Memórias
Hoje, os meus pais fazem cinquenta e seis anos de casados. Uma vida inteira! O meu pai tem oitenta e cinco anos e a senhora minha mãe, setenta e nove. Dessa união, resultaram três filhos e seis netos.
Ontem,
almoçaram com o filho mais velho; hoje, vieram jantar à única filha, à do meio.
O meu pai lá me foi dizendo que o polvo à lagareiro estava bom, mas que gostava
mais da posta que tinha comido no dia anterior. A rir-me, disse-lhe que ainda
pensei nisso para o jantar, mas que duas refeições seguidas a comer posta era
capaz de ser um abuso para os seus oitenta e cinco anos! A mãe compôs a coisa e
lá disse que ela preferia o polvo. Ora, eu também, porque não como gado bovino…
Eles são
diferentes e os netos riem-se que nem perdidos por causa dessas diferenças que
os fazem discutir.
Há dois
dias, comentavam o quanto gostavam de passar o Natal em casa da avó, porque
estava lá toda a gente (por toda a gente deve entender-se os primos, que são
aqueles que verdadeiramente lhes interessam) e que era muito divertido abrirem
os presentes e estarem todos à lareira a conversar, numa azáfama agradável.
Riam-se porque o avô os obrigara, no Natal passado, a ouvir a música, que sai
da garrafa, após dar à corda, onde o guarda o vinho de Porto de cem anos, com
que presenteia a plateia nos almoços de Natal. O vinho é espesso, licoroso e
doce. Pressuponho que a ambrósia, o néctar dos deuses, seja algo semelhante. Os
netos têm direito a experimentar uma pinguinha e não cabem em si de contentes,
porque o avô lhes permite a audácia. Escusado será dizer que os pais não mandam
nada, nessas alturas. O melhor é dizer que só pode ser mesmo um bocadinho…
Todos lambem os beiços no final e nenhum faz cara feia… O avô, satisfeito, sentencia
que saem todos à raça e fica o diagnóstico traçado. Durante a conversa entre
irmãos, a Matilde desata a gargalhar com as saídas do avô. Um dia, dizia ela,
eu estava a ver fotografias antigas e apareceu uma do avô e ele dizia-me:
- Olha bem… Olha que eu era mais bonito do que a tua avó!
E nisto, a avó começa a dizer:
- Ó João, está calado! Este homem é um convencido! Deus me
livre!
Ria-se como uma perdida e logo se lembra da ocasião em que o
avô a olhar para a prima, vestida com as suas calças largas lhe diz:
-Ó minha filha! Essas calças são-te enormes! Cabem-te duas
pernas numa!
Mais uma vez, a avó intervém:
- Está calado, homem! Não percebes nada! Não vês que elas são
assim? É a moda!
O avô lá solta um impropério a maldizer a moda que faz a
miudagem andar com semelhantes trapos!
Os pequenos divertem-se e riem-se a valer com estas tiradas.
Entretanto, diz-lhe o irmão:
- Olha… eles já estão juntos há tantos anos que se calhar já
estão fartos um do outro!
Acrescenta logo a pequena:
- Pois, mas agora tem de ser que já nem sabem viver um sem o
outro… Quer dizer, a avó sem o avô ainda se aguentava, que ela sabe fazer as
coisas, sabe cozinhar… Agora, o avô sem a avó, coitado! Aposto que nem um dia
se aguentava! O avô nem um ovo sabe fritar! Havia de ser bonito!
E eu deixo-os falar entre eles. Só a
apreciar a conversa, com o filho a insistir que temos de voltar a dar um
passeio todos juntos (avós, filhos e netos), sem querer saber da dificuldade
que é conciliar horários. Só sabe que é muito divertido e que arranjam maneira
de convencer o tio a levar os cinco num carro só, a aturar-lhes a barulheira…
Sorrio, porque os vejo a construir as
suas memórias do Natal, tal como eu tenho as minhas. Depois da ceia, o resto da
noite era, invariavelmente, passado na casa da tia, que apesar de ausente,
sempre se faz presente nestas alturas, também entre risadas e brincadeiras de
primos.
Dou por mim a observá-los a construir
a sua própria história, a reviver momentos de que tanto gostam e a ansiar a companhia
dos primos. Serão estas imagens que associarão ao Natal e que mesmo na idade
adulta poderão recuperar.
Pequenos momentos de felicidade que
se inscrevem no ser. Pedaços do que já fomos e do que já vivemos e que gostamos
sempre de relembrar.
Feliz Natal!
Nina M.
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