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sábado, 6 de março de 2021

Crónica de Maus Costumes 222

 

Haja limites para o politicamente correto!

A ditadura do politicamente correto começa a atingir proporções deploráveis, que raiam a estupidez.

Durante a semana, li um pequeno texto de um professor de Português e poeta que se lamentava por ter ouvido um aluno dizer que Camões era racista. Servia de apresentação de um texto de imprensa em que a jornalista se lamentava de ter sido preterida para fazer uma entrevista a um escritor negro por ser branca, depois de já ter feito inúmeros trabalhos do género. Intuía-se que por ser branca, a jornalista não teria a capacidade para sentir o peso ou absorver a mensagem veiculada pelo autor negro. Naturalmente, a periodicista mostrava indignação, questionando se era necessário ser negro para ser capaz de compreender o negro ou de ser homossexual para compreender o homossexual… A resposta é óbvia: basta ser humano (a única raça que conheço) e empático. A arte, especialmente a Literatura, tem a capacidade de nos transportar para mundos diferentes dos nossos, para lutas que não travamos diretamente, para dramas que nãos nos pertencem, mas que nos fazem colocar no lugar do outro. Colocar-se no lugar do outro ou ser-se empático é a qualidade de que se necessita para saber ouvir, saber compreender e saber aceitar a diferença. É a qualidade que nos permite aceitar o outro com as suas diferenças. Assim, a Literatura em particular e a arte em geral são capazes de derrubar os muros da ignorância e dos preconceitos. Quem lê o Filho de Mil Homens, de Valter Hugo Mãe (desculpe, Valter. Insiste em escrever o seu nome em minúsculas, mas trata-se de uma subversão que não gosto de fazer. É um autor demasiado grande para ser escrito em minúsculas) não fica indiferente ao Antonino, o homossexual da ficção. Não precisamos de o ser para nos condoermos com as pequenas grandes tragédias da personagem: a dificuldade em assumir a sua essência, o desprezo e o ódio que lhe votava a vizinhança, o desgosto materno que o queria “curar”, o sofrimento de Antonino, que não correspondia às expetativas do meio onde se movia, como se fosse obrigado a ser o que os outros esperavam dele. É fácil compreendermos o despotismo valorativo que uma sociedade sempre impõe aos seus membros e a crueldade com que é capaz de tratar os rebeldes e os que ousam ser diferentes. De nada serve se depois pensarmos que não passa de uma história e não formos capazes de canalizar a empatia para a realidade onde nos movemos. Porém, é isto que a leitura nos permite: o acesso a outros mundos, a outras formas de sentir, de ser e de estar e a abertura para se ser tolerante.

Ora, quando se quer tanto defender uma causa, mas em nome dela se ostraciza, perde-se a razão e enfraquece-se a causa. Desta forma, impedir que uma jornalista com trabalho reconhecido não possa entrevistar um autor negro por ser branca parece-me sobremaneira inqualificável. A seleção da jornalista deve passar pelo critério da competência e não pelo da cor! De modo que quando vejo atribuírem a Camões o epíteto de racista todas as minhas entranhas se abalam e se estremecem! Ainda há pouco tinha escrito, a propósito do Padrão dos Descobrimentos, que só faltava pedirem que Camões e Pessoa fossem retirados do programa pelo canto épico, um dos “feitos gloriosos” e o outro da identidade ou da alma lusa! Haja decoro, decência e sobretudo cultura! Também já me deparei com uma notícia que dava conta de que numa palestra on-line, em Massachusetts, a professora doutoranda Vanusa Vera-Cruz Lima defendeu que “Os Maias” são uma obra racista, porquanto e passo a citar: “A perceção e a representação de pessoas negras n’Os Maias’ dependem de agressão, desumanização e degradação. O meu objetivo é analisar a linguagem usada por Eça de Queirós para se referir às pessoas negras, através das personagens, narração, discurso e escolha de palavras, entre outras abordagens estilísticas (…) O objetivo é trazer atenção e perceber o papel que a raça tem no trabalho de Eça ao analisar não só a linguagem racista prejudicial usada neste clássico”. Acrescenta também que “existe uma descomunal admiração pela brancura detetada na narrativa”.

A doutoranda terá apresentado também exemplos retirados da obra: “crises de melancolia negra” de Pedro da Maia, os olhos de Maria Monforte parecem “negros de cólera”, “escada escura e feia”, “quartos alegres, forrados de papéis claros”, referindo que existem vários trechos em que a brancura está associada à beleza feminina. Está com certeza, quem não se lembra da descrição de Maria Eduarda, no peristilo do Hotel Central? Da deusa de “carnação ebúrnea” e de “cabelos de oiro”, que faz com que o Craft deixe escapar um “esplêndida”!

