Memorial de Saramago
“Olharem-se era a casa de ambos”. Uma das
belas frases que se pode ler no Memorial
do Convento, de Saramago, em relação ao par romântico Baltasar Sete-sóis e
Blimunda Sete-luas (assim batizada sem cerimónia, apenas por alcunha do padre
Bartolomeu de Gusmão, o deus criador da passarola).
A
publicação do livro data de 1982. Um período literário áureo de Saramago.
Veja-se: 1980 – Levantado do Chão;
1982 – Memorial do Convento; 1984 – O Ano da Morte de Ricardo Reis; 1986 – Jangada de Pedra; 1991 – O Evangelho Segundo Jesus Cristo; 1995 –
Ensaio sobre a Cegueira… Não
continuo, porque a produção literária de Saramago é qualitativa e quantitativamente
significativa! A sua genialidade emociona-me.
Pilar
del Río descobriu primeiro o escritor e, depois, o homem, em 1986. Comprou
casualmente o Memorial do Convento e regressou à livraria para comprar toda a
restante obra traduzida. Rendeu-se ao Ano
da Morte de Ricardo Reis, veio a Lisboa para fazer o trajeto do Hotel
Bragança ao Cemitério dos Prazeres (Feliz ironia! Não sentirei prazer algum por
habitar em tal sítio!) onde estava o nosso Pessoa, no romance de Saramago, e
quis conhecer o autor que tão profundamente a impressionara. Assim começaria
uma bela história de amor entre um homem substancialmente mais velho e uma
ainda jovem mulher (ele tinha 63 e ela 36). Trocam correspondência, depois,
Saramago visitou-a em Espanha. Ficaram juntos e em 1988 casavam. Pilar deixou o
seu trabalho e o seu país para acompanhá-lo, tornando-se sua tradutora, anos
mais tarde. Ao que parece, Saramago sentiu a terra tremer quando se deu o
encontro, tal como descreveu em Jangada
de Pedra. Pilar saiu com a certeza de que qualquer coisa aconteceria.
Aconteceu o amor. Só não sabiam ambos que Saramago já o tinha adivinhado na
escrita do Memorial, no plano da história de Baltasar e de Blimunda. A mesma
letra inicial do nome deixa adivinhar ao leitor a identificação e a
complementaridade rara de ambos. Confirmam-no os apelidos sete-sóis e sete-luas,
respetivamente. O dia e a noite, em sinal de renovação, a perfeição e a
totalidade traduzida no número sete. Curiosamente, Baltasar não tem a mão
esquerda, perdida na guerra. Usa um gancho em seu lugar e, a certa altura, o
narrador mordaz, com a sua fina ironia, mostra a falta que a mão lhe faz. A ele
e aos homens, já que uma lava a outra e as duas a cara. Só Deus não precisa da
mão esquerda, numa clara alusão à falta de informação bíblica sobre a mão
esquerda de Deus. Pelos vistos só teria a direita, a única referenciada e ao
lado da qual se sentam os eleitos. Assim se explica o estigma que afetou os
canhotos, olhados com desconfiança, e dos que ousam prevaricar as leis divinas.
Eu sou canhestra. O meu filho também. Aceito o lado esquerdo da mão de Deus (se
não for maneta) e deixo a direita para repouso do coração do nosso Antero. Porém,
a falha da mão era compensada com a presença de Blimunda, a mulher que via o
interior e as vontades alheias se estivesse em jejum e que jurara nunca olhar
Baltasar por dentro. Colheria a sua vontade, antes da sua morte no Auto de Fé.
Assim terminava o encontro de ambos. Tal como começara, num Auto de Fé.
A
relação amorosa entre Blimunda e Baltasar, nada convencional à época, pois não
eram casados, opõe-se às convenções sociais e religiosas. Blimunda não quis
casar e vivia livremente o amor, mas de forma verdadeira e cúmplice, por
oposição aos casamentos de conveniência, mas sem amor. Pilar e Saramago
desafiaram as convenções sociais no que à idade diz respeito, mas também em
relação à identidade de cada um. Hoje, Pilar recusa ser a viúva de… tal como
recusara antes ser a mulher de… Pilar é Pilar. Uma jornalista que perdeu o amor
da sua vida e que diz que Saramago foi uma maldição, por não conseguir gostar
de mais ninguém depois dele. Vive de e para a memória… De Saramago, obviamente,
patente na fundação que dirige. Haja coragem, porque viver com essa consciência
e com essa fatalidade é peso certo. Já ele, o génio, dizia de sua Pilar:
“Ela nasceu em 1950 e eu em 1922. Tenho uma sensação
esquisita quando penso que houve um tempo em que eu já estava aqui e ela não. É
estranho para mim entender que foi preciso passar 28 anos desde o meu
nascimento para que chegasse a pessoa que seria imprescindível em minha vida...
Quando a conheci, eu tinha 63 anos, era um homem já velho. Ela tinha 36 anos.
Os amigos diziam-me: “Isso é uma loucura, um disparate! Com essa diferença de
idade.” E eu sabia, mas não me incomodava. Agora não posso conceber nada se
Pilar não existisse. Quando ela não está, a casa se apaga. E quando volta, se
reativa”.
Tal como a lareira que Blimunda e Baltasar ateiam, que ilumina,
aquece e sacraliza o espaço onde o “casamento” acontece sem testemunhas. Ler Blimunda
e Baltasar é ler Pilar e Saramago. É saber que o mistério acontece e que a permanência
deixa de ser escolha e passa a necessidade. É olhar e sentir a casa de ambos.
Nina M.
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