Seguidores

sábado, 16 de março de 2019

Crónica de Maus Costumes 122


O Sabor da Infância

            O tema não é novo. Já o abordei mais do que uma vez neste espaço. A infância tem, em mim, a mesma importância que o sonho. Já me assumi saudosista e a infância deixa-me uma saudade boa, daquela que nos faz parecer estúpidos, quando somos apanhados a rir sós, sem que os outros percebam as nossas razões. Normalmente, não apetece explicar, porque o pensamento já terá dado tantas voltas que conseguir explicar como se chegou ao passado é complicado. Então, vale mais como resposta um encolher de ombros ao jeito de quem diz : “rio-me por nada” e arruma-se o assunto.
            A minha infância tem cheiros, sabores e muitas pessoas. Algumas já não partilham esta dimensão e lembrá-la é também recordar os que já desapareceram. Lembro-me, repentinamente, do senhor Zé Corino que quando passava, a miudagem corria atrás dele. “Ó senhor Zé, faça lá um verso!” E o poeta popular, mal-amanhado, pobremente vestido, de calças escuras e largas, lá desencantava rapidamente uma quadra para gáudio dos cachopos! “ Faça outra!” Pedíamos. Era assim até que se fartasse ou lhe faltasse a inspiração. Talvez o meu gosto pelas rimas venha daí!...
Sabe a cristas de silvas novas cortadas, descascadas e comidas sob um sol tórrido de verão, a azedas de trevos que podiam ou não ser de quatro folhas (ninguém gostava deles, mas todos os comiam!) e a água da chuva (destilada, portanto) com sabor a tinta do gradeamento do jardim, nos famosos concursos de sorvedouro, a paparotos de amoras no tempo quente de julho e a baloiços perigosos feitos com um rebo de eucalipto e uma corda atado a um carvalho enorme. À luz do tempo, é perigoso. Se a corda se desatasse, alguém poderia ter-se magoado seriamente, mas ao menino e ao borracho põe-lhe Deus a mão por baixo e Ele quis que a ganapada se divertisse na sua absoluta inconsciência e audácia, sem que nenhum mal viesse… A minha infância também está povoada das vozes esganiçadas das mães que gritavam tão fortemente pelo nome dos filhos que era audível a dois quilómetros de distância! Não havia telemóveis nem eram necessários! Sempre alguém ouvia e avisava o parceiro que a mãe estava a chamar. Corríamos que nem loucos, monte acima e monte abaixo descobrindo minas de água, presas onde se colhiam os agriões para a salada e madeira encastelada transformada em torre de castelo onde morava a Rapunzel…
            A minha infância também sabe a fruta roubada pelos mariolas que trepavam às árvores que nem macacos e traziam no regaço o produto do imenso trabalho e também a castanhas retiradas dos ouriços com os pés. Sabe ao vento frio do outono e do inverno que não era suficiente para impedir as brincadeiras, mas o cheiro da terra quente do mês de julho, que se sentia pela noite dentro e permitia as brincadeiras até às onze da noite, era especial…
            Hoje, já não há meses de julho assim tão quentes… A saudade duplica pelo tempo vivido e pelo calor…
            Há uma magia na infância, e aquela de que falo durou até cerca dos 11 anos, que não mais desaparece da alma. As sensações ficaram incrustadas e volta e meia surgem à superfície para me fazer sorrir… Quando é que a realidade se tornou complicada? Parece-me que a partir da adolescência. Não sinto a mesma nostalgia dessa fase. Não deixa grande saudade. Parece haver um lapso temporal entre a infância e a faculdade, tempo que recordo com prazer, de natureza diferente da pureza da meninice, mas ainda assim com crescimento, desenvolvimento pessoal, muita alegria e algumas dores também. O que está no meio não foi, com certeza, terrível, mas por algum motivo não se destaca.
            Seja como for a infância, tempo mítico da felicidade plena, só encontra concorrente quando se sonha de olhos fechados, mas abertos e se deambula na imaginação, onde se recria novas vidas e experiências como se quer e deseja, sem que o peso do mundo possa interferir. É-se novamente criança e absolutamente, intrinsecamente e irremediavelmente feliz!
Nina M.

Sem comentários:

Enviar um comentário