O Sabor da Infância
O tema não é novo. Já o abordei mais
do que uma vez neste espaço. A infância tem, em mim, a mesma importância que o
sonho. Já me assumi saudosista e a infância deixa-me uma saudade boa, daquela
que nos faz parecer estúpidos, quando somos apanhados a rir sós, sem que os
outros percebam as nossas razões. Normalmente, não apetece explicar, porque o
pensamento já terá dado tantas voltas que conseguir explicar como se chegou ao
passado é complicado. Então, vale mais como resposta um encolher de ombros ao
jeito de quem diz : “rio-me por nada” e arruma-se o assunto.
A minha infância tem cheiros,
sabores e muitas pessoas. Algumas já não partilham esta dimensão e lembrá-la é
também recordar os que já desapareceram. Lembro-me, repentinamente, do senhor
Zé Corino que quando passava, a miudagem corria atrás dele. “Ó senhor Zé, faça lá
um verso!” E o poeta popular, mal-amanhado, pobremente vestido, de calças escuras
e largas, lá desencantava rapidamente uma quadra para gáudio dos cachopos! “ Faça
outra!” Pedíamos. Era assim até que se fartasse ou lhe faltasse a inspiração. Talvez
o meu gosto pelas rimas venha daí!...
Sabe a cristas de
silvas novas cortadas, descascadas e comidas sob um sol tórrido de verão, a
azedas de trevos que podiam ou não ser de quatro folhas (ninguém gostava deles,
mas todos os comiam!) e a água da chuva (destilada, portanto) com sabor a tinta
do gradeamento do jardim, nos famosos concursos de sorvedouro, a paparotos de
amoras no tempo quente de julho e a baloiços perigosos feitos com um rebo de
eucalipto e uma corda atado a um carvalho enorme. À luz do tempo, é perigoso.
Se a corda se desatasse, alguém poderia ter-se magoado seriamente, mas ao menino e ao borracho põe-lhe Deus a mão
por baixo e Ele quis que a ganapada se divertisse na sua absoluta
inconsciência e audácia, sem que nenhum mal viesse… A minha infância também
está povoada das vozes esganiçadas das mães que gritavam tão fortemente pelo
nome dos filhos que era audível a dois quilómetros de distância! Não havia
telemóveis nem eram necessários! Sempre alguém ouvia e avisava o parceiro que a
mãe estava a chamar. Corríamos que nem loucos, monte acima e monte abaixo
descobrindo minas de água, presas onde se colhiam os agriões para a salada e
madeira encastelada transformada em torre de castelo onde morava a Rapunzel…
A minha infância também sabe a fruta
roubada pelos mariolas que trepavam às árvores que nem macacos e traziam no
regaço o produto do imenso trabalho e também a castanhas retiradas dos ouriços
com os pés. Sabe ao vento frio do outono e do inverno que não era suficiente
para impedir as brincadeiras, mas o cheiro da terra quente do mês de julho, que
se sentia pela noite dentro e permitia as brincadeiras até às onze da noite,
era especial…
Hoje, já não há meses de julho assim
tão quentes… A saudade duplica pelo tempo vivido e pelo calor…
Há uma magia na infância, e aquela
de que falo durou até cerca dos 11 anos, que não mais desaparece da alma. As
sensações ficaram incrustadas e volta e meia surgem à superfície para me fazer
sorrir… Quando é que a realidade se tornou complicada? Parece-me que a partir
da adolescência. Não sinto a mesma nostalgia dessa fase. Não deixa grande
saudade. Parece haver um lapso temporal entre a infância e a faculdade, tempo
que recordo com prazer, de natureza diferente da pureza da meninice, mas ainda
assim com crescimento, desenvolvimento pessoal, muita alegria e algumas dores
também. O que está no meio não foi, com certeza, terrível, mas por algum motivo
não se destaca.
Seja como for a infância, tempo mítico
da felicidade plena, só encontra concorrente quando se sonha de olhos fechados,
mas abertos e se deambula na imaginação, onde se recria novas vidas e experiências
como se quer e deseja, sem que o peso do mundo possa interferir. É-se novamente
criança e absolutamente, intrinsecamente e irremediavelmente feliz!
Nina M.
Sem comentários:
Enviar um comentário