Será necessário lembrar que o romance data do século XIX? Que há um contexto e uma realidade diferentes dos que vivemos hoje? Queremos apagar a memória coletiva, a arte e a cultura, supostamente para não sermos ofensivos, neste caso concreto, para com a raça negra?! Para não os fazermos deparar com a discriminação contra a qual ainda hoje lutam? A mim parece-me um terrível absurdo para além de um enorme erro! Depois, não posso deixar de questionar a seriedade de tal estudo e as agendas politizadas por detrás de certos movimentos. Não se lembrou a autora do estudo do seguintes factos, que pode facilmente comprovar com uma leitura atenta do romance:

1. Afonso da Maia, pai de Pedro e avô de Carlos da Maia, era terminantemente contra o casamento de Pedro e Maria Monforte, porque o pai desta tinha feito fortuna com o tráfico de escravos. Afonso da Maia, liberal e jacobino, considerava indigna essa forma de fazer fortuna, à custa de sangue alheio. Por isso, não aceitava Maria Monforte, a negreira. Esta não era merecedora de integrar a família Maia, por lhe correr sangue alheio nas veias.

2. A brancura da tez era cânone de beleza à época. Aliás, já desde o tempo da renascença e de Petrarca, em que as mulheres admiradas e cantadas eram brancas, loiras e de olhos claros. Não só se excluem as mulheres negras, mas também as brancas trigueiras de olhos castanhos! Já agora, valerá a pena recordar que Camões, apesar dos muitos sonetos de influência petrarquista, teve a ousadia de compor as  “Endechas a Bárbara Escrava”, a sua “pretidão de amor” e a “cativa que o tinha cativo”.

3. A mulher de Afonso da Maia era uma portuguesinha baixinha e trigueira (não se enquadra nesse cânones). Maria Monforte e Maria Eduarda, sim, duas deusas de tez clara, mas note-se: Maria Monforte é retratada em termos pouco abonatórios: mulher bela, mas manipuladora, egoísta, interesseira e volúvel. Atira Pedro, um romântico fraco, para a tragédia, assim como aos seus dois filhos, em especial Maria Eduarda.

Maria Eduarda, belíssima, é uma das poucas mulheres que Eça pincela com alguma indulgência e compreensão. As mulheres queirosianas, genericamente de condição social elevada, são apresentadas como adúlteras e fúteis. Maria Eduarda tem um passado pouco abonatório, com várias relações amorosas (Carlos sabia que o avô nunca aceitaria esse romance, não a consideraria digna da família). Eça retrata-a com compreensão, porque a considera uma vítima das circunstâncias, no entanto, Maria Eduarda, apesar do seu passado e da sua mãe, é uma mulher íntegra, tal como os Maias. À exceção desta e de Joaninha, de " A Cidade e as Serras", as mulheres são retratadas de forma impiedosa. Talvez se explique pelo passado do Eça e pelo facto de ele ter sido rejeitado pela própria mãe (isto sou eu a supor, obviamente, não há como provar).

4. Finalmente, o recurso aos adjetivos “negro” e “escuro” nada tem a ver com racismo, mas com uma interpretação cultural da cor e do uso expressivo do adjetivo, recurso frequente na escrita queirosiana! Para o português, a cor preta significa luto, sinal de tristeza, associado a aspetos negativos e prende-se com os indícios de tragédia que Eça pretende causar ao leitor! Não está relacionado com a cor da pele de qualquer ser humano! Atribuir-se à cor esta conotação negativa não significa transpô-la para a pessoa.

Irra! Como é possível arranjar uma interpretação tão aviesada e forçada? E agora? Vamos exterminar todos os clássicos por considerarmos que não apresentam um discurso politicamente correto, mesmo que nesse momento da História a interpretação do mundo fosse entendida de outra forma?! Haja paciência para tamanha parvoíce! Haja coragem para se reabilitarem os clássicos, a nossa cultura, a nossa língua, enfim, a nossa identidade!

Sou absolutamente a favor da luta contra o racismo. Sou absolutamente contra estes desmandos! Afirmar que Camões ou Pessoa ou Eça eram racistas é não conhecer, não saber analisar factos à luz de uma época. É não saber História nem Literatura!

Já fomos um povo esclavagista e colonizador? Sim. Faz parte da nossa História para o bem e para o mal. Faz parte da nossa identidade cujo maior baluarte é a nossa língua! Assim, ao contrário de Mamadou Ba, por exemplo, que é legalmente português, eu não tenho vergonha da nossa História. Reconheço-lhe os defeitos que quero ver lembrados para que não se repitam, principalmente os do século passado, mas é essa mesma memória coletiva que nos confere identidade. Mamadou, connosco, partilha a nacionalidade, com toda a legitimidade, mas não partilha a identidade, que começa na língua, passa pela História e termina na cultura e nas tradições, no modo de ser do português. Entre nacionalidade e identidade há um longo caminho a percorrer. As mudanças que devem ser feitas têm de ser alicerçadas no amor ao país e ao seu povo, querendo a sua natural e sadia evolução, sem ódios e sem polarizações, uma mudança inclusiva sem distinção de raças, credos ou ideologias.

Tentar arrancar ou fazer esquecer as nossas raízes culturais é ridículo e inadmissível.

Nina M.

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