Imprevistos
Toda a nossa a vida é um grande imprevisto que
vamos escrevendo à medida que vamos existindo. A crónica de hoje é exemplo
disso mesmo. Não era para ser este o tema, mas outro que anotei num qualquer
pedaço de papel e que já não sei onde guardei. Talvez se pensar bem, me lembre,
mas também já não me faz falta nenhuma, porque a imprevisibilidade da vida faz
com que eu faça inversão de marcha e siga novo trilho.
A surpresa bateu à porta dos vizinhos. Não foi boa.
Tendemos a pressupor que as surpresas sejam agradáveis, mas nada mais errado.
Basta procurarmos o étimo da palavra. Surpresa vem do francês surprise, do verbo surprendre, que, por sua vez, tem origem no latim prehendere e que significa prender,
agarrar. O prefixo (sur) significa
sobre. Facilmente chegamos à total compreensão da palavra. Alguém é
“sobreprendido”, ou seja, um bandido que se prepara para assaltar alguém, mas
que é surpreendido e acaba ele preso pela vítima. Surpresa! Nada positiva. De
modo que a esperança que teima em acreditar que uma surpresa será sempre
positiva é infundada, para não dizer estúpida.
A surpresa que se abateu sobre estas pessoas foi
negativa e estúpida por ferir a natureza e o percurso natural das coisas. Perderam
um filho de vinte e nove anos, que tinha acabado de se levantar e se preparava
para tomar o pequeno-almoço. Caiu com grande estrondo. Com o barulho, pais e
irmão levantaram-se e viram o corpo caído, inanimado. Um jovem sem qualquer
problema de saúde. Obviamente, chamaram o INEM e o rapaz foi prontamente
socorrido por outra vizinha enfermeira que, apesar dos esforços, não conseguiu
segurar a vida, que sentiu escorrer-lhe por entre os dedos, enquanto fazia as
manobras de reanimação cardíaca, até que a equipa médica chegasse. Fulminante.
Talvez todos gostássemos de uma morte assim: limpa
e cirúrgica, mas não aos vinte e nove! A partir de muita idade e muita vida e
se as forças nos faltassem! Até lá, queremos sorver vida!
Hoje, acredito que metade da alma daqueles pais
morreu juntamente com o filho. Sobra outro, que não ocupa o vazio e a saudade e
a dor que ficam, mas que obriga a alguma reação e possibilitará, talvez, algum
conforto… Deveria ser terminantemente proibido um progenitor ver o seu filho
partir antes de si. É o absurdo da vida e tudo aquilo que nos ausenta de um
sentido fere e mata. Julgo não haver absurdo, angústia ou dor maior para
suportar. Por alguns testemunhos que já li, os pais em luto pela perda de um
filho (luto que é interminável) aprendem a lidar com a dor, aprendem a gerir a
dor que não se desvanece, mas que se aninha dentro deles e vai causando danos
mais suaves com a passagem do tempo. Porém, ninguém deveria ter que passar por
uma provação desta natureza.
Só me lembro da crónica de Lobo Antunes, feliz por
lhe ter surgido nítida a ideia para a escrita do seu próximo livro e que, de
repente, se lembra dos pais e lhe sai um “como gostaria que me houvessem dado
colo! Às vezes sou tão pequeno!” E estas palavras de um velho gigante literário
emocionam-me e penso: “ainda bem que dei colo, muito colo aos meus”! E continuo
a dar sempre que mo pedem e até quando o rejeitam. E hoje, mais certamente sei
que nenhum momento deve ser desperdiçado e faço o mea culpa por todas as vezes que resmungo, porque me obrigam a
levantar da cama ao exigirem o beijo de boa-noite, antes de adormecerem. Faço-me
sempre de difícil e de zangada, pois bem que os avisei que se se demorassem a arranjar
para dormir, a mãe deitar-se-ia primeiro e não iria ao quarto. Acabo normalmente
por ceder. Desconfio que preciso mais eu do beijo e do abraço do que eles. Ao ler
Lobo Antunes, fico aliviada. Não quero que os meus filhos algum dia digam que a
mãe não lhes deu colo e lhe sentiram a falta ou eu pensar que poderia não ter tido
pruridos emocionais e ter-lhes dito vezes sem conta que os amava. Prolongarei os
beijos ao adormecer, ao entardecer e ao amanhecer e multiplicarei os “amo-te mais
que muito” por esta vida fora, porque nunca saberei quando será o meu último. Sei
apenas que um dia o será. Espero mesmo que a despedida seja minha e que tenham eles
de lidar com a perda da mãe, lá para os noventa e qualquer coisa…
Nina M.
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