Haja limites para o politicamente correto!
A
ditadura do politicamente correto começa a atingir proporções deploráveis, que
raiam a estupidez.
Durante
a semana, li um pequeno texto de um professor de Português e poeta que se
lamentava por ter ouvido um aluno dizer que Camões era racista. Servia de
apresentação de um texto de imprensa em que a jornalista se lamentava de ter
sido preterida para fazer uma entrevista a um escritor negro por ser branca, depois
de já ter feito inúmeros trabalhos do género. Intuía-se que por ser branca, a
jornalista não teria a capacidade para sentir o peso ou absorver a mensagem
veiculada pelo autor negro. Naturalmente, a periodicista mostrava indignação,
questionando se era necessário ser negro para ser capaz de compreender o negro
ou de ser homossexual para compreender o homossexual… A resposta é óbvia: basta
ser humano (a única raça que conheço) e empático. A arte, especialmente a
Literatura, tem a capacidade de nos transportar para mundos diferentes dos
nossos, para lutas que não travamos diretamente, para dramas que nãos nos
pertencem, mas que nos fazem colocar no lugar do outro. Colocar-se no lugar do
outro ou ser-se empático é a qualidade de que se necessita para saber ouvir,
saber compreender e saber aceitar a diferença. É a qualidade que nos permite
aceitar o outro com as suas diferenças. Assim, a Literatura em particular e a
arte em geral são capazes de derrubar os muros da ignorância e dos
preconceitos. Quem lê o Filho de Mil
Homens, de Valter Hugo Mãe (desculpe, Valter. Insiste em escrever o seu
nome em minúsculas, mas trata-se de uma subversão que não gosto de fazer. É um autor
demasiado grande para ser escrito em minúsculas) não fica indiferente ao
Antonino, o homossexual da ficção. Não precisamos de o ser para nos condoermos
com as pequenas grandes tragédias da personagem: a dificuldade em assumir a sua
essência, o desprezo e o ódio que lhe votava a vizinhança, o desgosto materno
que o queria “curar”, o sofrimento de Antonino, que não correspondia às
expetativas do meio onde se movia, como se fosse obrigado a ser o que os outros
esperavam dele. É fácil compreendermos o despotismo valorativo que uma
sociedade sempre impõe aos seus membros e a crueldade com que é capaz de tratar
os rebeldes e os que ousam ser diferentes. De nada serve se depois pensarmos
que não passa de uma história e não formos capazes de canalizar a empatia para
a realidade onde nos movemos. Porém, é isto que a leitura nos permite: o acesso
a outros mundos, a outras formas de sentir, de ser e de estar e a abertura para
se ser tolerante.
Ora,
quando se quer tanto defender uma causa, mas em nome dela se ostraciza,
perde-se a razão e enfraquece-se a causa. Desta forma, impedir que uma
jornalista com trabalho reconhecido não possa entrevistar um autor negro por
ser branca parece-me sobremaneira inqualificável. A seleção da jornalista deve
passar pelo critério da competência e não pelo da cor! De modo que quando vejo
atribuírem a Camões o epíteto de racista todas as minhas entranhas se abalam e
se estremecem! Ainda há pouco tinha escrito, a propósito do Padrão dos
Descobrimentos, que só faltava pedirem que Camões e Pessoa fossem retirados do
programa pelo canto épico, um dos “feitos gloriosos” e o outro da identidade ou
da alma lusa! Haja decoro, decência e sobretudo cultura! Também já me deparei
com uma notícia que dava conta de que numa palestra on-line, em Massachusetts, a professora doutoranda Vanusa Vera-Cruz
Lima defendeu que “Os Maias” são uma obra racista, porquanto e passo a citar: “A
perceção e a representação de pessoas negras n’Os Maias’ dependem de agressão,
desumanização e degradação. O meu objetivo é analisar a linguagem usada por Eça
de Queirós para se referir às pessoas negras, através das personagens,
narração, discurso e escolha de palavras, entre outras abordagens estilísticas
(…) O objetivo é trazer atenção e perceber o papel que a raça tem no trabalho
de Eça ao analisar não só a linguagem racista prejudicial usada neste
clássico”. Acrescenta também que “existe uma descomunal admiração pela brancura
detetada na narrativa”.
A
doutoranda terá apresentado também exemplos retirados da obra: “crises de
melancolia negra” de Pedro da Maia, os olhos de Maria Monforte parecem “negros
de cólera”, “escada escura e feia”, “quartos alegres, forrados de papéis
claros”, referindo que existem vários trechos em que a brancura está associada
à beleza feminina. Está com certeza, quem não se lembra da descrição de Maria
Eduarda, no peristilo do Hotel Central? Da deusa de “carnação ebúrnea” e de
“cabelos de oiro”, que faz com que o Craft deixe escapar um “esplêndida”!
