Remissão e poesia
Começo a crónica com um pedido de
desculpa. Na semana passada, terei usado o termo silogismo de modo incorreto,
dado que o exemplo fornecido não respeita as suas regras de construção. Em
consciência, não posso chamar de silogismo ao que não é. De modo que substituí
a expressão por brincadeira linguística. A correção já está feita. Grata pelo
reparo a quem de direito.
Um
dia destes, se me sobrar tempo, talvez aprenda a construir silogismos. Não
estou certa de o conseguir. Exige lógica formal, que muitas vezes é o oposto da
poesia, que gosta de se indisciplinar e criar livremente, mesmo que reúna
contrários ou os deixe desamparados e de costas voltadas, tanto faz. A poesia
nem precisa de ser verdadeira. “O poeta é um fingidor”, dizia Pessoa. Ele
sabe-o melhor do que ninguém. Pode não exigir a verdade de quem a escreve, mas
obriga à sua inteireza. O ser humano é feito de imperfeições e algumas
incoerências e a poesia consegue reuni-las harmoniosamente.
Acabo
de ler a biografia da enorme Sophia. Para quem conhece a sua obra, o olhar
torna-se mais atento. Se já era apaixonada pelo conto “Saga”, o meu preferido,
olho-o ainda com mais interesse. Estão lá os antepassados da poeta, as suas
origens. Sei que é poetisa, mas ela mesma escolhe o termo poeta por julgar mais
universal, por considerar que o uso do feminino traz em si um certo desmerecimento.
Quem sou eu para a contrariar? Ocorre-me a resposta do Romeiro: “Ninguém!”
Falar
de poesia, em Portugal, também é falar de Sophia. Portugal rendeu-se aos seus
encantos. De porte aristocrático, oriunda da burguesia portuense, Sophia
pairava sobre os comuns mortais, tal como os deuses do Olimpo. Não será à toa
que a sua obra está impregnada de cultura helénica. Descobri uma deusa, não uma
mulher, que se movia num mundo seu, acima da realidade. Mesmo quando se
envolveu na luta pela liberdade e na defesa de valores humanistas e da cultura,
fê-lo sempre num plano de superioridade intocável. A menina que aos oito anos
recitava Lusíadas, sempre viveu no mundo das ideias. Há quem a acuse de
egocentrismo. Talvez haja um certo fundamento. Porém, se não fosse essa sua peculiaridade,
talvez não tivéssemos o seu magnífico legado. Magnânima e altiva. Digna de conviver
com os deuses, não com simples mortais. No dizer de Torga, “era tão bonita que nem
precisava de escrever versos”. Certa vez, disse-lhe que gostaria de lhe dedicar
um poema ao que ela terá respondido: “Logo agora que anda a escrever tão mal?”
Irónica,
mordaz e arrogante! Com essa tirada, até eu me ofendo! Desde quando é que o meu
Torga escreve mal?! Ele, autor já consagrado. Ela, a trilhar o seu caminho. A diatribe
não impediu a amizade entre ambos. Nem podia. Um avisou a esposa, antes de casar,
que a trocaria por um verso. Outra desligava-se dos afazeres domésticos, deitava-se
a horas impróprias e a empregada encarregava-se da logística, ao ponto de dizer
que “se não fosse ela, naquela casa comer-se-ia versos”. Não seria a mãe mais diligente,
mas foi a melhor mãe que os filhos tiveram e que não trocariam por outra.
Dizia
ela que para escrever precisava da sua inteireza. Talvez por isso pairasse sobre
a realidade, o que não a impediu, muito pelo contrário, de estar atenta ao que a
rodeava e de ser voz da liberdade, quando o país precisou.
Obrigada,
Isabel Nery, pelo excelente trabalho.
Nina
M.
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