Sensibilidade e bom gosto
Ao assistir ao filme “A Paixão de
Van Gogh”, deparei-me com uma frase sua para caracterizar a relação que tinha
com o seu irmão: “Duas cabeças e um só coração”.
Efetivamente,
era este irmão quem sustentava Vincent, quem lhe encomendava as telas e as
tintas, quem colocou o seu seio familiar em dificuldades económicas para
permitir que o artista desse asas à criação. O pintor sabia-o e vivia
atormentado com esse facto, que juntamente com a sua melancolia crónica o
conduziram ao suicídio.
Estes
génios das artes, dotados de uma invulgar sensibilidade, que os fratura com o
mundo, não raras vezes resolvem a sua profunda tristeza e a sua dor com o
suicídio. Os exemplos são variados: Antero de Quental, Camilo Castelo Branco,
Mário de Sá-Carneiro, Cesare Pavese, Virgínia Woolf, Ernest Hemingway, só para
citar alguns nomes da literatura… Não há como explicar a capacidade de produção
de objetos artísticos que nos despertam emoções a não ser pela sensibilidade
raríssima que permite ao artista o dom de criar transcendência e beleza, mas
que os afasta inevitavelmente do vulgo e das mentes ordinárias, no sentido de
comuns.
“Duas
cabeças e um só coração”. Frase absolutamente feliz e poética para falar de
alguém a quem se encontrava profundamente e intimamente ligado. Apesar da
solidão sentida, Vincent tinha o amor do irmão, a quem escrevia diariamente e
que acabou por falecer pouco tempo depois da sua morte. Um só coração não vive
pela metade. Nem o criador nem o seu patrono viveram o suficiente para saberem
do sucesso de Van Gogh. Os quadros do pintor, acumulados por Théo, em sua casa
(só tinha vendido um) seriam um enorme sucesso posteriormente. As dificuldades
não impediram a crença no irmão, aquele que nos deixou um legado imenso, apesar
da curta carreira artística. A falta de reconhecimento e a sua dependência
económica ditaram-lhe o destino. Muitos génios criadores são almas poéticas
condenadas a ver e a sentir mais além, os ultrassensíveis inadaptados ao mundo
pouco tolerante que os engole e os destrói. Invariavelmente, o apreço chega demasiado
tarde, sem que o autor consiga aplacar as suas ânsias e as suas dúvidas e
saiba, com certeza, da qualidade da obra.
Esta
consciência fere, pois apresenta-nos a inevitabilidade da injustiça e do
cinismo. O artista ignorado ou maltratado pela ordem social deixa um legado, um
espólio admirável a quem sempre o espezinhou. De louco e proscrito passa a
idolatrado. Pena que não o tivesse sentido. Pena que não soubesse que a doação
de si era compreendida.
Haverá
maior generosidade do que entregar a alma aos seus semelhantes e ser capaz de o
fazer com génio, brilho e emoção? Quanto lhes deve a humanidade por cada
arrepio de pele, cada olhar embaciado pela emoção e pelo efeito de
assoberbamento?
Quanto
não vale a sinceridade e a honestidade de nos mostrar o que somos: ínfimos
pontos na imensidão de um Universo?
Nina
M.
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