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sábado, 11 de setembro de 2021

Crónica de Maus Costumes 245

 

O limite de cada dor é uma dor maior (Émile Michel Cioran)

 

Não podia, pela razão que alguns conhecerão, deixar de prestar a minha sincera solidariedade e o meu profundo pesar a todos os pais que perderam um filho. Não me ocorre nada pior que possa afetar tanto a sanidade de uma mãe ou de um pai. Quando tal acontece é a realização do nosso maior receio. É o meu medo maior. Será o de tantos outros.

Ao longo da minha vida, já fui várias vezes confrontada com esta injustiça. O primeiro caso de que tenho memória foi com um primo (filho do meu padrinho), que morreu afogado no rio. Eu era miúda e tenho memória da mãe do meu primo Nuno, que veio uns dias para minha casa, a convite da minha mãe, por certo. Apática, de preto integral, sentada numa cadeira e de olhar parado por detrás dos óculos grossos, enquanto a minha avó Matilde, que morou connosco depois do desaparecimento do meu avô, tentava fazer com que reagisse, supervisionando os afazeres na cozinha. Não lembro mais nada, mas tenho esta imagem gravada. Sem compreender a dimensão, sabia que a Maria Emília estava lá pela tristeza de ter perdido o Nuno.

Hoje, sendo mãe, compreendo o alcance de tamanha dor. Não era tristeza. Era destruição, vazio profundo e absurdo. É muito difícil combater o absurdo e quando a vida contraria a lei natural e nos retira o chão sobra quase nada.

Mais tarde, assisti à infelicidade dos colegas com quem trabalhei, que perderam os dois filhos que tinham (um rapaz e uma rapariga), num acidente de viação, no IP4. Os irmãos viajavam no mesmo carro. O mesmo olhar perdido, a mesma ausência de sentido, a procura da filha no casaco dela e que agora a mãe vestia, como quem a resgata ao infinito…

Recentemente, um amigo de longa data que perde o único filho, por motivo de doença prolongada. Sinto o mesmo pesar, a mesma incapacidade e a mesma impotência para ajudar, porque tudo me parece débil, inócuo e em vão. Não há palavras nem gestos que levem a dor embora ou que curem o sofrimento e cubram o vazio. Acredito que o absurdo só pode ser curável pelo amor, mas mesmo este me parece falível em tamanha dor. Talvez ajude a resistir… Sei apenas que esta fatalidade exige uma coragem imensa e uma vontade férrea para suportar a dor dos dias, para reaprender a viver, para aceitar a perda, para viver no sofrimento até ser capaz de o transformar em saudade apaziguada e ninguém sabe como fazer… Creio que só mesmo o tempo será o agente não do esquecimento, mas da aceitação e da resignação… Depois… O que cada um faz dessa fatalidade dependerá da sua personalidade. Há quem ceda ao cinismo e à amargura, há quem desista da vida, há quem use a experiência para ajudar outros que passam pelo mesmo processo, há quem consiga encontrar algum sentido e vencer o absurdo, enfim… É sempre uma resposta pessoal, sem haver certo ou errado, apenas pessoas que tentam sobreviver o melhor que podem e como sabem.

Desta forma, não hesitei um segundo em assinar a petição que circula nas redes sociais a solicitar mais dias de nojo para estas perdas. Esse tempo extra que é pedido não vai curar a alma dos progenitores, mas talvez lhes possa dar o tempo de que necessitam para se reorganizarem internamente, em busca da sua reconstrução.

Pede-se respeito e compaixão. Compaixão não no sentido da simples comiseração, mas no sentido para o qual a decomposição da palavra aponta (com +  paixão), ou seja, com passionis, étimo latino que significa ação de sofrer, de suportar, remetendo para a Paixão de Cristo. Assim, sentir compaixão, no sentido de sofrer com os que sofrem ou se quisermos seguir o modernismo linguístico em voga, sermos empáticos com o outro e a sua dor.

O limite de cada dor é uma dor maior, diz Cioran. Estes pais atingiram o limite do limite, porque não há dor maior.

 

Nina M.

 

 

 

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