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sábado, 29 de junho de 2019

Crónica de Maus Costumes 138


Brio e persistência

            A memória humana tem características engraçadas. A de longa duração alberga a memória esporádica que nos permite recuperar episódios vividos num passado longínquo. A minha é competente. De alguma forma, o meu cérebro foi capaz de transformar a memória sensorial em memória de longa duração, talvez por considerar pertinente a informação veiculada. Deve ser por isso que me lembro de conversas e situações ocorridas há bastante tempo.
            Lembro-me, por exemplo, numa aula de Metodologia e Didática do Português, cadeira do quarto ano do curso, o professor que se empenhava seriamente em comprovar a ignorância dos seus alunos, a um passo de irem para estágio, lançar uma pergunta para a turma, com ar triunfal de quem espera a escorregadela na calçada, sobre um tempo verbal do modo conjuntivo. Julgo que a superioridade intelectual de quem sabia mais do que nós, inexperientes quase-estagiárias, intimidava grande parte da turma. Recordo-me perfeitamente de ficar remoída com tal comportamento e de não suportar a piada sarcástica sobre a ignorância dos alunos, muito incultos, à data, é certo, hoje, um pouco menos, mas, no entanto, merecedores de respeito. Desse modo, após o lançamento da questão e uns breves segundos de silêncio, vendo que ninguém se atrevia a responder (julgo que mais por medo de desapontar a certeza do professor na incompetência dos alunos do que por não saber), numa reação de certa rebeldia, atirei a resposta certa com um descontraído encolher de ombros, como quem quer dizer que se era para não saber a resposta, a pergunta teria de ser mais difícil. Senti os olhares das colegas pousados sobre mim e alguns sorrisos escamoteados como se tivesse vingado a honra de todas.
            Lembrei-me do episódio, porque, no outro dia ao ouvir Clóvis de Barros (filósofo brasileiro), apercebi-me de que o brio de que ele falava aos seus alunos, estudantes universitários, foi-me acompanhando ao longo da vida. Ele tentava convencer os seus discentes de que não há justificação para não ser capaz de ler um texto difícil (dava como exemplo Kant). Se o homem em questão tinha refletido sobremaneira e tinha escrito e a nós cabe apenas o papel de o compreender e interpretar, como declarar-se incapaz de o fazer? É uma questão de persistência. De fazer leituras várias até alcançarmos o entendimento. Se temos um cérebro, então, usemo-lo. Se não o fazemos é por mera preguiça. A essa tenacidade chamamos brio. E é o brio que nos permite evoluir intelectualmente. Pensar com competência exige empenho e dedicação. Temos obrigatoriamente de nos sentir incomodados com o facto de outros nos considerarem incapazes.
Gostaria de pensar que o sarcasmo era uma estratégia propositada, usada pelos professores, para espicaçar consciências, mas tenho seguramente as minhas dúvidas. Facto é que quando se chega à Universidade, na idade dos três is (todos os jovens se julgam imortais, invencíveis e inférteis) e nenhum dos pressupostos é verdadeiro, há quem lhes quebre a espinha para que percebam que o patamar é outro e que as belíssimas notas de dezassete do tempo de liceu eram favas contadas… Difícil é manter o brio pelos treze, catorze e quando se chegava ao quinze, que grande feito! E os professores de então faziam questão de o demonstrar.
Noutra altura, numa aula de Literatura Portuguesa, a professora (bastante irónica por sinal, mas cuja competência admirava) decidiu pegar na minha frequência para exemplificar o que seria uma resposta correta. Naturalmente, qualquer professor sabe que ao fazer isto, envaidece um pouco o seu aluno. É uma pequena vaidade legítima, fruto do trabalho, porém, não fosse ficar demasiado confiante, aproveitou de imediato a deixa para acrescentar que o facto também comportava um risco inerente, pois ao fazer novamente a leitura, se considerasse ter deixado escapar algo, ainda poderia corrigir a nota. Para baixo, entenda-se. Se a memória não me atraiçoa, sugeri que assim sendo, sentisse-se à vontade para pegar noutro enunciado…
Nesse mundo de sapiência onde os doutos sentem brio pelo seu saber, não é fácil manter o nosso, cientes da nossa fragilidade e do tanto que ainda nos falta, porém, é esta qualidade que nos possibilita o desejo de fazermos melhor, de querermos ser melhores e mais competentes. Se não tivermos brio no que fazemos, então, já desistimos de evoluir e é trágico, porque o ser humano está condenado ao aperfeiçoamento até ao final dos seus dias para que a sua vida tenha sentido, para não ser um mero espetador, mas antes o ator principal da peça que vai escrevendo ao longo da sua caminhada.
Nina M.

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