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sábado, 1 de maio de 2021

Crónica de Maus Costumes 230

 

Memorial de Saramago

 “Olharem-se era a casa de ambos”. Uma das belas frases que se pode ler no Memorial do Convento, de Saramago, em relação ao par romântico Baltasar Sete-sóis e Blimunda Sete-luas (assim batizada sem cerimónia, apenas por alcunha do padre Bartolomeu de Gusmão, o deus criador da passarola).

A publicação do livro data de 1982. Um período literário áureo de Saramago. Veja-se: 1980 – Levantado do Chão; 1982 – Memorial do Convento; 1984 – O Ano da Morte de Ricardo Reis; 1986 – Jangada de Pedra; 1991 – O Evangelho Segundo Jesus Cristo; 1995 – Ensaio sobre a Cegueira… Não continuo, porque a produção literária de Saramago é qualitativa e quantitativamente significativa! A sua genialidade emociona-me.

Pilar del Río descobriu primeiro o escritor e, depois, o homem, em 1986. Comprou casualmente o Memorial do Convento e regressou à livraria para comprar toda a restante obra traduzida. Rendeu-se ao Ano da Morte de Ricardo Reis, veio a Lisboa para fazer o trajeto do Hotel Bragança ao Cemitério dos Prazeres (Feliz ironia! Não sentirei prazer algum por habitar em tal sítio!) onde estava o nosso Pessoa, no romance de Saramago, e quis conhecer o autor que tão profundamente a impressionara. Assim começaria uma bela história de amor entre um homem substancialmente mais velho e uma ainda jovem mulher (ele tinha 63 e ela 36). Trocam correspondência, depois, Saramago visitou-a em Espanha. Ficaram juntos e em 1988 casavam. Pilar deixou o seu trabalho e o seu país para acompanhá-lo, tornando-se sua tradutora, anos mais tarde. Ao que parece, Saramago sentiu a terra tremer quando se deu o encontro, tal como descreveu em Jangada de Pedra. Pilar saiu com a certeza de que qualquer coisa aconteceria. Aconteceu o amor. Só não sabiam ambos que Saramago já o tinha adivinhado na escrita do Memorial, no plano da história de Baltasar e de Blimunda. A mesma letra inicial do nome deixa adivinhar ao leitor a identificação e a complementaridade rara de ambos. Confirmam-no os apelidos sete-sóis e sete-luas, respetivamente. O dia e a noite, em sinal de renovação, a perfeição e a totalidade traduzida no número sete. Curiosamente, Baltasar não tem a mão esquerda, perdida na guerra. Usa um gancho em seu lugar e, a certa altura, o narrador mordaz, com a sua fina ironia, mostra a falta que a mão lhe faz. A ele e aos homens, já que uma lava a outra e as duas a cara. Só Deus não precisa da mão esquerda, numa clara alusão à falta de informação bíblica sobre a mão esquerda de Deus. Pelos vistos só teria a direita, a única referenciada e ao lado da qual se sentam os eleitos. Assim se explica o estigma que afetou os canhotos, olhados com desconfiança, e dos que ousam prevaricar as leis divinas. Eu sou canhestra. O meu filho também. Aceito o lado esquerdo da mão de Deus (se não for maneta) e deixo a direita para repouso do coração do nosso Antero. Porém, a falha da mão era compensada com a presença de Blimunda, a mulher que via o interior e as vontades alheias se estivesse em jejum e que jurara nunca olhar Baltasar por dentro. Colheria a sua vontade, antes da sua morte no Auto de Fé. Assim terminava o encontro de ambos. Tal como começara, num Auto de Fé.

A relação amorosa entre Blimunda e Baltasar, nada convencional à época, pois não eram casados, opõe-se às convenções sociais e religiosas. Blimunda não quis casar e vivia livremente o amor, mas de forma verdadeira e cúmplice, por oposição aos casamentos de conveniência, mas sem amor. Pilar e Saramago desafiaram as convenções sociais no que à idade diz respeito, mas também em relação à identidade de cada um. Hoje, Pilar recusa ser a viúva de… tal como recusara antes ser a mulher de… Pilar é Pilar. Uma jornalista que perdeu o amor da sua vida e que diz que Saramago foi uma maldição, por não conseguir gostar de mais ninguém depois dele. Vive de e para a memória… De Saramago, obviamente, patente na fundação que dirige. Haja coragem, porque viver com essa consciência e com essa fatalidade é peso certo. Já ele, o génio, dizia de sua Pilar:

“Ela nasceu em 1950 e eu em 1922. Tenho uma sensação esquisita quando penso que houve um tempo em que eu já estava aqui e ela não. É estranho para mim entender que foi preciso passar 28 anos desde o meu nascimento para que chegasse a pessoa que seria imprescindível em minha vida... Quando a conheci, eu tinha 63 anos, era um homem já velho. Ela tinha 36 anos. Os amigos diziam-me: “Isso é uma loucura, um disparate! Com essa diferença de idade.” E eu sabia, mas não me incomodava. Agora não posso conceber nada se Pilar não existisse. Quando ela não está, a casa se apaga. E quando volta, se reativa”.

Tal como a lareira que Blimunda e Baltasar ateiam, que ilumina, aquece e sacraliza o espaço onde o “casamento” acontece sem testemunhas. Ler Blimunda e Baltasar é ler Pilar e Saramago. É saber que o mistério acontece e que a permanência deixa de ser escolha e passa a necessidade. É olhar e sentir a casa de ambos.

 

Nina M.

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