Seguidores

sábado, 2 de maio de 2020

Crónica de Maus Costumes 180


Gente feliz com lágrimas (João de Melo)


            Há títulos felizes e este que evoca o romance de João de Melo (que por acaso ainda não li, mas lá chegarei, até porque ele existe na minha estante) é com certeza um deles. Detesto ter de fazê-los e hoje acordei com ele a bailar-me o espírito. Há gente assim, feliz, mas estranha também e que acorda com títulos de romances e versos e pensamentos emaranhados. Deu-se o caso de hoje acordar com isto e não terá sido à toa. Ora cá está ele a ser-me útil, devidamente referenciado, como deve ser e com os créditos a seu dono.
            Antes de passarmos ao assunto da crónica, deixar uma palavra de apreço e de agradecimento a todas as mães (apenas àquelas que são dignas de usar o título) e, em particular à minha, que tem uma qualidade única: ser a melhor mãe do mundo! Pensarão o mesmo da vossa e, portanto, não valerá a pena travarmo-nos de razões sobre o assunto. Também já há uma crónica dedicada às mães e não será desejável voltar aos mesmos temas sob pena de repetir-me. Começa a ser difícil não o fazer, porque esta brincadeira já vai longa…
            Hoje, pretendo narrar uma estória que comprova a dificuldade que o ser humano ainda sente para fazer prevalecer os seus direitos, bem como a tirania e tiques de autoritarismo que ainda persistem dentro de determinados organismos e de certas instituições públicas, apesar da revolução de abril e da democracia instituída. Sou absolutamente sensível e sinto-me profundamente ofendida na minha dignidade de cidadã e no meu sentido de justiça quando os pressinto. Se sinto injustiça, tremem-me as entranhas e todo o meu ser vibra de revolta (assim me senti na última grande greve dos professores).
Há um grupo de vinte e dois agentes da Unidade Especial da Polícia que sofreram um processo disciplinar por se terem negado a cumprir ordens superiores. Dito assim, parece haver motivo para punição, mas compreendamos os seus contornos. A indisciplina prendeu-se com a recusa de entrar no recinto de jogo para o qual estariam destacados. Pois bem, nos estatutos que regulamentam o Corpo de Intervenção (CI), uma das valências da UEP (Unidade especial de Polícia), está determinado que esta força seja o último patamar de intervenção, após verificar-se que todos os outros mecanismos não conseguiram repor a ordem pública. Ora, num jogo de futebol amigável e particular, sem a presença de um número de adeptos que justificasse tais medidas, como comprova o facto de não ter havido qualquer incidente e onde o policiamento existente era suficiente, qual o motivo para fazerem entrar no recinto uma força que deve ser de retaguarda? A revolta dos agentes prende-se com o facto de estas situações se verificarem repetidamente ao longo dos anos. Para o poderem fazer, os homens perdiam sucessivamente a suas folgas, que supostamente seriam repostas, mas como o serviço a cumprir é sempre mais do que as folgas, as horas em excesso entravam no banco de horas e assim permaneciam. Por outro lado, estavam a ser usados serviços públicos num evento particular. Todos os agentes presentes no interior do estádio, estariam a ser pagos pelo serviço de gratificado (horas extraordinárias) pela entidade que promoveu o evento. No entanto, o Corpo de Intervenção, estivessem os homens de folga ou não, se chamados, eram obrigados a ir para o serviço, sem haver lugar a pagamento dos referidos gratificados por, à data, não terem direito a ele. Sucede que ao cabo de anos, homens feitos, quarentões e cinquentões, não estão para lidar com o absurdo e a tirania sem reclamar. Antes de chegarem a este ponto, as reivindicações foram muitas, mas bateram em ouvidos surdos. Acresce ainda que apesar de se terem recusado a entrar, por não haver qualquer situação de desordem pública dentro do estádio e tendo-se regido por aquilo que o próprio estatuto prevê, permaneceram junto do recinto desportivo, caso fosse necessária a sua intervenção, o que não veio a verificar-se. Ou seja, não entraram, por não haver claramente nada que justificasse a sua entrada, mas permaneceram em prontidão.
Perante a rebeldia, foram abertos os referidos processos disciplinares, analisados e discutidos dentro da própria instituição. Cada um deles foi condenado a uma pena suspensa de cinco meses! Significa cinco meses sem salário, porque disseram não a uma ordem sem fundamento, na defesa e cumprimento do estatuto que os regulamenta! Evidentemente, a procissão ainda vai no adro e o processo seguirá para o MAI (Ministério de Administração Interna), de quem se espera maior siso!
Curiosamente, depois do sucedido, de cada vez que esta força é convocada para prestamento desse serviço, em dias de folga, já há lugar a pagamento. Não posso deixar de me interrogar sobre isto: se as entidades privadas são obrigadas a pagarem o policiamento que solicitam e se naquela altura os agentes do CI não auferiam qualquer gratificação, o que se passaria?! Estaria o serviço público a ser mobilizado para prestar favores a entidades particulares? Se sim, trata-se de um claro abuso. Se, eventualmente, as entidades particulares pagavam o serviço solicitado, resta saber o que era feito ao dinheiro, já que não era para pagar horas extraordinárias aos agentes!
No entanto, quem analisou o processo deve ter considerado estas dúvidas questões menores, pois o grave problema foi a desobediência, mais do que justificada pelos próprios estatutos!
Terão estes superiores a noção de que há famílias a dependerem exclusivamente do salário destes agentes? De que há compromissos e filhos? De que comprometem o equilíbrio de muitas vidas por se sentirem desautorizados, feridos no orgulho e, coitadinhos de suas excelências, quais meninos birrentos e tiranos, fruto da sua criação, não suportam ouvir um não, mesmo quando é justificado? Homens que já deram mais de vinte anos à instituição, sempre com condutas exemplares. Não será, no mínimo, aconselhável um exame de consciência? São punidos pelo orgulho ferido de quem não sabe o que é a rua! Haja decência e honradez! As instituições públicas deveriam ser as primeiras a zelar por esses princípios e são as primeiras a claudicar.
A todos os outros colegas de ofício, ocorre-me dizer-lhes que respeitem o lema que trazem nos fatos que envergam, que manifestem a indignação perante o sucedido, na defesa dos colegas. Contra a tirania, apenas a força de uma multidão que não desmobiliza. Hoje, por eles; amanhã, por vós!
 A todos os envolvidos no processo, sintam-se orgulhosos. Não se sintam envergonhados pela desobediência em prol do que é justo e honrado. Têm a convicção de terem a razão do vosso lado. Haja luta até ao final! As árvores morrem de pé, só a fruta podre cai ao chão. Gente feliz, às vezes, também chora.
Nina M.


             



Sem comentários:

Enviar um comentário