Cortes e cabelo
Os
meus filhos riem-se, muitas vezes, com as histórias de infância dos
progenitores. Creio que ficam meio incrédulos com algumas peripécias e, talvez,
a cogitar para eles mesmos sobre a veracidade do que lhes é contado, abanando a
cabeça, como quem pensa para si que éramos uns pobres diabos, com uma infância
deplorável, porque não tínhamos computadores nem telemóveis e que as nossas
brincadeiras eram disparatadas e parvas.
Esta
semana, quando a propósito de uma ida ao barbeiro do meu mais velho, lhes disse
que na altura em que os tios eram ainda mais novos do que eles, só existiam
dois barbeiros na cidade, arregalaram os olhos. Hoje, há um barbeiro em cada
esquina.
Expliquei-lhes
que a ida ao barbeiro representava uma tarde perdida. A avó aproveitava a
ocasião e levava os dois filhos de uma vez, o que significava chegar à
barbearia às 14:00 e ir embora às 17:00 horas, apenas. Tive de lhes explicar o
motivo da demora: antes de mais, o cabelo era cortado apenas à tesoura e, na
barbearia do senhor Pinto, trabalhavam somente dois barbeiros, o próprio dono e
o senhor Emílio. Acontece que este último trabalhava mais com a tesoura no ar,
tchic, tchic, tchic, do que no cabelo! A cada cortadela, erguia a tesoura, com
toda a sua sapiência, cortando o ar às fatias, enquanto conversava com a
clientela! Aquilo era um autêntico fórum onde os homens conversavam sobre tudo,
desde a atualidade política, passando por carros e futebol. Talvez conversassem
sobre mulheres, se não estivesse lá alguma. Assunto que nunca ouvi, porque
sempre que estava presente era na companhia da minha mãe, mulher de família,
com os dois filhos rapazes e eu. Ora… Suspeito que fizessem um esforço por
dobrar a língua e evitassem certos e determinados assuntos em frente a uma
senhora e a sua prole.
Eu
embirrava um bocadinho com o senhor Emílio, homem de metro meio, baixinho e
magrito que sempre se metia comigo e jurava que me ia cortar o cabelo igual ao
dos meus irmãos! Imediatamente, abanava a cabeça em sinal de desacordo, antes
que a sua tesoura, em vez de fazer as acrobacias no ar, viesse poisar sobre a
minha cabeça. Ele era o que se podia chamar de pica miolos. Naquele tempo,
pousava por lá a Luisinha, a menina adolescente que tinha trissomia 21 e que
era apaixonada pelo filho do senhor Pinto, rapaz novo, e a quem o senhor Emílio
moía a paciência, porque inventava namoradas ao moço, só para acicatar o ciúme
da jovem. A Luisinha ficava furiosa, por o ouvir dizer que o estroina estivera
com outra miúda e que a andava a enganar. A menina discutia e zangava-se,
amofinava, entristecia e quase chorava enraivecida, enquanto aquele malandro se
ria, juntamente com a clientela. Quando via a Luisinha já muito triste e
aflita, depois de a aborrecer um bom pedaço, lá acabava por dar o dito pelo não
dito e a jurar que só estava a brincar e que o rapaz gostava dela e não tinha
mais namorada nenhuma. Num esforço inverso, lá tratava de convencer a rapariguinha
e jurar-lhe a pés juntos que o moçoilo só tinha olhos para ela. Nada disso era
com maldade. A Luisinha era conhecida e acarinhada por todos. O senhor Emílio é
que gostava de lhe torrar a paciência. De modo que com estas conversas com os
clientes e atuações, o homem falava mais do que cortava cabelos e fazia a
tesoura tinir no ar variadas vezes, antes de se decidir a usá-la na cabeça dos
que lá iam. O senhor Emílio tinha, ainda, outro desplante maior… Creio que,
hoje, seria demitido por justa causa. Quando se lembrava, principalmente, no
tempo do calor, virava-se para o cliente sentado na cadeira, abotoado com a
bata, com o cabelo meio cortado e meio por cortar e dizia: “Só um bocadinho… Eu
volto já!” Pousava a tesoura sobre a bancada e zarpava barbearia fora. Ia
enfiar-se no tasco ao lado, onde pedia um fino para matar a sede e por lá se
demorava até esgotar o líquido que se encontrasse no copo. Era menino para
fazer isto com todos os clientes que lhe viessem parar à cadeira!
O
mais extraordinário era o silêncio cúmplice do patrão e dos clientes. Ninguém
dizia nada ao senhor Emílio, a coqueluche da barbearia e de quem todos gostavam
e se riam com a sua boa disposição! Fazia o que lhe apetecia. Não admira,
portanto, que a clientela se apinhasse nos sofás e que uma ida ao barbeiro
empenhasse uma tarde inteira a uma pessoa.
Eu aborrecia-me
de morte, sempre a perguntar à mãe quando seria tempo de irmos embora! Não
havia previsão possível.
Quando
o senhor Monteiro se estabeleceu, o terceiro barbeiro, na altura, foi o gáudio
e a alegria dos mais apressados. Este oferecia uma nova vantagem… Assim que os
clientes alapassem o rabo na cadeira, ele despachava-os em vinte minutos!
Escusado será dizer que, ao fim de um certo tempo, os meus irmãos passaram para
a tesoura do senhor Monteiro e eu, não sei por que razão, pude deixar de os
acompanhar ao suplício, até à altura em que já iam ambos sozinhos, sem
precisarem sequer da dileta companhia da mãe.
O
Pinto ainda existe. Negócio que passou de pai para filho, mas agora, sem o
senhor Emílio. Sei também que a perda desta ilustre figura descaracteriza e
retira o pitoresco ao espaço.
Lembrar-me da
barbearia é lembrar-me, sobretudo, do senhor Emílio. Bem-haja por todas as
gargalhadas que arrancou, apesar da demora!
Nina M.
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