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domingo, 13 de setembro de 2020

Crónica de Maus Costumes 197

 

Sensibilidade e bom gosto

            Ao assistir ao filme “A Paixão de Van Gogh”, deparei-me com uma frase sua para caracterizar a relação que tinha com o seu irmão: “Duas cabeças e um só coração”.

Efetivamente, era este irmão quem sustentava Vincent, quem lhe encomendava as telas e as tintas, quem colocou o seu seio familiar em dificuldades económicas para permitir que o artista desse asas à criação. O pintor sabia-o e vivia atormentado com esse facto, que juntamente com a sua melancolia crónica o conduziram ao suicídio.

Estes génios das artes, dotados de uma invulgar sensibilidade, que os fratura com o mundo, não raras vezes resolvem a sua profunda tristeza e a sua dor com o suicídio. Os exemplos são variados: Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, Mário de Sá-Carneiro, Cesare Pavese, Virgínia Woolf, Ernest Hemingway, só para citar alguns nomes da literatura… Não há como explicar a capacidade de produção de objetos artísticos que nos despertam emoções a não ser pela sensibilidade raríssima que permite ao artista o dom de criar transcendência e beleza, mas que os afasta inevitavelmente do vulgo e das mentes ordinárias, no sentido de comuns.

“Duas cabeças e um só coração”. Frase absolutamente feliz e poética para falar de alguém a quem se encontrava profundamente e intimamente ligado. Apesar da solidão sentida, Vincent tinha o amor do irmão, a quem escrevia diariamente e que acabou por falecer pouco tempo depois da sua morte. Um só coração não vive pela metade. Nem o criador nem o seu patrono viveram o suficiente para saberem do sucesso de Van Gogh. Os quadros do pintor, acumulados por Théo, em sua casa (só tinha vendido um) seriam um enorme sucesso posteriormente. As dificuldades não impediram a crença no irmão, aquele que nos deixou um legado imenso, apesar da curta carreira artística. A falta de reconhecimento e a sua dependência económica ditaram-lhe o destino. Muitos génios criadores são almas poéticas condenadas a ver e a sentir mais além, os ultrassensíveis inadaptados ao mundo pouco tolerante que os engole e os destrói. Invariavelmente, o apreço chega demasiado tarde, sem que o autor consiga aplacar as suas ânsias e as suas dúvidas e saiba, com certeza, da qualidade da obra.

Esta consciência fere, pois apresenta-nos a inevitabilidade da injustiça e do cinismo. O artista ignorado ou maltratado pela ordem social deixa um legado, um espólio admirável a quem sempre o espezinhou. De louco e proscrito passa a idolatrado. Pena que não o tivesse sentido. Pena que não soubesse que a doação de si era compreendida.

Haverá maior generosidade do que entregar a alma aos seus semelhantes e ser capaz de o fazer com génio, brilho e emoção? Quanto lhes deve a humanidade por cada arrepio de pele, cada olhar embaciado pela emoção e pelo efeito de assoberbamento?

Quanto não vale a sinceridade e a honestidade de nos mostrar o que somos: ínfimos pontos na imensidão de um Universo?

Nina M.

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