O poder da literatura e a importância da leitura
Assisti, com primordial interesse, a
uma tertúlia digital promovida pelo Partido socialista, orientada pela Dra.
Edite Estrela. Lembro-me do seu programa televisivo “Falar Português”, baseado
em pequenos apontamentos sobre como escrever e falar corretamente, quando era
ainda uma jovem liceal, a quem, desde já agradeço as lições e o facto de nos
ter poupado uma aula aborrecidíssima de Português, por incompetência de quem a
lecionava. Aprendemos, certamente, bem mais com o programa do que com a aula
que teríamos. Infelizmente, sempre houve maus profissionais em todos os setores
e a educação não escapa ao martírio.
O debate orientado pela Dra. Edite
Estrela teve como intervenientes a escritora Lídia Jorge e o Professor,
ensaísta, crítico literário e também poeta, António Carlos Cortez. O tema
tratado era sobre o papel da leitura nos dias de hoje, “A leitura hoje: para além do feitiço dos
ecrãs”. Abordou-se, entre outros assuntos a falta de interesse dos jovens, os
nativos digitais, pela leitura e as consequências nefastas que tal
comportamento traz à sociedade, com a participação dos internautas que iam
manifestando as suas opiniões nas caixas dos comentários. Naturalmente, quem
assistiu seria um público leitor e, como tal, defensor do livro e dos tremendos
benefícios da leitura. Genericamente, concordo com as posições dos
intervenientes e compartilho a mesma preocupação evidenciada por ambos,
relativamente ao facto de os nossos jovens não lerem. Na verdade, o povo
português não é leitor. Nunca foi e o professor Carlos Cortez identificou
razões históricas sobejamente conhecidas, capazes de explicar parte do
problema: O facto de vermos instaurado O Tribunal do Santo Ofício, vulgo
Inquisição, durante 285 anos (1536-1821). Todos nós sabemos o que foi Índex e a
perseguição a vários intelectuais, portadores de novas ideias que pudessem
fazer perigar o poder clerical, assim como o controlo das livrarias. O livro
era, assim, o inimigo herege que era preciso combater. Mais tarde, já no século
XX, o país viveria a ditadura salazarista, a mais longa da Europa, também ela
inimiga do livro e das novas ideias, que o lápis azul da censura cerceava.
Desta forma, se compreende a pouca afeição do português pelo livro.
Paradoxalmente, quer nos regimes fascistas quer nos regimes totalitários
comunistas, o livro e a palavra assumem uma importância vital para a sociedade.
Da lista negra de autores portugueses faziam parte Urbano Tavares
Rodrigues, Miguel Torga, Alves Redol, Natália Correia, Herberto
Hélder, Aquilino Ribeiro, Vergílio Ferreira, entre outros. Nos estrangeiros
apareciam Jorge Amado, Jean-Paul Sartre e todos os que defendessem a ideologia
marxista. Porém, a imaginação e a palavra vão mais longe e surgem as músicas e
a literatura de intervenção, a mensagem que apela ao vento de mudança, por mais
que este atrase a sua vinda. Nestas circunstâncias, nunca a literatura foi tão
necessária. Lembro a poetisa russa Akhmatova, que caída em desgraça perante
Estaline, por ter travado conhecimento com Isaiah Berlin, de origem russa, mas
criado em Inglaterra e tido como um espião inimigo do país, se viu denegrida
pelo aparelho estatal e remetida ao esquecimento, aquela que no auge havia sido
apelidada de “A Safo russa”. Akhmatova não esmoreceu e o seu poema “Requiem”,
que tanto perturbou Berlin, seria decorado e dito a um grupo restrito de amigas
para não ser esquecido e mais tarde, impresso clandestinamente, num sistema de
autopublicação (samizdat) e, posteriormente, no estrangeiro (tamizdat). É numa
publicação Samizdat que a russa lê Soljenítsin, “Um Dia na Vida de Ivan
Deníssovitch”, mais tarde agraciado com o prémio Nobel. Se a poetisa denunciava
no seu “Requiem” o desespero da
espera no exterior de uma prisão, sem esperança, na época da purga estalinista,
Soljetsín narra cruamente um dia passado no “gulag”,
que por experiência própria conheceu. Primo Levi fez o mesmo sobre os
horrores do Holocausto, num relato vivenciado em primeira pessoa, numa
descrição seca da crueldade. Tome o leitor para si a sua indignação. A
literatura a interessar-se pela vida e pelo homem comum, a tornar-se o
testemunho e a denúncia dos horrores.
Porém, o livro pode ser outra coisa para além de intervenção e veículo de
comunicação: pode ser o refúgio de uma realidade insuportável. A criação de um
novo mundo, uma nova vida paralela para quem escreve e para quem lê. O
antidepressivo que os tempos modernos exigem, a suspensão e o congelamento do
tempo, o alheamento lúcido tão necessário. Portanto, quando me dizem que não
compreendem como se gosta de ler, contraponho que não entendo, como é possível
não gostar de o fazer! E quanto mais lemos, mais exigentes nos tornamos nas
escolhas. Para se ter um país de leitores é necessário educar para a leitura. É
necessário recentrar o livro na sala de aula. Investir no texto literário (no
currículos regulares). Quem interpreta um texto literário, mais facilmente lê
uma reportagem, uma notícia ou qualquer outro texto de imprensa! É necessário
apostar na formação literária e contínua dos professores. Considero
absolutamente ridículo querer fazer ações de formação na área da literatura e
não haver ofertas nos centros de formação! Um professor de Português precisa
bem mais do livro do que da capacitação digital! A aula de Português deve ser a
ágora, onde se aprende a interpretar,
a analisar, a explorar ideias e a escrever. Os sucessivos governos vêm
delapidando o ensino e os resultados estão à vista. Por último, relembrar a
necessidade de criar maior equidade na sociedade portuguesa. Sem isso, a
valorização do papel da escola e da cultura não será possível nem o livro será
entendido como um bem de primeira necessidade. Por muito que nos esforcemos por
passar a ideia, se a uma família lhe sobrar apenas quinze euros no final do
mês, o investimento não será feito em livros. Não é feito por quem pode quanto
mais por quem passa necessidade! Esta é a realidade portuguesa que observo no
meu contexto laboral. Os alunos não leem autonomamente. Nem sequer têm livros
em casa, mas gostam da leitura em sala de aula e aí querem ler! Os meus alunos lastimaram
o término do estudo de Gil Vicente. Alguma coisa deverá ter ficado. Não sei se
Camões será bem-sucedido. Veremos. O que não pode acontecer é, perante o meu
entusiasmo camoniano, enquanto lhes explico a genialidade de construir 1102
estâncias que obedecem criteriosamente a uma apertada estrutura formal,
enquanto narra a viagem à Índia e a restante História de Portugal e ainda as
mistura com planos mitológicos e considerações do poeta, obter como resposta:
“Isso é de quem não trabalha e de quem não tem mais nada para fazer”! A
desvalorização da arte e do trabalho poético (que não é entendido como tal)
cabe nesta observação que tratei de demonstrar ser errada.
Não mais, Musa, não mais, que a
Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que
venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o
engenho
Não no dá a pátria, não, que está
metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Düa austera, apagada e vil
tristeza.
Camões, in Lusíadas,
Canto X
Nina M.
Sem comentários:
Enviar um comentário