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sábado, 28 de junho de 2025

Crónica de Maus Costumes 427

 

A lentidão urge no caos

 

            O mundo avança e transforma-se a um ritmo avassalador. A minha geração será a última a ter visto o mundo a preto e branco num televisor que tinha uma caixa tremenda, um mundo onde a lentidão e o analógico se cruzavam.

            Por falar em mundo analógico, não deixa de ser curioso como continua a cruzar-se comigo nos dias de hoje. A Dona Lurdes, a senhora funcionária que substituiu a Dona Carminda no seu posto, exerce as suas funções de forma tão simpática e competente quanto a sua antecessora. A Dona Carminda, mesmo reformada, é uma instituição dentro da ESPF, porque acompanhou várias gerações de professores e de alunos que vieram, mais tarde, a ser professores na escola, eu inclusive. Porém, dizia que o analógico continua a cruzar-se comigo, porque a Dona Lurdes tirou-me muitas fotografias. Sempre que precisávamos de fotos para as matrículas, lá íamos ao senhor Passos e, muitas vezes, era a Dona Lurdes que nos sentava no banco alto e nos compunha o rosto, virando-o mais para a esquerda ou para a direita, com o guarda-chuva atrás, e fazia os vários disparos que dariam origem às fotos. Não deixa de ser engraçado que a pessoa que ocupou o lugar da dona Carminda também me tenha visto crescer…

            Naquele tempo, a lentidão era outra. Primeiro, as fotografias demoravam oito dias a ficarem prontas e até lá fazíamos preces para que tivéssemos ficado bem, porque não havia possibilidade de repetir o processo. De modo que a ida ao fotógrafo para levantar as fotos era sempre precedida por alguma angústia e quando a dona Lurdes chegava com o envelope que continha as fotos tipo passe e uma outra, maior, oferta da casa, um estremeção percorria o corpo. A medo, puxávamos pela fotografia grande para avaliarmos o estrago…

            Hoje, com o mundo digital, tiramos e apagamos a vezes necessárias, espreitamos para o visor da câmara ou para o ecrã do telemóvel para decidirmos se gostamos ou não da carantonha que observamos todos os dias ao espelho e não parece tão mal, mas que nas fotografias decide parecer-se com um maltrapilho…

É impossível passar pela Dona Lurdes e não me ver sentada no banco, imóvel, a arreganhar a taxa sob as suas ordens: “ora, agora, um sorrisinho… Isso… Trac, trac, trac… Já está!” Quem aguentaria, atualmente, oito dias para ver as fotografias? Tudo aquilo era um processo enigmático! Literalmente, eram tiros no escuro e muitas fotografias não se aproveitavam! Só sabíamos do resultado, sem direito a segundas oportunidades, quando tínhamos as fotos na mão e depois de muita espera! Era sempre uma surpresa e nem sempre agradável. Foi assim durante muitos anos!

De repente, sem que déssemos conta, surgiu o digital e a Internet. Em poucos anos, deixou de ser necessário ligar o cabo ao telefone, porque o sem fios trouxe uma liberdade desejada, tal como os telemóveis… As novas gerações jamais conhecerão o mundo como a minha geração conheceu. Em vinte e cinco anos, a evolução foi gigantesca e continuamos a assistir ao processo de transformação, agora, com a chegada da Inteligência Artificial, só que, neste momento, a evolução será muito mais rápida. Tão rápida que o homem não consegue acompanhar o ritmo para regular a utilização das novas ferramentas. Parece estar sempre atrasado, a correr atrás do prejuízo, porque este novo mundo suscita muitas questões éticas sobre as quais é necessário refletir para se poder tomar uma posição. No entanto, a reflexão é do tempo da lentidão e o mundo moderno é da vertigem e do abismo, tonando-nos reféns da velocidade e do imediatismo.

É imperioso saber pausar. Não há pensamento sólido no meio de um remoinho. Talvez seja importante voltar à paciência da espera de outros tempos. Um tempo em que a chuva de verão tinha odores e as amoras amassadas em folhas de videira tinham sabor, o tempo em que a receção de uma carta escrita à mão criava formigueiro na barriga, em que o verão demorava o seu tempo sem que, de repente, fosse setembro outra vez, o tempo em que para se ver uma fotografia eram precisos oito dias, o tempo em que o poema levava uma vida inteira dentro de um ser.

É preciso tempo para ter tempo, porque é a única medida impossível de recuperar e a única que nos constrói.

 

Nina M.

 

 

 

 

              

 

 

 

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