Brio e persistência
A memória humana tem características
engraçadas. A de longa duração alberga a memória esporádica que nos permite
recuperar episódios vividos num passado longínquo. A minha é competente. De
alguma forma, o meu cérebro foi capaz de transformar a memória sensorial em memória
de longa duração, talvez por considerar pertinente a informação veiculada. Deve
ser por isso que me lembro de conversas e situações ocorridas há bastante
tempo.
Lembro-me, por exemplo, numa aula de
Metodologia e Didática do Português,
cadeira do quarto ano do curso, o professor que se empenhava seriamente em
comprovar a ignorância dos seus alunos, a um passo de irem para estágio, lançar
uma pergunta para a turma, com ar triunfal de quem espera a escorregadela na
calçada, sobre um tempo verbal do modo conjuntivo. Julgo que a superioridade
intelectual de quem sabia mais do que nós, inexperientes quase-estagiárias,
intimidava grande parte da turma. Recordo-me perfeitamente de ficar remoída com
tal comportamento e de não suportar a piada sarcástica sobre a ignorância dos
alunos, muito incultos, à data, é certo, hoje, um pouco menos, mas, no entanto,
merecedores de respeito. Desse modo, após o lançamento da questão e uns breves
segundos de silêncio, vendo que ninguém se atrevia a responder (julgo que mais por
medo de desapontar a certeza do professor na incompetência dos alunos do que
por não saber), numa reação de certa rebeldia, atirei a resposta certa com um
descontraído encolher de ombros, como quem quer dizer que se era para não saber
a resposta, a pergunta teria de ser mais difícil. Senti os olhares das colegas
pousados sobre mim e alguns sorrisos escamoteados como se tivesse vingado a
honra de todas.
Lembrei-me do episódio, porque, no
outro dia ao ouvir Clóvis de Barros (filósofo brasileiro), apercebi-me de que o
brio de que ele falava aos seus alunos, estudantes universitários, foi-me
acompanhando ao longo da vida. Ele tentava convencer os seus discentes de que
não há justificação para não ser capaz de ler um texto difícil (dava como
exemplo Kant). Se o homem em questão tinha refletido sobremaneira e tinha
escrito e a nós cabe apenas o papel de o compreender e interpretar, como
declarar-se incapaz de o fazer? É uma questão de persistência. De fazer
leituras várias até alcançarmos o entendimento. Se temos um cérebro, então,
usemo-lo. Se não o fazemos é por mera preguiça. A essa tenacidade chamamos
brio. E é o brio que nos permite evoluir intelectualmente. Pensar com
competência exige empenho e dedicação. Temos obrigatoriamente de nos sentir
incomodados com o facto de outros nos considerarem incapazes.
Gostaria
de pensar que o sarcasmo era uma estratégia propositada, usada pelos
professores, para espicaçar consciências, mas tenho seguramente as minhas
dúvidas. Facto é que quando se chega à Universidade, na idade dos três is (todos
os jovens se julgam imortais, invencíveis e inférteis) e nenhum dos pressupostos
é verdadeiro, há quem lhes quebre a espinha para que percebam que o patamar é
outro e que as belíssimas notas de dezassete do tempo de liceu eram favas
contadas… Difícil é manter o brio pelos treze, catorze e quando se chegava ao
quinze, que grande feito! E os professores de então faziam questão de o
demonstrar.
Noutra
altura, numa aula de Literatura Portuguesa, a professora (bastante irónica por
sinal, mas cuja competência admirava) decidiu pegar na minha frequência para
exemplificar o que seria uma resposta correta. Naturalmente, qualquer professor
sabe que ao fazer isto, envaidece um pouco o seu aluno. É uma pequena vaidade
legítima, fruto do trabalho, porém, não fosse ficar demasiado confiante,
aproveitou de imediato a deixa para acrescentar que o facto também comportava
um risco inerente, pois ao fazer novamente a leitura, se considerasse ter
deixado escapar algo, ainda poderia corrigir a nota. Para baixo, entenda-se. Se
a memória não me atraiçoa, sugeri que assim sendo, sentisse-se à vontade para
pegar noutro enunciado…
Nesse
mundo de sapiência onde os doutos sentem brio pelo seu saber, não é fácil
manter o nosso, cientes da nossa fragilidade e do tanto que ainda nos falta,
porém, é esta qualidade que nos possibilita o desejo de fazermos melhor, de
querermos ser melhores e mais competentes. Se não tivermos brio no que fazemos,
então, já desistimos de evoluir e é trágico, porque o ser humano está condenado
ao aperfeiçoamento até ao final dos seus dias para que a sua vida tenha sentido,
para não ser um mero espetador, mas antes o ator principal da peça que vai escrevendo
ao longo da sua caminhada.
Nina
M.
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