O Reino Maravilhoso
Estava previsto outro assunto, porém
são estes imprevistos e inspirações momentâneas de que é feita a vida e que a
tornam mais saborosa e convidativa.
Em relação ao exame de Português, já
muito rio de tinta se gastou, já tudo ou quase tudo foi dito. Pelo que li, o de
Filosofia, disciplina que acarinho, também seguiu a mesma linha. Faltou-me
verificar o de História. Resumindo: prevalência da técnica e do imediatismo
sobre a análise, a reflexão e a escrita (entenda-se produção de pensamento
próprio). Escrever bem é sinónimo de pensar bem, arte em desuso, menosprezada
pela atualidade da velocidade galopante, sem compadecimento pelo tempo e pela
reflexão.
Hoje,
talvez pelo mergulho em águas frescas o suficiente, mas não gélidas, em terras
transmontanas que sempre me apaixonam, egoisticamente esqueci as questões
laborais e os assuntos que deveriam ser de vital importância para o futuro de
Portugal, já que falamos da formação de cidadãos. Porém, o reino maravilhoso do meu amado Torga, que trazia no sangue a mesma
dureza das fragas que o pariram, não permitiu. Entranhou-se-me o odor das
pálidas rosas amarelas, já bem abertas e da ramada dos quivis, a verdura das frescas serras de Camões e no fundo do
vale, qual segredo por revelar: o rio! O Corgo que sinto como o rio da minha aldeia e que não é o rio
da minha aldeia, mas poderia ser. Corgo significa precisamente pequena linha de
água que serpenteia por entre montes e serras. O meu primeiro contacto com o
rio deu-se quando era jovem universitária. Tinha o privilégio de adormecer com
o seu marulhar (quase enlouqueci na primeira semana), longe de imaginar que a
sua corrente se haveria de inscrever na minha memória. Há certos detalhes que
valorizamos apenas mais tarde… Hoje, gostaria bem de ter uma cabana, como
sugeriu o meu amigo Altério, juntinho do rio, para lhe ouvir os segredos que me
quisesse contar. Foram variadas vezes que lhe senti o paladar urbano no grupo
de amigos, durante o mês de junho, o mês das frequências. Um rio citadino e
ajardinado, mais largo, palco de diversão de amigos. Hoje, o Corgo, para mim, é
linha mais estreita e inexplorada, desconhecido de muitos e um segredo por
desvendar. Da aldeia pacata, sob o calor abrasador de julho, é impossível
adivinhá-lo. Como as melhores vitórias são as que custam sangue, suor e
lágrimas, também a pérola que engradece a serra se esconde nos seus vales.
Exige resiliência aos que querem alcançá-la. Trilhos por carreiros íngremes, os
mesmos que foram pisados por Camilo Castelo Branco, nos tempos da sua feliz
juventude, longe das gargalhadas da criançada de tempos idos, no calor do
verão… Hoje, o Corgo quase semiesquecido, quase triste e só, permite um
silêncio revelador entrecortado pelo claro riso alegre das águas e o trautear
melódico dos pássaros. Com sorte, a visita cortês de uma lontra e as fragas
escorregadias e lodosas pela falta de uso. Quem cá vive desconhece a grandeza
do pequeno curso de água. Habituados desde sempre à sua existência e sabendo da
sua fidelidade (por lá permanecerá, longínquo e de difícil acesso) já pouco o
visitam. Apesar de não ser transmontana, o facto de ter passado os melhores
anos da juventude em terras torguianas, traz o aprisionamento da alma e a
saudade incrustada que, de vez em quando, os poros exalam. Tal como Torga se
sentia rejuvenescido a cada vinda ao seu reino e a cada batida de monte que a
caça lhe proporcionava, também eu me reencontro e equilibro a cada visita ao
Corgo. Hoje, com direito a mergulho nas águas frescas e a descanso no lajedo
aquecido pelo sol. Assim, se escusa a toalha e se sente o corpo estendido ao
sol, deitado na dura realidade e então, nesse preciso momento, há um bocadinho
de eternidade que se resgata e se traz no bolso. Mesmo se depois o cenário
idílico é fustigado pela chuva de verão, fruto de uma intensa trovoada.
Mistério do reino de além Marão, que amanhã acordará com sol, espantado com a
zanga das nuvens que se fizeram ouvir com estrondo!
Nina
M.
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