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sábado, 20 de julho de 2019

Crónica de Maus Costumes 141


Remissão e poesia

                Começo a crónica com um pedido de desculpa. Na semana passada, terei usado o termo silogismo de modo incorreto, dado que o exemplo fornecido não respeita as suas regras de construção. Em consciência, não posso chamar de silogismo ao que não é. De modo que substituí a expressão por brincadeira linguística. A correção já está feita. Grata pelo reparo a quem de direito.
Um dia destes, se me sobrar tempo, talvez aprenda a construir silogismos. Não estou certa de o conseguir. Exige lógica formal, que muitas vezes é o oposto da poesia, que gosta de se indisciplinar e criar livremente, mesmo que reúna contrários ou os deixe desamparados e de costas voltadas, tanto faz. A poesia nem precisa de ser verdadeira. “O poeta é um fingidor”, dizia Pessoa. Ele sabe-o melhor do que ninguém. Pode não exigir a verdade de quem a escreve, mas obriga à sua inteireza. O ser humano é feito de imperfeições e algumas incoerências e a poesia consegue reuni-las harmoniosamente.
Acabo de ler a biografia da enorme Sophia. Para quem conhece a sua obra, o olhar torna-se mais atento. Se já era apaixonada pelo conto “Saga”, o meu preferido, olho-o ainda com mais interesse. Estão lá os antepassados da poeta, as suas origens. Sei que é poetisa, mas ela mesma escolhe o termo poeta por julgar mais universal, por considerar que o uso do feminino traz em si um certo desmerecimento. Quem sou eu para a contrariar? Ocorre-me a resposta do Romeiro: “Ninguém!”
Falar de poesia, em Portugal, também é falar de Sophia. Portugal rendeu-se aos seus encantos. De porte aristocrático, oriunda da burguesia portuense, Sophia pairava sobre os comuns mortais, tal como os deuses do Olimpo. Não será à toa que a sua obra está impregnada de cultura helénica. Descobri uma deusa, não uma mulher, que se movia num mundo seu, acima da realidade. Mesmo quando se envolveu na luta pela liberdade e na defesa de valores humanistas e da cultura, fê-lo sempre num plano de superioridade intocável. A menina que aos oito anos recitava Lusíadas, sempre viveu no mundo das ideias. Há quem a acuse de egocentrismo. Talvez haja um certo fundamento. Porém, se não fosse essa sua peculiaridade, talvez não tivéssemos o seu magnífico legado. Magnânima e altiva. Digna de conviver com os deuses, não com simples mortais. No dizer de Torga, “era tão bonita que nem precisava de escrever versos”. Certa vez, disse-lhe que gostaria de lhe dedicar um poema ao que ela terá respondido: “Logo agora que anda a escrever tão mal?”
Irónica, mordaz e arrogante! Com essa tirada, até eu me ofendo! Desde quando é que o meu Torga escreve mal?! Ele, autor já consagrado. Ela, a trilhar o seu caminho. A diatribe não impediu a amizade entre ambos. Nem podia. Um avisou a esposa, antes de casar, que a trocaria por um verso. Outra desligava-se dos afazeres domésticos, deitava-se a horas impróprias e a empregada encarregava-se da logística, ao ponto de dizer que “se não fosse ela, naquela casa comer-se-ia versos”. Não seria a mãe mais diligente, mas foi a melhor mãe que os filhos tiveram e que não trocariam por outra.
Dizia ela que para escrever precisava da sua inteireza. Talvez por isso pairasse sobre a realidade, o que não a impediu, muito pelo contrário, de estar atenta ao que a rodeava e de ser voz da liberdade, quando o país precisou.
Obrigada, Isabel Nery, pelo excelente trabalho.

Nina M.

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