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sábado, 29 de fevereiro de 2020

Crónica de Maus Costumes 170



O direito à melancolia

Não sei exatamente como a sociedade chegou aqui. Tudo é líquido, rápido, perfeito, leve e alegre. Não há tempo nem paciência para a construção lenta e sólida, a imperfeição e o peso da existência. Não há mais tempo para a palavra, cada vez menos valorizada e até há quem julgue que uma imagem vale mais do que mil palavras.
Quem pensou assim criou o Instagram, onde se vê muito, mas onde normalmente se verbaliza tão pouco. Não é pois de espantar que seja a rede social predileta da gente nova, dos que já nasceram sem tempo a perder. Dos que não sabem o que significa matar o tempo. É o tempo da imagem e do imediato, mas a imagem para atrair deve ser bela e agradável, sugerindo a perfeição. Só isso é partilhável. Consigo compreender se o objetivo for a preservação da intimidade do ser. No entanto, parece-me haver a política do descartável. Tudo o que incomoda e não é partilhável nas redes sociais deve ser banido, o que cria uma falsa ilusão de vidas alheias perfeitas e alegres, conduzindo a comparações desnecessárias e geradoras de pequenas invejas infelizes.
Invejamos as viagens, as alegrias alheias e os amores perfeitos da Internet e ao fazê-lo, impossibilitamos o direito ao fracasso, esquecendo que nenhum ser humano se constrói apenas com sucessos. Talvez seja mais a soma dos seus malogros do que outra coisa qualquer… De modo que chegamos a um estádio em que exigimos a perfeição na nossa vida, não deixando margem para o erro, porque todos os que nos rodeiam na feira das vaidades nos esfregam a sua magistralidade. Não admira, portanto, que a melancolia não fique bem na fotografia e toda a gente possui o receituário perfeito para os tristes: “não penses mais nisso, não te isoles, devias sair mais, devia conhecer novas pessoas, faz uma viagem…”
Tudo placebos que significam apenas a mesma coisa: alheia-te de ti. É verdade que essa estratégia permite ganhar algum oxigénio, mas a alegria ou vem de dentro, apesar da tristeza, ou de nada servirá, porque tarde ou cedo o ser se encontrará consigo e não sobejará nada para além da dor. O ser humano tem direito à tristeza e precisa tanto dela quanto da alegria. Não confundamos com estados depressivos, o que configura um estado patológico. No entanto, há situações da vida que nos deixam angustiados e é bom viver essas emoções, identificá-las e saber a sua origem. Só assim nos conhecemos e as poderemos mitigar. Todas as opções que nos roubem de nós apenas adiam o problema que terá de ser olhado de frente.
A alegria não implica ausência de melancolia, implica saber o que a motiva e como com ela lidar. Não existem pessoas completamente alegres nem completamente melancólicas, por isso, deixemos que a tristeza de fim de tarde que às vezes possa surgir nos tome em seus braços e nos embale. Reclamemos o direito à melancolia e rejeitemos a alegria oca e impura que nos faz sentir descontextualizados. A alegria é boa quando vem de dentro e surge a momentos, nem sempre nem nunca.
Aprendamos a respeitar o nosso ritmo e vivamos melhor.

Nina M.

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