A memória
A nossa memória é seletiva. Não
guarda tudo o que vivemos e, mesmo o que vivemos, a nossa memória vai
adulterando os factos ao sabor dos nossos afetos. Certo é que nos fica o que
nos marca, quer pela positiva quer pela negativa.
Normalmente, ela tende a suavizar o mal e a
intensificar o bom, a partir do afastamento com que relembramos esses momentos.
Na psicologia, afirmam que as dores estão curadas quando se consegue falar do
que nos magoou sem que haja sofrimento. Significa que o tempo e as nossas
emoções processaram o que tinha de ser tratado, resolvendo as nossas angústias.
Quando não conseguimos fazê-lo, adoecemos.
Em
conversa com a amiga que estagiou comigo e a propósito de atividades que se
organizam para os alunos, ela recordou uma visita de estudo que teremos ajudado
a organizar ou que organizámos e que acompanhámos no nosso ano de estágio, há
27 anos. Tem a imagem de termos feito uma paragem na praia e de haver alunos
que nunca tinham visto o mar. Estagiámos em Lamego e tínhamos alunos oriundos
de aldeias e que nunca saíam da terra. Ela lembra-se de haver miúdos a provarem
a água do mar e de ficarem admirados por constatarem que, efetivamente, é salgada…
A visita de estudo terá sido inesquecível para eles, certamente. Causou-me
espanto, porque eu não tenho qualquer memória desse acontecimento. Na minha
memória, esse momento não existe. Não me lembro de o ter vivido. O que não
deixa de ser estranho, pois a minha memória é boa. Regista muitos factos e
conversas passadas. Não regista rostos, principalmente, se a convivência não
tiver sido grande. Não tenho grande memória visual, dada a distração que me
caracteriza e me faz passar pelos locais e pessoas sem as ver. Quando isto
acontece, significa que estou recolhida nos meus pensamentos, no meu mundo
interior e tudo o que é externo a mim me passa despercebido. No entanto, não
posso deixar de questionar o que motivou esta ausência, este apagão total,
porque não guardo o mais ínfimo pormenor. “Não te terá marcado” - diz-me ela –
porém, não é facto que me desmereça a atenção, porque gosto de proporcionar
estes momentos aos miúdos. Por mais voltas que dê, não vislumbro uma única
imagem. Nada. Na altura, não andávamos com máquina fotográfica e os telemóveis não
abundavam e, mesmo que os tivéssemos, ainda não tinham câmara incorporada.
Nessa altura, nem mensagens escritas poderíamos enviar por um telemóvel. Isso
só foi possível um ou dois anos depois. Quando fazemos estas viagens ao passado,
apercebemo-nos, com maior exatidão, do progresso e da época de inovação
acelerada em que vivemos. Hoje, os telemóveis são minicomputadores de bolso,
que permitem registar estes momentos, para que nãos nos escapem pelo fio do
tempo…
Lembrámo-nos
do nosso orientador de Português, o padre Zé Abrunhosa, parente do músico
sobejamente conhecido, de quem muito gostávamos pela pessoa que era.
Questionámo-nos se ainda será vivo. A última vez que o vi foi no casamento do
meu primo Ricardo, de quem fui madrinha e o padre Zé o pároco, porque a esposa é
natural daqueles lados e casaram no santuário da Nossa Senhora dos Remédios.
Falámos um bocadinho, no final do casamento, e ficámos felizes pelo reencontro,
eu e o padre Zé. Também fiquei vaidosa, porque ele fez questão de dizer aos
presentes que eu tinha sido a melhor estagiária que lhe tinha passado pelas
mãos, uma excelente professora. Se o voltasse a encontrar, agradeceria
novamente o que nos ensinou. O que dele recordo é sobretudo o seu humanismo e
consigo claramente compreender o motivo pelo que os investigadores em ciências
da educação apontam o fator empatia e sensação de bem-estar como o mais
preponderante para as aprendizagens dos alunos. Estes aprendem melhor com quem se
sentem confortáveis, com quem sabem que é capaz de os ouvir. A competência
científica é, naturalmente, importantíssima, mas a sensibilidade para gerir
sensibilidades, para fazer os alunos sentirem-se ouvidos e acolhidos é ainda
mais importante. Às vezes, tenho uns malandrecos que já me passaram pelas mãos,
que me vão “visitar” à sala de aula e dizem-me: “viemos ver a stôra”. A rir-me,
pergunto-lhes se querem assistir à aula, porque sei de antemão a resposta… Não é
a minha competência científica que eles guardam… Na verdade, não consegui
passar-lhes nem o gosto pelo estudo nem o gosto pelo português, mas algo de mim
lhes terá ficado, porque apesar de maus alunos e do percurso diferente que
escolheram, vêm ter comigo. Riem-se e metem-se comigo, dizem-me que perdi os
meus melhores alunos… Eles sabem que não eram. Assumem-no. Sabem que me deram
algumas dores de cabeça, talvez saibam que sempre tentei fazer o meu melhor,
mesmo que não tenha sido o suficiente, para que trabalhassem e aprendessem. Creio
que se sentiram acolhidos, apesar de tudo, apesar da sua falta de motivação que
me enfurecia, às vezes; apesar de todos os raspanetes pela irresponsabilidade de
que faziam gáudio. Sempre lhes pergunto se, agora, no profissional, trabalham
mais, se estão a aproveitar a escola para saírem com a qualificação de que
precisam para o mercado de trabalho. Dizem que sim e sorriem e eu digo-lhes que
vou perguntar aos colegas para saber se é verdade, se estão, realmente, a aproveitar…
Talvez seja isto que os faz, meia-volta, fazerem as suas visitas ou dizerem-me
adeus com as mãos, enquanto passam no corredor e me veem a dar aulas.
Devolvo-lhes o aceno… Não sei o que lhes fica de mim. Não mo dizem claramente,
mas espero que fique algo que valha a pena.
Não
me lembro da visita de estudo, mas lembro da miúda difícil e rebelde do ano de
estágio, que muitos anos mais tarde me telefonou porque veio a Paços de
Ferreira, talvez, comprar mobiliário e que me foi visitar a casa (ainda morava com
os pais), só para me ver… Ou da aluna que, no final de ano, descobriu, sem que
eu o soubesse, onde moravam os meus pais, porque a avó os conhecia, para ir
levar uma lembrança à sua diretora de turma. Tal como muitos outros que me foram
e vão agraciando ao longo do trajeto. Pequenos gestos que me dizem que algo de
mim terá ficado.
Perante
estas evidências, como poderá haver quem julgue que o relacionamento entre
professor e aluno não influencia a aprendizagem para melhor ou para pior? Sabê-lo
não implica condescendência nem tolerância total, mas implica compreender que
não há bom professor sem humanismo, não há bom professor se não souber ver o
aluno para além de um número e, especialmente, não há bom professor sem ética e
sem a capacidade de olhar para o futuro e compreender que eles poderão vir a
fazer mais tarde o que não conseguem, no momento, mesmo que saibam pouco de
português ou do que for.
Nina
M.
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