Quadros de mérito e honrarias…
A minha
Matilde, aluna dedicada e briosa, acabou o ano letivo com nível cinco a todas
as disciplinas, mas não entrou no quadro de mérito ou de honra ou de excelência
ou como lhe queiram chamar.
Na escola
dela, pelo que parece, quando há vários alunos nestas condições e, na turma
dela, felizmente, há alguns meninos com excelentes resultados, tem de haver
critério de desempate, porque só pode ingressar um aluno. O critério de
desempate é a obtenção de níveis cinco a todas as disciplinas, também nos
períodos anteriores. A Matilde no segundo período tinha tirado um nível quatro
na disciplina de História, pelo que não foi ela a selecionada, mas uma outra
colega, também aluna dedicada e briosa.
Não deixa de
ser uma tontice. A escola faz aos alunos o que o Ministério faz aos
professores: ora bem, temos aqui cinco alunos com nível cinco em todas as
disciplinas, no final do ano letivo (classificações finais e decisivas), mas só
há quota para um aluno por turma… Paciência… É assim a vida e nunca ninguém
disse que seria justa…
No entanto, não é sobre o critério
mal-amanhado que importa falar, tanto que nem dele reclamei, apesar de
questionar a sua justiça. Quando cheguei a casa, expliquei à Matilde o sucedido
e acrescentei que eram os critérios adotados, mas que ela não deveria ficar
triste por isso, bem pelo contrário, porque a satisfação deve ser sempre interna
e nunca depender do reconhecimento alheio. Expliquei-lhe que a melhor
recompensa pelo trabalho desenvolvido era ver que os resultados corresponderam
ao seu esforço e que, felizmente, eram muito bons, mas se não tivessem sido tão
bons, também não fazia mal, porque ela tinha cumprido bem com o seu papel: foi sempre
uma aluna educada, atenta, interessada e estudiosa e, quando assim é, nada a
dizer, independentemente dos resultados alcançados. A esta minha explicação,
obtive como resposta (mesmo à Matilde): “Fogo! Ainda bem que não fiquei no
quadro! A minha fotografia do cartão está horrorosa e eu não queria nada que a
vissem!” Atirei uma gargalhada! Saiu-me. E acrescentei: “Então, ainda bem, realmente…”
Além de empenhada, a Matilde é
extremamente vaidosa! É a menina que me pergunta se acho que ela está bonita e
quando lhe garanto que sim, porque ela é bonita e, como tal, não pode ficar
feia, responde-me: “Eu sei! Eu vejo-me ao espelho e considero-me bonita! Só
tenho pena de não ter os olhos iguais aos teus ou iguais aos do avô…”
Invariavelmente, acrescento: “E vaidosa!
És muito vaidosa!” Ela ri-se e arruma a conversa.
Esta situação leva-me a questionar a
existência de quadros de mérito, sejam eles de que género for… Podem ser de
mérito cívico, de mérito desportivo, artístico, enfim… Sei que a existência
deles é bem intencionada, porque pretende reconhecer o esforço e o trabalho desenvolvidos
pelos alunos, mas interrogo-me se não estamos a contribuir para que a
satisfação vivida seja mais fruto de um reconhecimento alheio e isso é mera
satisfação do ego, uma pequena vaidade (tantas vezes mais importante para os
pais do que para os filhos) do que alegria interna. Aquele que sente as suas pequenas
vitórias sem precisar de palco está mais apto para viver melhor e com saúde
mental. Todo o esforço que se disponha a desenvolver será em prol de um objetivo
que pretende alcançar e a alegria surge pelo facto de o atingir e não depende
de um possível aplauso exterior.
Acerta-se muitas vezes e falha-se
outras tantas ou mais, mas independentemente de outros valorizarem ou não
aquilo que se faz, é mais importante, ainda, que sejamos nós mesmos a atribuir-lhe significado
e a dividi-lo com quem mereça. Depois, ninguém alcança nada sozinho. A Matilde
teve o apoio dos professores com quem trabalhou, tem o apoio de uma família
estruturada e teve o brio de estudar com regularidade para a obtenção dos seus
resultados, sem qualquer tipo de auxílio externo. Porém, ela já parte em
vantagem em relação a outros alunos. É difícil resolver os problemas
educacionais causados pelas assimetrias sociais e, apesar de a escola pública
ser inclusiva e democrática, não consegue ser completamente equitativa, que
seria o desejável. Desde logo a inteligência de cada um é um fator biológico
pré-determinado sobre o qual o indivíduo não tem qualquer responsabilidade.
Apenas lhe compete trabalhar a capacidade com que nasceu, mas as diferenças
começam imediatamente aí.
Creio que a existência desses quadros
promove uma ideia errada de mérito, porque há efetivamente o perigo de os
meninos entenderem que alcançaram tudo sozinhos, sem qualquer auxílio de outros
intervenientes. Corre-se o risco de que possam olhar os outros com supremacia e
de os estar a preparar mais para a competição do que para a cooperação e a
história da humanidade prova que o homem evoluiu e sobreviveu, devido à
cooperação entre pares e não por causa da competição. Satisfaz-me ver que nem a
Matilde nem o Rodrigo competem com os colegas. Para mim, não é defeito, antes
uma qualidade. A alegria de ver uma pauta irrepreensível é justa e merecida, na
medida em que reflete o trabalho desenvolvido, mas que teve a mão de vários
intervenientes e, como tal, a satisfação deve surgir, porque se alcançou uma
meta que se estabeleceu, cumprindo com as suas funções e não porque alguém se
lembrou de inventar um quadro honroso. Tenho o hábito de dizer aos meus alunos:
é tão meritório o esforço que é feito para se alcançar um cinco ou um vinte
quanto o esforço desenvolvido para se chegar ao três ou ao dez. Aliás, há notas
de dez valores que sabem a vinte!
Talvez valha a pena refletir sobre
isto ou serei eu que não sei andar no mundo sem mastigar certas coisas que
aborrecerão outros, certamente…
O Rodrigo, às vezes, irrita-se comigo
e diz-me que sou “demasiado boazinha para este mundo”, sobretudo, quando começo
a perorar sobre o humanismo e a absoluta necessidade de o mantermos num mundo
cruel, para que a nossa alma não se corrompa, mesmo perante as maiores
aberrações. Tem dificuldade em assimilar tudo quanto lhe digo e contesta,
argumenta, contraria-me. Afinal, é o adolescente. Digo-lhe que espero que a
mensagem vá entrando e que aos vinte e cinco ou vinte e seis possa colher o
fruto de alguns aborrecimentos.
Se o conseguir, também sei que o
mérito não será apenas meu.
Nina M.
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