Seguidores

sábado, 7 de setembro de 2019

Crónica de Maus Costumes 146


A Cigarra e a formiga

Hoje, enquanto corria (a corrida é sempre um bom momento de reflexão, quando o faço só), lembrei-me da fábula de La Fontaine (também poderia ser de Esopo), que nos foi contada a todos na nossa infância: A Cigarra e a formiga. Será desnecessário resumir o seu conteúdo, pois todos se lembrarão.
As fábulas encerram uma moralidade, um juízo ético, sobre determinados comportamentos ou ações. Assim, com esta, aprendemos a valorizar o trabalho, a saber que sem ele não existe autossustento e que é necessário laborar para acautelar o futuro. Pretende-se ensinar aos mais pequenos que a vida não pode ser apenas diversão ou como diria a minha avó “quem com meninas da vida (expressão eufemística por não gostar do jargão) joga o vinte, fica pobre, miserável e pedinte. Quem é de Português, pode apreciar a tripla adjetivação, com gradação crescente que o aforismo contém, com o objetivo de salientar que uma vida devassa e apenas de prazeres, conduz o ser humano ao infortúnio. Logicamente, na época, em que a fábula terá sido criada, não havia ainda consciência social, a providência do Estado nem a noção de Estado como o conjunto de cidadãos que nele habitam e muito menos a perspetiva de democraticamente se pagar pela paz social. Para isso foi criado, muitos séculos depois, o RSI, protegendo-se, nalguns casos, as incautas cigarras, que nada fazem, às vezes, por manifesta impossibilidade e o auxílio é um dever moral, mas outras vezes por falta de vontade de trabalhar, que é difícil e ocupa muito tempo, não deixando espaço para o prazer. Desta forma, não há rebelião e os cidadãos convivem na harmonia e na concórdia.
Logicamente, a valorização do trabalho e do cidadão útil à sociedade a que pertence, que contribui para o seu desenvolvimento através da sua labuta é válido. Como educadora, também reitero a mensagem e reafirmo a sua importância, porém, com uma pequena ressalva interpretativa, que o Miguel Torga soube tão bem imortalizar num dos seus poemas. A Cigarra da fábula passou o verão a cantar e, por imprudência, não amealhou a comida para o inverno, morrendo depois à fome.
De certa forma, a Cigarra cantora é uma artista. Representa todos os que fazem da arte a sua vida e aí reside o erro da fábula. Não considerar a arte um trabalho por parecer mais uma diversão, no entanto, criar implica trabalho. O cantor, o escultor, o escritor, o poeta, o ator, entre muitos outros, presenteiam-nos com a sua arte, que é o seu trabalho. A ideia de que o artista morrerá à fome é, portanto, antiga e a responsabilidade é dos seus pares humanos, que não lhe reconhecem a devida importância. Se o trabalho (entendido na sua aceção mais vulgar) é fundamental, a arte não o é menos. Esta é pensamento, trabalho intelectual produzido e que nos retira do marasmo e alivia as agruras da vida, embelezando-a. O pensamento e a manifestação artística são o que verdadeiramente nos distinguem dos seres irracionais. É também através da arte que sabemos o que é a beleza saída das mãos do Homem. Quem se dedica a embelezar os meus dias, a torná-los mais leves e um pouco mais fáceis, merece toda a minha admiração e estima. O ser humano não seria o mesmo sem o benefício da literatura que nos recentra, comove ou revolta, da pintura que extasia ou da escultura que envolve, da música que transcende e do cinema que emociona… Sem arte, logo sem os artistas, seríamos seres brutos, incapazes de discernir o belo que brota da ideia e da ação humana. Desta forma, a manifestação artística é prazenteira, mas não aliena, pelo contrário, traz o ser para dentro de si, obriga-o a refletir, a compreender o que sente e quem é, a descobrir e a construir a sua identidade. Na verdade, poucos trabalhos terão esta importância!
A Cigarra, penalizada pela sua arte e incompreendida, foi castigada, no entanto, durante o verão, alguém se deixou embalar pelo seu canto! Não terá sido à toa que Torga compara os famigerados poetas ao inseto!
Eu, que me deleito com algumas realizações humanas, agradeço a todas as cigarras deste mundo, “também bebo em vossa honra o doce vinho”, pois tornam-me a vida mais agradável e menos pesada.

Nina M.

Aos Poetas

Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insetos perseguidos.

Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.

E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.

Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.

Homens do dia a dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.

Miguel Torga, in 'Odes'



Sem comentários:

Enviar um comentário