Será
necessário lembrar que o romance data do século XIX? Que há um contexto e uma
realidade diferentes dos que vivemos hoje? Queremos apagar a memória coletiva,
a arte e a cultura, supostamente para não sermos ofensivos, neste caso
concreto, para com a raça negra?! Para não os fazermos deparar com a
discriminação contra a qual ainda hoje lutam? A mim parece-me um terrível
absurdo para além de um enorme erro! Depois, não posso deixar de questionar a
seriedade de tal estudo e as agendas politizadas por detrás de certos
movimentos. Não se lembrou a autora do estudo do seguintes factos, que pode
facilmente comprovar com uma leitura atenta do romance:
1.
Afonso da Maia, pai de Pedro e avô de Carlos da Maia, era terminantemente
contra o casamento de Pedro e Maria Monforte, porque o pai desta tinha feito
fortuna com o tráfico de escravos. Afonso da Maia, liberal e jacobino,
considerava indigna essa forma de fazer fortuna, à custa de sangue alheio. Por
isso, não aceitava Maria Monforte, a negreira. Esta não era merecedora de
integrar a família Maia, por lhe correr sangue alheio nas veias.
2.
A brancura da tez era cânone de beleza à época. Aliás, já desde o tempo da
renascença e de Petrarca, em que as mulheres admiradas e cantadas eram brancas,
loiras e de olhos claros. Não só se excluem as mulheres negras, mas também as
brancas trigueiras de olhos castanhos! Já agora, valerá a pena recordar que
Camões, apesar dos muitos sonetos de influência petrarquista, teve a ousadia de
compor as “Endechas a Bárbara Escrava”,
a sua “pretidão de amor” e a “cativa que o tinha cativo”.
3. A
mulher de Afonso da Maia era uma portuguesinha baixinha e trigueira (não se
enquadra nesse cânones). Maria Monforte e Maria Eduarda, sim, duas deusas de
tez clara, mas note-se: Maria Monforte é retratada em termos pouco abonatórios:
mulher bela, mas manipuladora, egoísta, interesseira e volúvel. Atira Pedro, um
romântico fraco, para a tragédia, assim como aos seus dois filhos, em especial
Maria Eduarda.
Maria
Eduarda, belíssima, é uma das poucas mulheres que Eça pincela com alguma
indulgência e compreensão. As mulheres queirosianas, genericamente de condição
social elevada, são apresentadas como adúlteras e fúteis. Maria Eduarda tem um
passado pouco abonatório, com várias relações amorosas (Carlos sabia que o avô
nunca aceitaria esse romance, não a consideraria digna da família). Eça
retrata-a com compreensão, porque a considera uma vítima das circunstâncias, no
entanto, Maria Eduarda, apesar do seu passado e da sua mãe, é uma mulher
íntegra, tal como os Maias. À exceção desta e de Joaninha, de " A Cidade e
as Serras", as mulheres são retratadas de forma impiedosa. Talvez se
explique pelo passado do Eça e pelo facto de ele ter sido rejeitado pela
própria mãe (isto sou eu a supor, obviamente, não há como provar).
4.
Finalmente, o recurso aos adjetivos “negro” e “escuro” nada tem a ver com
racismo, mas com uma interpretação cultural da cor e do uso expressivo do
adjetivo, recurso frequente na escrita queirosiana! Para o português, a cor
preta significa luto, sinal de tristeza, associado a aspetos negativos e
prende-se com os indícios de tragédia que Eça pretende causar ao leitor! Não
está relacionado com a cor da pele de qualquer ser humano! Atribuir-se à cor esta
conotação negativa não significa transpô-la para a pessoa.
Irra!
Como é possível arranjar uma interpretação tão aviesada e forçada? E agora?
Vamos exterminar todos os clássicos por considerarmos que não apresentam um
discurso politicamente correto, mesmo que nesse momento da História a
interpretação do mundo fosse entendida de outra forma?! Haja paciência para
tamanha parvoíce! Haja coragem para se reabilitarem os clássicos, a nossa
cultura, a nossa língua, enfim, a nossa identidade!
Sou
absolutamente a favor da luta contra o racismo. Sou absolutamente contra estes
desmandos! Afirmar que Camões ou Pessoa ou Eça eram racistas é não conhecer,
não saber analisar factos à luz de uma época. É não saber História nem Literatura!
Já
fomos um povo esclavagista e colonizador? Sim. Faz parte da nossa História para
o bem e para o mal. Faz parte da nossa identidade cujo maior baluarte é a nossa
língua! Assim, ao contrário de Mamadou Ba, por exemplo, que é legalmente
português, eu não tenho vergonha da nossa História. Reconheço-lhe os defeitos que
quero ver lembrados para que não se repitam, principalmente os do século passado,
mas é essa mesma memória coletiva que nos confere identidade. Mamadou,
connosco, partilha a nacionalidade, com toda a legitimidade, mas não partilha a
identidade, que começa na língua, passa pela História e termina na cultura e
nas tradições, no modo de ser do português. Entre nacionalidade e identidade há
um longo caminho a percorrer. As mudanças que devem ser feitas têm de ser
alicerçadas no amor ao país e ao seu povo, querendo a sua natural e sadia evolução,
sem ódios e sem polarizações, uma mudança inclusiva sem distinção de raças, credos
ou ideologias.
Tentar
arrancar ou fazer esquecer as nossas raízes culturais é ridículo e inadmissível.
Nina M.
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