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sábado, 25 de julho de 2020

Crónica de Maus Costumes 192


Valter, as mulheres e o tempo

            Acabei de ler O Remorso de Baltazar Serapião, de Valter Hugo Mãe, vencedor do prémio literário José Saramago, em 2007, e por este prefaciado. Só esta última nota dispensaria qualquer recensão de minha parte.
            Saramago classificou-o de Tsunami pela intensidade e revolução que traz à escrita. Valter parece criar uma língua nova. Estilo de autor, reduzida ao essencial, numa linguagem crua com anástrofes e elipses desconcertantes e que desconcertam a sintaxe e é do que eu menos gosto. Compreendo os motivos, a necessidade de marca própria, o desejo de abrir um livro sem nome e de lhe reconhecermos o autor. Seremos capazes de o fazer com Valter como com Saramago como Camões e Pessoa e os seus heterónimos (os três mais conhecidos, porque eles são imensos). No entanto, por defeito meu, certamente, talvez devido ao meu ofício, não gosto assim tanto. Serei clássica, por isso, tenho o atrevimento de discordar do nosso Nobel e considerar que o que ele elencou como catadupa de sinalética distrativa, eu gosto das pintas nos is e dos travessões, das exclamações, das reticências e dos pontos de interrogação. Enfim, gosto dessa parafernália que constitui as boas regras da nossa ortografia. Se somos capazes de ler sem elas e apreender o sentido, saber quando se trata de uma interrogação ou de uma afirmação? Certamente que sim e sem dificuldade, mas eu gosto de namorar o Português escorreito que herdamos numa versão mais atualizada a abrir portas ao que haveria de vir do nosso Camões e que se instituiu de modernidade a partir dos séculos XVII e XVIII.
No entanto, Valter tem o dom de saber tocar temas fraturantes, criar-lhes um enredo e retratá-los com dureza. Há passagens dos seus livros que são socos no estômago e eu gosto dessa intensidade, dessa atrocidade temática que é afinal a nossa desumanização. Não esperem nem temas nem linguagem delicodoces. Os romances de Valter não são para os que gostam de leveza. O seu remorso deveria ser o de muitos homens. Retrata a violência doméstica e o papel subalterno da mulher ao longo da história da humanidade. A má-fé sartriana é revelada pela personagem ao convencer-se de que os golpes rudes eram justificados pelo dever do marido que precisa de garantir a educação da esposa. O autor expõe a tradição milenar, a visão da mulher como um ser inferior cuja voz só traz perigo e não deve ser ouvida. Uma espécie de Circe que envenena os homens e os desgraça e, como tal, devem ser por eles educadas, para que possam ser boas esposas, preferencialmente mudas, absurdamente obedientes, dependentes e ainda assim amar fervorosamente os maridos, enquanto se recatam de todos os olhares alheios para não atrair sobre si a cobiça de outros. O romance poderia retratar a idade média ou a atualidade, tanto faz. É intemporal. É um grito de revolta contra a instrumentalização da mulher, vista como mero recetáculo dos alívios masculinos, caracterizadas num paradoxo de criaturas divinas que vieram alegrar os homens e sem as quais estes não podem viver, havendo as que cumprem esse papel ao qual estariam destinadas e, portanto, são as “putas” (na linguagem crua de Valter) que se abrem a todos homens, por eles banidas, mas também por eles procuradas e as outras de serventia para casar, mas que ao fazê-lo assinam uma sentença de prisão perpétua, perante maridos desconfiados, ciumentos, violentos, mas que apregoam, cegos, um amor distópico aos quatros ventos.
E porque parece que muitos homens e também mulheres ainda precisam de alargar horizontes, seria bom que aprendessem o respeito pela mulher e que definitivamente se rendessem à inteligência (tantas vezes superior à de alguns), à beleza delas, mas também à ternura, porque independentemente dos laços instituídos, a mulher será vaso acolhedor de quem quiser, talvez de quem ela amar, talvez de quem o merecer e, por certo, de quem a souber amar. Fazer dela um objeto utilitário, no século XXI, é um ultraje e um atestado de idiotice. Como diria o meu amigo Altério: ide ler, ide…

Nina M.
             


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