A Cigarra e a formiga
Hoje,
enquanto corria (a corrida é sempre um bom momento de reflexão, quando o faço
só), lembrei-me da fábula de La Fontaine (também poderia ser de Esopo), que nos
foi contada a todos na nossa infância: A Cigarra e a formiga. Será
desnecessário resumir o seu conteúdo, pois todos se lembrarão.
As
fábulas encerram uma moralidade, um juízo ético, sobre determinados
comportamentos ou ações. Assim, com esta, aprendemos a valorizar o trabalho, a
saber que sem ele não existe autossustento e que é necessário laborar para
acautelar o futuro. Pretende-se ensinar aos mais pequenos que a vida não pode
ser apenas diversão ou como diria a minha avó “quem com meninas da vida
(expressão eufemística por não gostar do jargão) joga o vinte, fica pobre,
miserável e pedinte. Quem é de Português, pode apreciar a tripla adjetivação,
com gradação crescente que o aforismo contém, com o objetivo de salientar que
uma vida devassa e apenas de prazeres, conduz o ser humano ao infortúnio.
Logicamente, na época, em que a fábula terá sido criada, não havia ainda
consciência social, a providência do Estado nem a noção de Estado como o
conjunto de cidadãos que nele habitam e muito menos a perspetiva de
democraticamente se pagar pela paz social. Para isso foi criado, muitos séculos
depois, o RSI, protegendo-se, nalguns casos, as incautas cigarras, que nada
fazem, às vezes, por manifesta impossibilidade e o auxílio é um dever moral,
mas outras vezes por falta de vontade de trabalhar, que é difícil e ocupa muito
tempo, não deixando espaço para o prazer. Desta forma, não há rebelião e os
cidadãos convivem na harmonia e na concórdia.
Logicamente,
a valorização do trabalho e do cidadão útil à sociedade a que pertence, que
contribui para o seu desenvolvimento através da sua labuta é válido. Como
educadora, também reitero a mensagem e reafirmo a sua importância, porém, com
uma pequena ressalva interpretativa, que o Miguel Torga soube tão bem
imortalizar num dos seus poemas. A Cigarra da fábula passou o verão a cantar e,
por imprudência, não amealhou a comida para o inverno, morrendo depois à fome.
De
certa forma, a Cigarra cantora é uma artista. Representa todos os que fazem da
arte a sua vida e aí reside o erro da fábula. Não considerar a arte um trabalho
por parecer mais uma diversão, no entanto, criar implica trabalho. O cantor, o
escultor, o escritor, o poeta, o ator, entre muitos outros, presenteiam-nos com
a sua arte, que é o seu trabalho. A ideia de que o artista morrerá à fome é,
portanto, antiga e a responsabilidade é dos seus pares humanos, que não lhe
reconhecem a devida importância. Se o trabalho (entendido na sua aceção mais
vulgar) é fundamental, a arte não o é menos. Esta é pensamento, trabalho
intelectual produzido e que nos retira do marasmo e alivia as agruras da vida,
embelezando-a. O pensamento e a manifestação artística são o que
verdadeiramente nos distinguem dos seres irracionais. É também através da arte
que sabemos o que é a beleza saída das mãos do Homem. Quem se dedica a
embelezar os meus dias, a torná-los mais leves e um pouco mais fáceis, merece
toda a minha admiração e estima. O ser humano não seria o mesmo sem o benefício
da literatura que nos recentra, comove ou revolta, da pintura que extasia ou da
escultura que envolve, da música que transcende e do cinema que emociona… Sem
arte, logo sem os artistas, seríamos seres brutos, incapazes de discernir o
belo que brota da ideia e da ação humana. Desta forma, a manifestação artística
é prazenteira, mas não aliena, pelo contrário, traz o ser para dentro de si,
obriga-o a refletir, a compreender o que sente e quem é, a descobrir e a
construir a sua identidade. Na verdade, poucos trabalhos terão esta importância!
A
Cigarra, penalizada pela sua arte e incompreendida, foi castigada, no entanto,
durante o verão, alguém se deixou embalar pelo seu canto! Não terá sido à toa
que Torga compara os famigerados poetas ao inseto!
Eu,
que me deleito com algumas realizações humanas, agradeço a todas as cigarras
deste mundo, “também bebo em vossa honra o doce vinho”, pois tornam-me a vida
mais agradável e menos pesada.
Nina
M.
Aos Poetas
Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insetos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...
Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.
Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.
E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.
Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.
Homens do dia a dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.
Miguel Torga, in 'Odes'
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insetos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...
Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.
Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.
E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.
Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.
Homens do dia a dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.
Miguel Torga, in 'Odes'
Sem comentários:
Enviar um comentário