Um homem bom
Terminei há relativamente pouco tempo a leitura da biografia de Rui
Nabeiro, o célebre fundador da Delta, escrita pelo também alentejano José Luís
Peixoto. Quem esperar uma biografia escrita num estilo mais tradicional, pode
esquecer a ideia, porque não é isso que encontrará.
Na verdade, Peixoto transforma o
senhor comendador ou o senhor Rui, como é mais frequentemente tratado, numa
personagem de romance que nos vai dando a conhecer, através de momentos
retrospetivos e aleatórios, o seu trajeto. Quem lê fica com a sensação de que
se trata de um romance de memória. O leitor é guiado pelas memórias do senhor
Rui, que através do espaço interior da personagem, num longo monólogo, vai
contando pedaços da sua vida. O José Luís Peixoto fez um bom trabalho, porque,
efetivamente, aquilo que há a conhecer do senhor Rui ou pelo menos aquilo que o
ancião não se importa que saibam não daria para encher, num discurso mais
direto as muitas páginas do livro.
Destaca-se, no percurso do senhor
Nabeiro, a infância sofrida na ditadura salazarista. Não muito diferente da que
teve o meu pai, por exemplo. Tal como ele, também o meu pai começou por
trabalhar aos dez anos, como carpinteiro, com o seu pai. Ele e os muitos
irmãos. Eram onze irmãos vivos. Neste momento, restam o meu pai e mais quatro.
Não convivi com todos de igual forma e três dos que mais me diziam já não estão
cá. O meu pai contava-nos histórias mirabolantes das sua infância, com exageros
pelo meio, mas que faziam o meu primo Paulo João (afilhado dos meus pais) rir-se
até às lágrimas e pedir: “Ó tio João,
conte outra!” O meu tio Tónio (António, pois claro), sufocava de tanto rir e,
nós também, obviamente. Conhecíamos as histórias de cor, mas invariavelmente,
de quinze em quinze dias, depois do jantar, em casa do meu tio, em Ramalde,
ouvíamos as histórias como se fosse a primeira vez e a veia artística do meu pai
para as contar. Risada certa. Desde propor uma troca de meias com o avô por
supostamente não gostar da cor e deixar-lhe na gaveta umas meias de senhora
rotas. Durou pouco a esperteza, porque foi obrigado a devolvê-las. Ou a
história do meu tio Manel que roubou uma melancia e escondeu-a para ninguém
saber, mas comeu-a quente, o que lhe causou uma disenteria terrível, ou ainda o
estratagema montado para poderem comer a galinha que cirandava pelo quintal e o
meu pai decide dar-lhe uma fisgada para a matar, no entanto, a mãe viu-a a
rodopiar e pensou que ela estava doente e, por isso, enterrou-a e não houve
galinha para ninguém… Enfim, um tempo duro de fome e de miséria. A infância da
minha mãe acabou por ser um pouco melhor, por ser a mais nova dos irmãos e, com
a ajuda dos patrões para quem os meus avós trabalharam, da família Ferreira
Gomes, primeiro em Penafiel e depois no Porto, lá conseguiu estudar e fazer o
magistério primário. No entanto, quando tinha apenas onze anos, só via a mãe de
três em três meses, por estar em Penafiel, em casa dos senhores e a minha avó
ter regressado às suas origens, a Chã de Ferreira.
Rui Nabeiro tem uma bela história
vida. Com muito trabalho construiu o património imenso que hoje possui. Um
empresário que fez da Delta o seu projeto de vida, a par da família que
construiu com a sua Alice (a esposa). Destaca-se a sua generosidade e a sua perseverança.
Meteu na cabeça que haveria de ser rico, mas queria ser um rico diferente. Um
homem que nunca gostou de dizer não e que ajudava a quem ele recorria, por gostar de ver
as pessoas a sorrir. Privou com Mário Soares e outras figuras ilustres da
política. Percebemos as dificuldades que o senhor Rui sentiu para estabelecer
negócios em Timor e também em Angola, mas fica o retrato de um homem otimista,
que contribuiu e contribui para o crescimento da terra que o viu nascer e que
apresenta uma postura diferenciada no mundo dos negócios. Todos gostam de Rui
Nabeiro. Fiquei com a sensação que metade de Campo Maior é habitada pelos seus
inúmeros afilhados. Os seus funcionários têm seguro de saúde entre outras
regalias e a Delta construiu um centro educativo (com apoio estatal) e que os
filhos dos seus funcionários frequentam. Um homem que se diz socialista e
democrata e que, de facto, o põe em prática. Quando as ações corroboram as
palavras, a coerência é inabalável. Um verdadeiro exemplo de cidadania e de
humanismo. Com noventa anos, continua a ir diariamente à Fábrica, a menina dos
seus olhos, e a tomar decisões. Recusou ofertas escandalosas para comprar a
Delta. Diz que nem ele sabia contar dinheiro com tantos zeros (e estava
habituado a muitos), porque um sonho não tem preço.
O
senhor Rui fica muito bem na fotografia, desconhecemos-lhe defeitos e a
história do contrabando, que era muito comum na raia durante o salazarismo e no
qual participou, fica por contar…
Fica a admiração profunda pelo
senhor Nabeiro, mas em simultâneo a certeza de que pouco foi desvendado.
Ninguém vive noventa anos sem mácula. O senhor Rui há de ter as suas e não
mancharia nada a excecionalidade do seu bom coração e do seu caráter. Fica-nos a
sensação ou de estarmos na presença de um santo ou na de um ser humano pouco credível
dada a sua excecionalidade. Ninguém tem apenas virtudes, mas são estas apenas que
nos são narradas. A publicação mediática do livro foi uma bela homenagem, no
dia em que festejou os seus noventa anos, mas não ficamos a conhecer verdadeiramente
o protagonista. Trata-se de uma constatação e não propriamente uma crítica. Compreendo
perfeitamente os seus motivos.
Pelas
mesmas razões, quanto a biografias, eu sou mais como Pessoa, até o 13 de junho
de nascimento lhe copio, e a data da minha morte ditará Deus (nunca antes dos noventa
e com saúde, caso contrário terá de me ouvir). Entre ambas todos os dias me
pertencem. Biografia feita.
Nina
M.
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