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sábado, 24 de abril de 2021

Crónica de Maus Costumes 229

 

O poder da literatura e a importância da leitura

                Assisti, com primordial interesse, a uma tertúlia digital promovida pelo Partido socialista, orientada pela Dra. Edite Estrela. Lembro-me do seu programa televisivo “Falar Português”, baseado em pequenos apontamentos sobre como escrever e falar corretamente, quando era ainda uma jovem liceal, a quem, desde já agradeço as lições e o facto de nos ter poupado uma aula aborrecidíssima de Português, por incompetência de quem a lecionava. Aprendemos, certamente, bem mais com o programa do que com a aula que teríamos. Infelizmente, sempre houve maus profissionais em todos os setores e a educação não escapa ao martírio.

            O debate orientado pela Dra. Edite Estrela teve como intervenientes a escritora Lídia Jorge e o Professor, ensaísta, crítico literário e também poeta, António Carlos Cortez. O tema tratado era sobre o papel da leitura nos dias de hoje, “A leitura hoje: para além do feitiço dos ecrãs”. Abordou-se, entre outros assuntos a falta de interesse dos jovens, os nativos digitais, pela leitura e as consequências nefastas que tal comportamento traz à sociedade, com a participação dos internautas que iam manifestando as suas opiniões nas caixas dos comentários. Naturalmente, quem assistiu seria um público leitor e, como tal, defensor do livro e dos tremendos benefícios da leitura. Genericamente, concordo com as posições dos intervenientes e compartilho a mesma preocupação evidenciada por ambos, relativamente ao facto de os nossos jovens não lerem. Na verdade, o povo português não é leitor. Nunca foi e o professor Carlos Cortez identificou razões históricas sobejamente conhecidas, capazes de explicar parte do problema: O facto de vermos instaurado O Tribunal do Santo Ofício, vulgo Inquisição, durante 285 anos (1536-1821). Todos nós sabemos o que foi Índex e a perseguição a vários intelectuais, portadores de novas ideias que pudessem fazer perigar o poder clerical, assim como o controlo das livrarias. O livro era, assim, o inimigo herege que era preciso combater. Mais tarde, já no século XX, o país viveria a ditadura salazarista, a mais longa da Europa, também ela inimiga do livro e das novas ideias, que o lápis azul da censura cerceava. Desta forma, se compreende a pouca afeição do português pelo livro. Paradoxalmente, quer nos regimes fascistas quer nos regimes totalitários comunistas, o livro e a palavra assumem uma importância vital para a sociedade. Da lista negra de autores portugueses faziam parte Urbano Tavares Rodrigues, Miguel Torga, Alves Redol, Natália Correia, Herberto Hélder, Aquilino Ribeiro, Vergílio Ferreira, entre outros. Nos estrangeiros apareciam Jorge Amado, Jean-Paul Sartre e todos os que defendessem a ideologia marxista. Porém, a imaginação e a palavra vão mais longe e surgem as músicas e a literatura de intervenção, a mensagem que apela ao vento de mudança, por mais que este atrase a sua vinda. Nestas circunstâncias, nunca a literatura foi tão necessária. Lembro a poetisa russa Akhmatova, que caída em desgraça perante Estaline, por ter travado conhecimento com Isaiah Berlin, de origem russa, mas criado em Inglaterra e tido como um espião inimigo do país, se viu denegrida pelo aparelho estatal e remetida ao esquecimento, aquela que no auge havia sido apelidada de “A Safo russa”. Akhmatova não esmoreceu e o seu poema “Requiem”, que tanto perturbou Berlin, seria decorado e dito a um grupo restrito de amigas para não ser esquecido e mais tarde, impresso clandestinamente, num sistema de autopublicação (samizdat) e, posteriormente, no estrangeiro (tamizdat). É numa publicação Samizdat que a russa lê Soljenítsin, “Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch”, mais tarde agraciado com o prémio Nobel. Se a poetisa denunciava no seu “Requiem” o desespero da espera no exterior de uma prisão, sem esperança, na época da purga estalinista, Soljetsín narra cruamente um dia passado no “gulag”, que por experiência própria conheceu. Primo Levi fez o mesmo sobre os horrores do Holocausto, num relato vivenciado em primeira pessoa, numa descrição seca da crueldade. Tome o leitor para si a sua indignação. A literatura a interessar-se pela vida e pelo homem comum, a tornar-se o testemunho e a denúncia dos horrores.

Porém, o livro pode ser outra coisa para além de intervenção e veículo de comunicação: pode ser o refúgio de uma realidade insuportável. A criação de um novo mundo, uma nova vida paralela para quem escreve e para quem lê. O antidepressivo que os tempos modernos exigem, a suspensão e o congelamento do tempo, o alheamento lúcido tão necessário. Portanto, quando me dizem que não compreendem como se gosta de ler, contraponho que não entendo, como é possível não gostar de o fazer! E quanto mais lemos, mais exigentes nos tornamos nas escolhas. Para se ter um país de leitores é necessário educar para a leitura. É necessário recentrar o livro na sala de aula. Investir no texto literário (no currículos regulares). Quem interpreta um texto literário, mais facilmente lê uma reportagem, uma notícia ou qualquer outro texto de imprensa! É necessário apostar na formação literária e contínua dos professores. Considero absolutamente ridículo querer fazer ações de formação na área da literatura e não haver ofertas nos centros de formação! Um professor de Português precisa bem mais do livro do que da capacitação digital! A aula de Português deve ser a ágora, onde se aprende a interpretar, a analisar, a explorar ideias e a escrever. Os sucessivos governos vêm delapidando o ensino e os resultados estão à vista. Por último, relembrar a necessidade de criar maior equidade na sociedade portuguesa. Sem isso, a valorização do papel da escola e da cultura não será possível nem o livro será entendido como um bem de primeira necessidade. Por muito que nos esforcemos por passar a ideia, se a uma família lhe sobrar apenas quinze euros no final do mês, o investimento não será feito em livros. Não é feito por quem pode quanto mais por quem passa necessidade! Esta é a realidade portuguesa que observo no meu contexto laboral. Os alunos não leem autonomamente. Nem sequer têm livros em casa, mas gostam da leitura em sala de aula e aí querem ler! Os meus alunos lastimaram o término do estudo de Gil Vicente. Alguma coisa deverá ter ficado. Não sei se Camões será bem-sucedido. Veremos. O que não pode acontecer é, perante o meu entusiasmo camoniano, enquanto lhes explico a genialidade de construir 1102 estâncias que obedecem criteriosamente a uma apertada estrutura formal, enquanto narra a viagem à Índia e a restante História de Portugal e ainda as mistura com planos mitológicos e considerações do poeta, obter como resposta: “Isso é de quem não trabalha e de quem não tem mais nada para fazer”! A desvalorização da arte e do trabalho poético (que não é entendido como tal) cabe nesta observação que tratei de demonstrar ser errada.

           

Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza

Düa austera, apagada e vil tristeza.

Camões, in Lusíadas, Canto X

Nina M.

 

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