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sábado, 30 de maio de 2020

Crónica de Maus Costumes 184


Lúcida loucura

                Julgam-me doida ou pelo menos que padeço de uma qualquer doença que me impele para a escrita. “Não sei como tem paciência para todas as semanas apresentar a crónica sem ter nada a ganhar!”  
Deve ser a mesma maluquice que me leva a correr dez quilómetros ou a ler os livros que posso e até gostaria que pudesse ser um vício mais compulsivo.
Os meus filhos já não estranham e até fazem questão de avisar a mãe, todos os sábados à noite, que ainda tem de escrever a crónica. Obviamente, não a leem. O interesse é outro: como é fim de semana e a mãe ainda trabalha, assim o entendem, podem esticar a corda um bocadinho e ficar em companhia das novas tecnologias, por mais que me esforce por convencê-los de que a companhia dos livros é superlativa… Mesmo o Rodrigo avisa assertivamente a irmã, como se percebesse muito da vida, do alto dos seus doze anos (quase treze): Se vais ser poetisa, ficas a saber que não ganhas dinheiro com isso, como quem lhe diz para se deixar de disparates e arranjar uma ocupação a sério. Nesse momento, entro na conversa e explico que as pessoas podem e, na minha opinião, devem ter diferentes ocupações, para além das suas profissões. É com o trabalho da mãe e do pai que se põe a comida na mesa, que se pagam as contas e que se garante a boa vida burguesa que têm. O estilo de vida que se tem e que se lhes proporciona é agradável, mas é necessário sustentá-lo, porém, o verdadeiro prazer, o peso e a leveza que se lhe adiciona, o sal e o açúcar da vida são, muitas vezes, talvez até maioritariamente, encontrados fora da profissão. Evidentemente, depois, questionam se a mãe não gosta do que faz. E respondo que sim. Gosto, mas não me é suficiente. Então, arregalam os olhos e lá dizem que já trabalho tanto, por que razão arranjo outras coisas que também me dão trabalho. Julgo que compreendem melhor a corrida e a leitura, apesar de tudo… Quando escreve, a mãe continua em frente ao ecrã. De seguida, surgem as perguntas difíceis:
-para que serve a poesia?
- Em última instância, para nada. Em primeira instância, para tudo… A poesia e a literatura em geral: curar almas, trazer beleza, descobrir sentidos, explicar o ser humano… Aquela que a mãe faz serve apenas para ela ser um bocadinho mais feliz. É uma urgência que se precisa de cumprir e um resguardo num mundo que é só da mãe e onde ela gosta de estar. Um mundo inteiro à sua disposição e de completa liberdade. Talvez a magia das palavras seja a liberdade que nos permite. Em nenhuma outra casa seremos tão livres ou teremos a oportunidade de construir mundos e realidades paralelas, de podermos ser outros, se o quisermos. Gosto desse sabor! Essa é a recompensa. Uma recompensa trabalhosa e que, por vezes, nos deixa exauridos e vazios, despojados de nós, mas sempre renovados.
“Nem só de pão vive o Homem” diz o evangelho, a lembrar a importância do imaterial. Obviamente, num contexto diferente, mas essa transcendência e espiritualidade advém da palavra, que seria posta num dos textos fundadores da humanidade e quando o Homem pisou pela primeira vez a lua, para além das famosas palavras de Neil Armstrong “um pequeno passo para o homem, um salto gigante para a humanidade”, também foi lida uma passagem do Evangelho de S. João, por Aldrin, um dos astronautas.
O facto é que a humanidade e a sua história são registadas e veiculadas pela palavra. A linguagem oral não foi suficiente e assim surgiu a escrita, uma das invenções mais importantes do ser humano, que haveria de perpetuar o seu percurso e a sua evolução pelos séculos vindouros. É pela palavra que se constrói o ser e o dinheiro não tem lugar nisso.
Nina M.

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