Memórias
A minha cabeça, tal como a de todos,
ganha vida sozinha e avança pelos trilhos da memória ou do pensamento, conforme
a ocasião e dá largas ao seu livre-arbítrio sem pedir licença à dona.
Na verdade, é ela a dona, que me faz
ter pesadas ausências, por vezes notadas e sofríveis quando me sinto trespassar
por um olhar inquisidor de quem tenta saber por que caminhos estreitos eu estive
perdida. Demasiado sinuoso para ser explicado e, subitamente, as voltas já são
tantas que não o saberia dizer.
Hoje recuei no tempo e viajei até
Chaves, a bela Aquae Flaviae, flor do
Tâmega. Bela cidade. Pequenina e pitoresca, fria e quente como o Diabo ao sabor
das estações, que me fazia gostar de romper o rabo das calças nos cafés para
usufruir do ar condicionado que não tinha em casa e manter a temperatura mais
agradável, quer de inverno quer de verão. No frio, o aquecedor a óleo que
permanecia ligado o dia todo, ainda compunha o cenário, mas no verão… Era o
suar das estopinhas … Por baixo do meu T0, havia um café, onde me refrescava e
por lá permanecia, a gozar a temperatura amena. E eu que suporto bem o calor! O
que fará quem com ele sofre!
Certo, é que morava relativamente
perto do centro da cidade, junto da avenida que passa em frente à escola Dr.
Júlio Martins. E foi aí, na rua, que conheci o Sr. Engenheiro Montalvão Machado,
o dono do T0 que arrendei.
Os Montalvão Machado são um nome de
respeito, desde sempre ligados à política local e nacional. O Dr. Júlio
Montalvão Machado, por exemplo, foi um dos
fundadores do Partido Socialista, falecido em 2012, era também conhecido
pelo interesse que dedicava à História local, tendo publicado alguns livros
sobre a República e a Cidade de Chaves. A República chegou a Chaves com dois
anos de atraso e o facto não esteve relacionado com a distância entre esta urbe
e Lisboa, mas pelas sucessivas incursões monárquicas do Paiva Couceiro,
refugiado em Espanha, para conseguir reorganizar os ataques invasivos. De modo
que volta e meia, a bandeira hasteada mudava de cor. Tenho comigo um dos seus
livros: Crónica da Vila Velha de Chaves,
por razões académicas, na altura, oferecido pelo seu familiar. Quem gostar de História,
vale a pena ficar a saber um pouco mais dos factos, pois os monárquicos e
republicanos pulavam de trincheira como quem muda de camisa. Qualquer
semelhança com a política local de hoje será mera ficção! Os Montalvão Machado
eram familiares de António Granjo, que foi presidente da Câmara da Cidade, que
participou na Primeira Guerra Mundial, exerceu funções de Presidente do
Ministério, acabando brutalmente assassinado, naquela que ficou conhecida como
a “Noite Sangrenta”, por ser um forte opositor à Monarquia do Norte, movimento liderado por Paiva Couceiro, que não
viria a singrar.
De modo que quando conheci o Sr.
Engenheiro, já um homem idoso e curvado, conheci alguém com o peso da História
aos ombros… Pena ter-me apercebido disso um pouco tarde, até porque quando o
encontrava, normalmente, para lhe entregar o cheque com o pagamento da renda,
trocávamos algumas palavras. Porém, a primeira vez que lhe falei, foi por
telefone, para saber da casa. Atende-me do outro lado, uma voz assertiva e
ufana “Estou sim, daqui fala o Sr. Engenheiro Montalvão Machado”. A Sónia
Moreira, aos vinte e sete anos não era a mesma que é hoje. Menos ponderada, um
pouco doida e com a pressa da vida. Soou-me a vaidade o atendimento e a plebeia
atirou do alto da sua altivez, na fração de segundo seguinte: “Daqui fala a
Dra. Sónia Moreira, muito bom-dia.” Parva, pois claro! Erros da mocidade. A
minha colega que assistia à conversa ria-se que nem uma perdida. Quando
desliguei, olhou-me, à espera do desenvolvimento. Disse-lhe: “Pois se o senhor
se apresenta como senhor engenheiro, atiro-lhe com o doutora, que normalmente
não me serve para nada…”
Ficamos tratados,
nesse dia. A partir de então, sempre que nos cruzámos, senhor engenheiro para
cá e senhora doutora para lá. Certo é que o senhor engenheiro (na verdade, ele
gostava do titulozinho) simpatizava comigo e se à chegada me fez assinar um
inventário com os bens que a casa continha, à saída não quis ver nada, por mais
que insistisse para verificar que lá permanecia tudo direitinho.
Hoje, não reagiria, decerto, dessa
forma. Seria menos atrevida e mais comedida e, certamente, ter-lhe-ia
aproveitado melhor as conversas, já que o distinto cavalheiro, com o seu je ne sais quoi de quixotesco, foi
sempre afável, fazendo questão de mostrar a impressão que tinha a respeito da
jovenzinha que se percebia distinguir da juventude estragada, dizia ele.
Coitada de mim, com um apelido sem história e ao que parece com raízes judaicas
(com jeitinho ainda tive cristãos-novos nos meus antepassados e não carrego
ponta de antissemitismo, entenda-se. Hoje, já não se pode dizer nada sem
clarificar que não há intuito de qualquer desprestígio nas palavras) e sem
sangue importante que me corra nas veias. Devia ser o porte. Há quem me acuse
disso, sem que no entanto manifeste qualquer elegância especial, aqui a
chambeta, que rompe torto os sapatos…
Certo é que a imagem do senhor, hoje,
invadiu-me. Certamente, já terá falecido, pois se o conheci nos seus oitenta… Ele
lá fez questão de me prestigiar com o apelido a história de família e de me honrar
com a sua simpatia…
Em sua honra, senhor engenheiro
Montalvão, em jeito de quem se desculpa pela ousadia passada, à qual terá achado
a sua graça, parece-me…
Nina M.
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