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sábado, 22 de junho de 2024

Crónica de Maus Costumes 379

 

Quadros de mérito e honrarias…

            A minha Matilde, aluna dedicada e briosa, acabou o ano letivo com nível cinco a todas as disciplinas, mas não entrou no quadro de mérito ou de honra ou de excelência ou como lhe queiram chamar.

            Na escola dela, pelo que parece, quando há vários alunos nestas condições e, na turma dela, felizmente, há alguns meninos com excelentes resultados, tem de haver critério de desempate, porque só pode ingressar um aluno. O critério de desempate é a obtenção de níveis cinco a todas as disciplinas, também nos períodos anteriores. A Matilde no segundo período tinha tirado um nível quatro na disciplina de História, pelo que não foi ela a selecionada, mas uma outra colega, também aluna dedicada e briosa.

            Não deixa de ser uma tontice. A escola faz aos alunos o que o Ministério faz aos professores: ora bem, temos aqui cinco alunos com nível cinco em todas as disciplinas, no final do ano letivo (classificações finais e decisivas), mas só há quota para um aluno por turma… Paciência… É assim a vida e nunca ninguém disse que seria justa…

No entanto, não é sobre o critério mal-amanhado que importa falar, tanto que nem dele reclamei, apesar de questionar a sua justiça. Quando cheguei a casa, expliquei à Matilde o sucedido e acrescentei que eram os critérios adotados, mas que ela não deveria ficar triste por isso, bem pelo contrário, porque a satisfação deve ser sempre interna e nunca depender do reconhecimento alheio. Expliquei-lhe que a melhor recompensa pelo trabalho desenvolvido era ver que os resultados corresponderam ao seu esforço e que, felizmente, eram muito bons, mas se não tivessem sido tão bons, também não fazia mal, porque ela tinha cumprido bem com o seu papel: foi sempre uma aluna educada, atenta, interessada e estudiosa e, quando assim é, nada a dizer, independentemente dos resultados alcançados. A esta minha explicação, obtive como resposta (mesmo à Matilde): “Fogo! Ainda bem que não fiquei no quadro! A minha fotografia do cartão está horrorosa e eu não queria nada que a vissem!” Atirei uma gargalhada! Saiu-me.  E acrescentei: “Então, ainda bem, realmente…”

Além de empenhada, a Matilde é extremamente vaidosa! É a menina que me pergunta se acho que ela está bonita e quando lhe garanto que sim, porque ela é bonita e, como tal, não pode ficar feia, responde-me: “Eu sei! Eu vejo-me ao espelho e considero-me bonita! Só tenho pena de não ter os olhos iguais aos teus ou iguais aos do avô…”

Invariavelmente, acrescento: “E vaidosa! És muito vaidosa!” Ela ri-se e arruma a conversa.

Esta situação leva-me a questionar a existência de quadros de mérito, sejam eles de que género for… Podem ser de mérito cívico, de mérito desportivo, artístico, enfim… Sei que a existência deles é bem intencionada, porque pretende reconhecer o esforço e o trabalho desenvolvidos pelos alunos, mas interrogo-me se não estamos a contribuir para que a satisfação vivida seja mais fruto de um reconhecimento alheio e isso é mera satisfação do ego, uma pequena vaidade (tantas vezes mais importante para os pais do que para os filhos) do que alegria interna. Aquele que sente as suas pequenas vitórias sem precisar de palco está mais apto para viver melhor e com saúde mental. Todo o esforço que se disponha a desenvolver será em prol de um objetivo que pretende alcançar e a alegria surge pelo facto de o atingir e não depende de um possível aplauso exterior.

Acerta-se muitas vezes e falha-se outras tantas ou mais, mas independentemente de outros valorizarem ou não aquilo que se faz, é mais importante, ainda,  que sejamos nós mesmos a atribuir-lhe significado e a dividi-lo com quem mereça. Depois, ninguém alcança nada sozinho. A Matilde teve o apoio dos professores com quem trabalhou, tem o apoio de uma família estruturada e teve o brio de estudar com regularidade para a obtenção dos seus resultados, sem qualquer tipo de auxílio externo. Porém, ela já parte em vantagem em relação a outros alunos. É difícil resolver os problemas educacionais causados pelas assimetrias sociais e, apesar de a escola pública ser inclusiva e democrática, não consegue ser completamente equitativa, que seria o desejável. Desde logo a inteligência de cada um é um fator biológico pré-determinado sobre o qual o indivíduo não tem qualquer responsabilidade. Apenas lhe compete trabalhar a capacidade com que nasceu, mas as diferenças começam imediatamente aí.

Creio que a existência desses quadros promove uma ideia errada de mérito, porque há efetivamente o perigo de os meninos entenderem que alcançaram tudo sozinhos, sem qualquer auxílio de outros intervenientes. Corre-se o risco de que possam olhar os outros com supremacia e de os estar a preparar mais para a competição do que para a cooperação e a história da humanidade prova que o homem evoluiu e sobreviveu, devido à cooperação entre pares e não por causa da competição. Satisfaz-me ver que nem a Matilde nem o Rodrigo competem com os colegas. Para mim, não é defeito, antes uma qualidade. A alegria de ver uma pauta irrepreensível é justa e merecida, na medida em que reflete o trabalho desenvolvido, mas que teve a mão de vários intervenientes e, como tal, a satisfação deve surgir, porque se alcançou uma meta que se estabeleceu, cumprindo com as suas funções e não porque alguém se lembrou de inventar um quadro honroso. Tenho o hábito de dizer aos meus alunos: é tão meritório o esforço que é feito para se alcançar um cinco ou um vinte quanto o esforço desenvolvido para se chegar ao três ou ao dez. Aliás, há notas de dez valores que sabem a vinte!

Talvez valha a pena refletir sobre isto ou serei eu que não sei andar no mundo sem mastigar certas coisas que aborrecerão outros, certamente…

O Rodrigo, às vezes, irrita-se comigo e diz-me que sou “demasiado boazinha para este mundo”, sobretudo, quando começo a perorar sobre o humanismo e a absoluta necessidade de o mantermos num mundo cruel, para que a nossa alma não se corrompa, mesmo perante as maiores aberrações. Tem dificuldade em assimilar tudo quanto lhe digo e contesta, argumenta, contraria-me. Afinal, é o adolescente. Digo-lhe que espero que a mensagem vá entrando e que aos vinte e cinco ou vinte e seis possa colher o fruto de alguns aborrecimentos.

Se o conseguir, também sei que o mérito não será apenas meu.

 

Nina M.

 

 

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