Valter, as mulheres e o tempo
Acabei de ler O Remorso de Baltazar Serapião, de Valter Hugo Mãe, vencedor do
prémio literário José Saramago, em 2007, e por este prefaciado. Só esta última
nota dispensaria qualquer recensão de minha parte.
Saramago classificou-o de Tsunami pela intensidade e revolução que
traz à escrita. Valter parece criar uma língua nova. Estilo de autor, reduzida
ao essencial, numa linguagem crua com anástrofes e elipses desconcertantes e
que desconcertam a sintaxe e é do que eu menos gosto. Compreendo os motivos, a
necessidade de marca própria, o desejo de abrir um livro sem nome e de lhe
reconhecermos o autor. Seremos capazes de o fazer com Valter como com Saramago
como Camões e Pessoa e os seus heterónimos (os três mais conhecidos, porque
eles são imensos). No entanto, por defeito meu, certamente, talvez devido ao
meu ofício, não gosto assim tanto. Serei clássica, por isso, tenho o
atrevimento de discordar do nosso Nobel e considerar que o que ele elencou como
catadupa de sinalética distrativa, eu gosto das pintas nos is e dos travessões,
das exclamações, das reticências e dos pontos de interrogação. Enfim, gosto
dessa parafernália que constitui as boas regras da nossa ortografia. Se somos
capazes de ler sem elas e apreender o sentido, saber quando se trata de uma
interrogação ou de uma afirmação? Certamente que sim e sem dificuldade, mas eu
gosto de namorar o Português escorreito que herdamos numa versão mais
atualizada a abrir portas ao que haveria de vir do nosso Camões e que se
instituiu de modernidade a partir dos séculos XVII e XVIII.
No
entanto, Valter tem o dom de saber tocar temas fraturantes, criar-lhes um
enredo e retratá-los com dureza. Há passagens dos seus livros que são socos no
estômago e eu gosto dessa intensidade, dessa atrocidade temática que é afinal a
nossa desumanização. Não esperem nem temas nem linguagem delicodoces. Os
romances de Valter não são para os que gostam de leveza. O seu remorso deveria
ser o de muitos homens. Retrata a violência doméstica e o papel subalterno da
mulher ao longo da história da humanidade. A má-fé sartriana é revelada pela
personagem ao convencer-se de que os golpes rudes eram justificados pelo dever
do marido que precisa de garantir a educação da esposa. O autor expõe a
tradição milenar, a visão da mulher como um ser inferior cuja voz só traz
perigo e não deve ser ouvida. Uma espécie de Circe que envenena os homens e os
desgraça e, como tal, devem ser por eles educadas, para que possam ser boas
esposas, preferencialmente mudas, absurdamente obedientes, dependentes e ainda
assim amar fervorosamente os maridos, enquanto se recatam de todos os olhares
alheios para não atrair sobre si a cobiça de outros. O romance poderia retratar
a idade média ou a atualidade, tanto faz. É intemporal. É um grito de revolta
contra a instrumentalização da mulher, vista como mero recetáculo dos alívios
masculinos, caracterizadas num paradoxo de criaturas divinas que vieram alegrar
os homens e sem as quais estes não podem viver, havendo as que cumprem esse
papel ao qual estariam destinadas e, portanto, são as “putas” (na linguagem
crua de Valter) que se abrem a todos homens, por eles banidas, mas também por
eles procuradas e as outras de serventia para casar, mas que ao fazê-lo assinam
uma sentença de prisão perpétua, perante maridos desconfiados, ciumentos,
violentos, mas que apregoam, cegos, um amor distópico aos quatros ventos.
E
porque parece que muitos homens e também mulheres ainda precisam de alargar
horizontes, seria bom que aprendessem o respeito pela mulher e que
definitivamente se rendessem à inteligência (tantas vezes superior à de
alguns), à beleza delas, mas também à ternura, porque independentemente dos
laços instituídos, a mulher será vaso acolhedor de quem quiser, talvez de quem ela
amar, talvez de quem o merecer e, por certo, de quem a souber amar. Fazer dela um
objeto utilitário, no século XXI, é um ultraje e um atestado de idiotice. Como diria
o meu amigo Altério: ide ler, ide…
Nina
M.
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