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sábado, 1 de junho de 2024

Crónica de Maus Costumes 376

 

A memória

            A nossa memória é seletiva. Não guarda tudo o que vivemos e, mesmo o que vivemos, a nossa memória vai adulterando os factos ao sabor dos nossos afetos. Certo é que nos fica o que nos marca, quer pela positiva quer pela negativa.

 Normalmente, ela tende a suavizar o mal e a intensificar o bom, a partir do afastamento com que relembramos esses momentos. Na psicologia, afirmam que as dores estão curadas quando se consegue falar do que nos magoou sem que haja sofrimento. Significa que o tempo e as nossas emoções processaram o que tinha de ser tratado, resolvendo as nossas angústias. Quando não conseguimos fazê-lo, adoecemos.

Em conversa com a amiga que estagiou comigo e a propósito de atividades que se organizam para os alunos, ela recordou uma visita de estudo que teremos ajudado a organizar ou que organizámos e que acompanhámos no nosso ano de estágio, há 27 anos. Tem a imagem de termos feito uma paragem na praia e de haver alunos que nunca tinham visto o mar. Estagiámos em Lamego e tínhamos alunos oriundos de aldeias e que nunca saíam da terra. Ela lembra-se de haver miúdos a provarem a água do mar e de ficarem admirados por constatarem que, efetivamente, é salgada… A visita de estudo terá sido inesquecível para eles, certamente. Causou-me espanto, porque eu não tenho qualquer memória desse acontecimento. Na minha memória, esse momento não existe. Não me lembro de o ter vivido. O que não deixa de ser estranho, pois a minha memória é boa. Regista muitos factos e conversas passadas. Não regista rostos, principalmente, se a convivência não tiver sido grande. Não tenho grande memória visual, dada a distração que me caracteriza e me faz passar pelos locais e pessoas sem as ver. Quando isto acontece, significa que estou recolhida nos meus pensamentos, no meu mundo interior e tudo o que é externo a mim me passa despercebido. No entanto, não posso deixar de questionar o que motivou esta ausência, este apagão total, porque não guardo o mais ínfimo pormenor. “Não te terá marcado” - diz-me ela – porém, não é facto que me desmereça a atenção, porque gosto de proporcionar estes momentos aos miúdos. Por mais voltas que dê, não vislumbro uma única imagem. Nada. Na altura, não andávamos com máquina fotográfica e os telemóveis não abundavam e, mesmo que os tivéssemos, ainda não tinham câmara incorporada. Nessa altura, nem mensagens escritas poderíamos enviar por um telemóvel. Isso só foi possível um ou dois anos depois. Quando fazemos estas viagens ao passado, apercebemo-nos, com maior exatidão, do progresso e da época de inovação acelerada em que vivemos. Hoje, os telemóveis são minicomputadores de bolso, que permitem registar estes momentos, para que nãos nos escapem pelo fio do tempo…

Lembrámo-nos do nosso orientador de Português, o padre Zé Abrunhosa, parente do músico sobejamente conhecido, de quem muito gostávamos pela pessoa que era. Questionámo-nos se ainda será vivo. A última vez que o vi foi no casamento do meu primo Ricardo, de quem fui madrinha e o padre Zé o pároco, porque a esposa é natural daqueles lados e casaram no santuário da Nossa Senhora dos Remédios. Falámos um bocadinho, no final do casamento, e ficámos felizes pelo reencontro, eu e o padre Zé. Também fiquei vaidosa, porque ele fez questão de dizer aos presentes que eu tinha sido a melhor estagiária que lhe tinha passado pelas mãos, uma excelente professora. Se o voltasse a encontrar, agradeceria novamente o que nos ensinou. O que dele recordo é sobretudo o seu humanismo e consigo claramente compreender o motivo pelo que os investigadores em ciências da educação apontam o fator empatia e sensação de bem-estar como o mais preponderante para as aprendizagens dos alunos. Estes aprendem melhor com quem se sentem confortáveis, com quem sabem que é capaz de os ouvir. A competência científica é, naturalmente, importantíssima, mas a sensibilidade para gerir sensibilidades, para fazer os alunos sentirem-se ouvidos e acolhidos é ainda mais importante. Às vezes, tenho uns malandrecos que já me passaram pelas mãos, que me vão “visitar” à sala de aula e dizem-me: “viemos ver a stôra”. A rir-me, pergunto-lhes se querem assistir à aula, porque sei de antemão a resposta… Não é a minha competência científica que eles guardam… Na verdade, não consegui passar-lhes nem o gosto pelo estudo nem o gosto pelo português, mas algo de mim lhes terá ficado, porque apesar de maus alunos e do percurso diferente que escolheram, vêm ter comigo. Riem-se e metem-se comigo, dizem-me que perdi os meus melhores alunos… Eles sabem que não eram. Assumem-no. Sabem que me deram algumas dores de cabeça, talvez saibam que sempre tentei fazer o meu melhor, mesmo que não tenha sido o suficiente, para que trabalhassem e aprendessem. Creio que se sentiram acolhidos, apesar de tudo, apesar da sua falta de motivação que me enfurecia, às vezes; apesar de todos os raspanetes pela irresponsabilidade de que faziam gáudio. Sempre lhes pergunto se, agora, no profissional, trabalham mais, se estão a aproveitar a escola para saírem com a qualificação de que precisam para o mercado de trabalho. Dizem que sim e sorriem e eu digo-lhes que vou perguntar aos colegas para saber se é verdade, se estão, realmente, a aproveitar… Talvez seja isto que os faz, meia-volta, fazerem as suas visitas ou dizerem-me adeus com as mãos, enquanto passam no corredor e me veem a dar aulas. Devolvo-lhes o aceno… Não sei o que lhes fica de mim. Não mo dizem claramente, mas espero que fique algo que valha a pena.

Não me lembro da visita de estudo, mas lembro da miúda difícil e rebelde do ano de estágio, que muitos anos mais tarde me telefonou porque veio a Paços de Ferreira, talvez, comprar mobiliário e que me foi visitar a casa (ainda morava com os pais), só para me ver… Ou da aluna que, no final de ano, descobriu, sem que eu o soubesse, onde moravam os meus pais, porque a avó os conhecia, para ir levar uma lembrança à sua diretora de turma. Tal como muitos outros que me foram e vão agraciando ao longo do trajeto. Pequenos gestos que me dizem que algo de mim terá ficado.

Perante estas evidências, como poderá haver quem julgue que o relacionamento entre professor e aluno não influencia a aprendizagem para melhor ou para pior? Sabê-lo não implica condescendência nem tolerância total, mas implica compreender que não há bom professor sem humanismo, não há bom professor se não souber ver o aluno para além de um número e, especialmente, não há bom professor sem ética e sem a capacidade de olhar para o futuro e compreender que eles poderão vir a fazer mais tarde o que não conseguem, no momento, mesmo que saibam pouco de português ou do que for.

Nina M.

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