Gente feliz com lágrimas (João de Melo)
Há títulos felizes e este que evoca
o romance de João de Melo (que por acaso ainda não li, mas lá chegarei, até
porque ele existe na minha estante) é com certeza um deles. Detesto ter de
fazê-los e hoje acordei com ele a bailar-me o espírito. Há gente assim, feliz,
mas estranha também e que acorda com títulos de romances e versos e pensamentos
emaranhados. Deu-se o caso de hoje acordar com isto e não terá sido à toa. Ora
cá está ele a ser-me útil, devidamente referenciado, como deve ser e com os
créditos a seu dono.
Antes de passarmos ao assunto da
crónica, deixar uma palavra de apreço e de agradecimento a todas as mães
(apenas àquelas que são dignas de usar o título) e, em particular à minha, que
tem uma qualidade única: ser a melhor mãe do mundo! Pensarão o mesmo da vossa e,
portanto, não valerá a pena travarmo-nos de razões sobre o assunto. Também já
há uma crónica dedicada às mães e não será desejável voltar aos mesmos temas
sob pena de repetir-me. Começa a ser difícil não o fazer, porque esta
brincadeira já vai longa…
Hoje, pretendo narrar uma estória
que comprova a dificuldade que o ser humano ainda sente para fazer prevalecer
os seus direitos, bem como a tirania e tiques de autoritarismo que ainda
persistem dentro de determinados organismos e de certas instituições públicas,
apesar da revolução de abril e da democracia instituída. Sou absolutamente
sensível e sinto-me profundamente ofendida na minha dignidade de cidadã e no
meu sentido de justiça quando os pressinto. Se sinto injustiça, tremem-me as
entranhas e todo o meu ser vibra de revolta (assim me senti na última grande
greve dos professores).
Há
um grupo de vinte e dois agentes da Unidade Especial da Polícia que sofreram um
processo disciplinar por se terem negado a cumprir ordens superiores. Dito
assim, parece haver motivo para punição, mas compreendamos os seus contornos. A
indisciplina prendeu-se com a recusa de entrar no recinto de jogo para o qual
estariam destacados. Pois bem, nos estatutos que regulamentam o Corpo de
Intervenção (CI), uma das valências da UEP (Unidade especial de Polícia), está
determinado que esta força seja o último patamar de intervenção, após
verificar-se que todos os outros mecanismos não conseguiram repor a ordem
pública. Ora, num jogo de futebol amigável e particular, sem a presença de um
número de adeptos que justificasse tais medidas, como comprova o facto de não
ter havido qualquer incidente e onde o policiamento existente era suficiente,
qual o motivo para fazerem entrar no recinto uma força que deve ser de
retaguarda? A revolta dos agentes prende-se com o facto de estas situações se
verificarem repetidamente ao longo dos anos. Para o poderem fazer, os homens
perdiam sucessivamente a suas folgas, que supostamente seriam repostas, mas
como o serviço a cumprir é sempre mais do que as folgas, as horas em excesso
entravam no banco de horas e assim permaneciam. Por outro lado, estavam a ser
usados serviços públicos num evento particular. Todos os agentes presentes no
interior do estádio, estariam a ser pagos pelo serviço de gratificado (horas
extraordinárias) pela entidade que promoveu o evento. No entanto, o Corpo de
Intervenção, estivessem os homens de folga ou não, se chamados, eram obrigados
a ir para o serviço, sem haver lugar a pagamento dos referidos gratificados
por, à data, não terem direito a ele. Sucede que ao cabo de anos, homens
feitos, quarentões e cinquentões, não estão para lidar com o absurdo e a
tirania sem reclamar. Antes de chegarem a este ponto, as reivindicações foram
muitas, mas bateram em ouvidos surdos. Acresce ainda que apesar de se terem
recusado a entrar, por não haver qualquer situação de desordem pública dentro do
estádio e tendo-se regido por aquilo que o próprio estatuto prevê, permaneceram
junto do recinto desportivo, caso fosse necessária a sua intervenção, o que não
veio a verificar-se. Ou seja, não entraram, por não haver claramente nada que
justificasse a sua entrada, mas permaneceram em prontidão.
Perante
a rebeldia, foram abertos os referidos processos disciplinares, analisados e
discutidos dentro da própria instituição. Cada um deles foi condenado a uma
pena suspensa de cinco meses! Significa cinco meses sem salário, porque
disseram não a uma ordem sem fundamento, na defesa e cumprimento do estatuto
que os regulamenta! Evidentemente, a procissão ainda vai no adro e o processo
seguirá para o MAI (Ministério de Administração Interna), de quem se espera
maior siso!
Curiosamente,
depois do sucedido, de cada vez que esta força é convocada para prestamento
desse serviço, em dias de folga, já há lugar a pagamento. Não posso deixar de
me interrogar sobre isto: se as entidades privadas são obrigadas a pagarem o
policiamento que solicitam e se naquela altura os agentes do CI não auferiam
qualquer gratificação, o que se passaria?! Estaria o serviço público a ser mobilizado
para prestar favores a entidades particulares? Se sim, trata-se de um claro
abuso. Se, eventualmente, as entidades particulares pagavam o serviço
solicitado, resta saber o que era feito ao dinheiro, já que não era para pagar
horas extraordinárias aos agentes!
No
entanto, quem analisou o processo deve ter considerado estas dúvidas questões
menores, pois o grave problema foi a desobediência, mais do que justificada
pelos próprios estatutos!
Terão
estes superiores a noção de que há famílias a dependerem exclusivamente do
salário destes agentes? De que há compromissos e filhos? De que comprometem o
equilíbrio de muitas vidas por se sentirem desautorizados, feridos no orgulho
e, coitadinhos de suas excelências, quais meninos birrentos e tiranos, fruto da
sua criação, não suportam ouvir um não, mesmo quando é justificado? Homens que
já deram mais de vinte anos à instituição, sempre com condutas exemplares. Não
será, no mínimo, aconselhável um exame de consciência? São punidos pelo orgulho
ferido de quem não sabe o que é a rua! Haja decência e honradez! As
instituições públicas deveriam ser as primeiras a zelar por esses princípios e são
as primeiras a claudicar.
A
todos os outros colegas de ofício, ocorre-me dizer-lhes que respeitem o lema
que trazem nos fatos que envergam, que manifestem a indignação perante o
sucedido, na defesa dos colegas. Contra a tirania, apenas a força de uma
multidão que não desmobiliza. Hoje, por eles; amanhã, por vós!
A todos os envolvidos no processo, sintam-se
orgulhosos. Não se sintam envergonhados pela desobediência em prol do que é
justo e honrado. Têm a convicção de terem a razão do vosso lado. Haja luta até ao
final! As árvores morrem de pé, só a fruta podre cai ao chão. Gente feliz, às vezes,
também chora.
Nina
M.
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