o mesmo humanismo de que a sua obra é exemplo. Saramago mantinha a coerência. O brilhante e inusitado discurso que faz em Estocolmo, aproveitando a ocasião para lembrar os atropelos constantes aos Direitos do Homem, responsabilizando os grandes líderes e os cidadãos que os elegem foi de uma coragem e lucidez admiráveis. Fiquei feliz por ver confirmada a minha suspeição: não se pode acusar o Nobel de hipocrisia. Ainda que esta seja um mal necessário para as boas relações sociais, há níveis intoleráveis de hipocrisia e queira-se ou não, apesar de sermos capazes de distinguir o autor da obra, esta não deixa de sofrer, caso o seu autor se revele absolutamente dissimulado. O génio literário continua a ser uma figura controversa. Há quem não goste dele e é legítimo, poderemos, eventualmente, discordar da sua orientação política e da sua visão de mundo, mas não se vislumbra nele hipocrisia, o que o torna autêntico e confiável. Mesmo quando se refugiou em Lanzarote, após a censura vergonhosa do seu “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, que o impediu de concorrer a um prémio europeu, não deixou de continuar a pagar os impostos no seu país, embora estivesse desiludido e zangado com as figuras proeminentes de então e, naturalmente, com razão.
As meias-palavras ditas por José Carlos de Vasconcelos a propósito do meio em que se movimentam os escritores, afirmando que era melhor não sabermos desse ambiente, revelam muito. Lembrei-me imediatamente da hipocrisia e da inveja que Miguel Torga não tolerava e que faziam com que ele permanecesse longe desse covil.
Gosto de descobrir que as pessoas por detrás dos escritores, apesar de não serem nem santas nem heróis, não maculam o respeito que lhes dedicamos e, principalmente, os valores que os vemos defender.
Saramago tinha, certamente, os seus defeitos e apesar de podermos discordar de algumas das suas ideias, os princípios de liberdade, de justiça, de paz, de combate à desigualdade social por ele preconizados continuam a ser não só válidos como absolutamente necessários para que a sociedade se humanize.
Ele era um militante cívico que sempre lutou através da palavra por um mundo mais justo e esse mérito, ninguém lhe pode retirar.
 
Nina M.

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