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sábado, 10 de julho de 2021

Crónica de Maus Costumes 240

  Deus, Kant e o Homem 

 Normalmente, quando corro só, a atividade não é infrutífera. Além do bem que faz à minha saúde, permite-me o diálogo entre mim e a minha consciência. Durante a corrida, assolam-me pensamentos e reflexões. Um texto de cariz filosófico que li sobre a diferença entre a compreensão e o perdão ou a justificação e com o qual, genericamente, concordo, estabelecia a diferenciação entre os conceitos. Compreender não significa perdoar ou desresponsabilizar e nem a sociedade pode viver de forma diferente. O facto de compreendermos as motivações que poderão estar por detrás de um crime não significa que o responsável seja perdoado e ilibado, exceto no caso de inimputabilidade. Ora, creio que o Homem não pode viver sem lei nem sem mecanismos de regulação, por incapacidade de por si só ser capaz de colocar os interesses do bem comum à frente dos seus. Esta estirpe de humano sempre rareou, pelo que para haver ordem e civismo, temos necessidade de recorrer a códigos de conduta ética estabelecidos quer pela lei quer pela religião. Ambas coartam a liberdade individual, se esta colide com o interesse e o bem do grupo. Tudo seria perfeito se o Homem usasse a sua liberdade em prol da sociedade, mas não o faz. A sua condição narcísica impõe-se e o distanciamento e a firmeza necessários para abdicar de si tolhem-lhe as escolhas. Eu gostaria muito que cada um de nós fosse capaz de abraçar a lei moral Kantiana. Seria maravilhoso se, por opção, todos agíssemos de acordo com uma premissa que pudesse ser válida e justa para todos. Agir através da “razão da pura” que conhece e distingue a priori o bem do mal. Seria até mais utilitarista, para não abusar da paciência humana e, ainda que a boa ação não fosse preconizada pela boa intenção, se fosse benéfica, seria válida. Julgo não haver garantia de que o interesse próprio não possa coincidir com a moral… Certo é que o Homem agiria por si e de acordo com a sua razão, em busca da harmonia comum, sem esperar qualquer recompensa ou castigo… A lei moral dispensaria, assim, a religião. Se tomarmos como exemplo o Cristianismo, que nos impele para o bem e para o perdão, compreendemos duas coisas: a Terra não é efetivamente o seu reino (de Cristo) – “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (a sociedade pode compreender, mas não pode deixar de punir as más condutas) - e que a intelectualidade cristã criou o impulso necessário para que o Homem aja em conformidade com o bem: a recompensa ou o castigo, numa vida além da morte, traduzidos vulgarmente pela ideia de paraíso ou de inferno. Quem faz o bem, com o objetivo último de alcançar o paraíso está a ser utilitarista e retiraria brilho ao seu comportamento. Ser o fim em si mesmo e procurar o bem, porque a razão assim o dita seria mais meritório, na opinião de Kant. Na minha também. O Homem teria razões para se comportar bem se afinal Deus é amor e tudo perdoa? Há, porém, uma condicionante para se alcançar o perdão. Deus estabelece também as suas regras: o arrependimento sincero. Nem todos o alcançam. Dostoiévski foi exímio na forma como tratou o dilema moral em “Crime e Castigo”. Depois de ter cometido o crime perfeito, sem indícios da sua culpabilidade, ainda que o inspetor o adivinhasse, Raskolnikov entregou-se e cumpriu pena na Sibéria. A sua consciência, aliada ao conhecimento de Deus, apresentado por Sonja, impossibilitaram-no de viver tranquilo e de aceitar a sua própria teoria: o homicídio da velha e avarenta senhoria teria sido um crime realizado a pensar no bem comum. Depois do russo, Nietzsche, o anticristo, e Sartre, o existencialista, colocam o Homem como o único responsável por si e pelas suas escolhas, sem qualquer apoio divino. Assim, ao mesmo tempo que reconhecem o livre-arbítrio no ser humano, responsabilizam-no pelas suas escolhas. Cada um de nós deverá ter a consciência de que a nossa ação terá impacto no outro. A forma como é recebida já não nos caberá, mas o gatilho foi puxado, convidando-nos a assumir as consequências que daí advierem, sem esperar um paraíso prometido. Por isso, mesmo que não queiramos a guerra e nos mantenhamos longe dela, por vezes, é a guerra que vem ter connosco e nos obriga a escolhas sem retorno, com ou sem ajuda divina, sempre condicionadas pelas circunstâncias. O caminho nunca é fácil e é sempre feito caminhando. Haja a ilusão de que amanhã poderemos construir-nos melhor do que hoje para não desistirmos da humanidade.

 Nina M.

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