Seguidores

sábado, 23 de dezembro de 2023

Crónica de Maus Costumes 353

 

Memórias

              

Hoje, os meus pais fazem cinquenta e seis anos de casados. Uma vida inteira! O meu pai tem oitenta e cinco anos e a senhora minha mãe, setenta e nove. Dessa união, resultaram três filhos e seis netos.

            Ontem, almoçaram com o filho mais velho; hoje, vieram jantar à única filha, à do meio. O meu pai lá me foi dizendo que o polvo à lagareiro estava bom, mas que gostava mais da posta que tinha comido no dia anterior. A rir-me, disse-lhe que ainda pensei nisso para o jantar, mas que duas refeições seguidas a comer posta era capaz de ser um abuso para os seus oitenta e cinco anos! A mãe compôs a coisa e lá disse que ela preferia o polvo. Ora, eu também, porque não como gado bovino…

            Eles são diferentes e os netos riem-se que nem perdidos por causa dessas diferenças que os fazem discutir.

            Há dois dias, comentavam o quanto gostavam de passar o Natal em casa da avó, porque estava lá toda a gente (por toda a gente deve entender-se os primos, que são aqueles que verdadeiramente lhes interessam) e que era muito divertido abrirem os presentes e estarem todos à lareira a conversar, numa azáfama agradável. Riam-se porque o avô os obrigara, no Natal passado, a ouvir a música, que sai da garrafa, após dar à corda, onde o guarda o vinho de Porto de cem anos, com que presenteia a plateia nos almoços de Natal. O vinho é espesso, licoroso e doce. Pressuponho que a ambrósia, o néctar dos deuses, seja algo semelhante. Os netos têm direito a experimentar uma pinguinha e não cabem em si de contentes, porque o avô lhes permite a audácia. Escusado será dizer que os pais não mandam nada, nessas alturas. O melhor é dizer que só pode ser mesmo um bocadinho… Todos lambem os beiços no final e nenhum faz cara feia… O avô, satisfeito, sentencia que saem todos à raça e fica o diagnóstico traçado. Durante a conversa entre irmãos, a Matilde desata a gargalhar com as saídas do avô. Um dia, dizia ela, eu estava a ver fotografias antigas e apareceu uma do avô e ele dizia-me:

- Olha bem… Olha que eu era mais bonito do que a tua avó!

E nisto, a avó começa a dizer:

- Ó João, está calado! Este homem é um convencido! Deus me livre!

Ria-se como uma perdida e logo se lembra da ocasião em que o avô a olhar para a prima, vestida com as suas calças largas lhe diz:

-Ó minha filha! Essas calças são-te enormes! Cabem-te duas pernas numa!

Mais uma vez, a avó intervém:

- Está calado, homem! Não percebes nada! Não vês que elas são assim? É a moda!

O avô lá solta um impropério a maldizer a moda que faz a miudagem andar com semelhantes trapos!

Os pequenos divertem-se e riem-se a valer com estas tiradas.

Entretanto, diz-lhe o irmão:

- Olha… eles já estão juntos há tantos anos que se calhar já estão fartos um do outro!

Acrescenta logo a pequena:

- Pois, mas agora tem de ser que já nem sabem viver um sem o outro… Quer dizer, a avó sem o avô ainda se aguentava, que ela sabe fazer as coisas, sabe cozinhar… Agora, o avô sem a avó, coitado! Aposto que nem um dia se aguentava! O avô nem um ovo sabe fritar! Havia de ser bonito!

E eu deixo-os falar entre eles. Só a apreciar a conversa, com o filho a insistir que temos de voltar a dar um passeio todos juntos (avós, filhos e netos), sem querer saber da dificuldade que é conciliar horários. Só sabe que é muito divertido e que arranjam maneira de convencer o tio a levar os cinco num carro só, a aturar-lhes a barulheira…

Sorrio, porque os vejo a construir as suas memórias do Natal, tal como eu tenho as minhas. Depois da ceia, o resto da noite era, invariavelmente, passado na casa da tia, que apesar de ausente, sempre se faz presente nestas alturas, também entre risadas e brincadeiras de primos.

Dou por mim a observá-los a construir a sua própria história, a reviver momentos de que tanto gostam e a ansiar a companhia dos primos. Serão estas imagens que associarão ao Natal e que mesmo na idade adulta poderão recuperar.

Pequenos momentos de felicidade que se inscrevem no ser. Pedaços do que já fomos e do que já vivemos e que gostamos sempre de relembrar.

Feliz Natal!

Nina M.

 

           

Sem comentários:

Enviar um comentário