Infância
É sempre tão bom recuperar pedaços
da nossa infância! O tempo da inocência em que não se percebia nada de política
nem se sabia da maldade do mundo…
Lembro-me de certo dia, uma senhora
parar à minha porta, num mini, e perguntar sobre a localização da casa da minha
tia. Eu teria por volta dos sete ou oito anitos e tentava explicar o trajeto. Não
deveria estar a ser bem-sucedida, pois a condutora sugeriu que lho fosse
indicar, que depois me voltaria a trazer ao destino, o que fiz prontamente.
Escusado será dizer que tal comportamento me custou uma descompostura da minha
mãe, que eu não compreendia, porque afinal estava apenas a ajudar alguém. Era
essa a justificação que apresentava à pergunta furiosa da minha mãe “Então não
sabes que não se vai a lado algum com desconhecidos? Se a senhora fosse má
poderia ter-te levado. Há adultos maus!”
Bem,
penso que a partir desse dia, compreendi que não era exatamente verdade que
deveríamos ajudar todos os que de nós precisassem e, apesar da minha mãe, muito
zangada, me falar de raptos de crianças, eu pasmava e interrogava-me sobre o
motivo de alguém me querer levar, pois não serviria para nada a não ser dar
trabalho! Não fazia qualquer sentido e eu insistia que a senhora precisava de
ajuda e que cumpriu direitinho com o prometido, porque me trouxe de regresso a
casa. Pelo meio, tinha de ouvir o meu irmão mais velho a dizer à mãe que bem
tentou dissuadir-me, mas sem qualquer efeito. Normal, claro. Se ele dizia que
não, mais um motivo para eu ir, porque é sabido que os manos mais velhos não
têm nada que mandar nos mais novos!
Fui,
naturalmente, sob ameaça e coação, proibida de repetir a façanha! Compreendo,
hoje, a aflição retardatária da minha mãe, ainda que naquele tempo os perigos
fossem menores, também existiam. Se fosse a minha Matilde a fazer algo do
género ficaria doida! A miúda desapareceu-me num sonho e eu acordei numa
aflição e num sofrimento atroz!
Sei
que esse episódio quebrou, de alguma forma, a minha ingenuidade e o meu
encanto. O primeiro contacto com a hipotética maldade que nos mostra que afinal
há adultos que não são confiáveis e que nos podem fazer mal… Por algum motivo o
recordo.
A
dor do crescimento está relacionada com a perda da inocência e com o desencanto
do mundo. Não acontece de uma vez só, na maioria dos casos, mas à medida que
vamos vivendo… Talvez por isso, a absoluta felicidade nos seja interdita a
partir de certa altura. Quando o olhar virginal se esvai não mais se recupera…
Sei que tenho momentos na memória de
irremediável e de inequívoca felicidade, daquela de fazer inveja. Lembro-me bem
de ser jovem universitária e de me sentir, em certos momentos, despudoradamente
feliz. E sei olhar e ver ali muita inocência há muito perdida. Ou então recuar
aos tempos de meninice e ver três gabirus absolutamente felizes por irem fazer
um piquenique numa ilhota perdida no meio do Tâmega, no Marco de Canaveses,
transportados em barco a remos até ela para passar o dia, com direito a banhos,
ou das corridas loucas e dos saltos nas dunas de Mindelo, cuja água, hoje, me
eriça a pele, mas que naquele tempo estava sempre boa, até ao momento em que o
disco alaranjado decidisse repousar e adormecer no mar. E recordo os jogos no
monte ao pé de casa, uma espécie de paintball
sem armas e sem tintas, apenas com a senha: “tau! Estás morto! Vai para o
penedo!” E íamos e de lá gritávamos com a força que os pulmões permitissem que
estávamos mortos para a nossa equipa perceber a baixa. Nunca vi mortos tão
satisfeitos! Ou a descoberta de minas de água e da apanha das amoras, dos agriões
nas presas, enfim… Um bando de ganapada à solta com um mundo por descobrir.
Recordo
tudo com saudade e com a consciência de que tive uma infância tão feliz! Muito
mais feliz do que a de muita gente, sem o merecer mais ou menos… Até para se
nascer é preciso ter sorte. E nada se prende com dinheiro, porque não havia em
excesso. Porém, sobrava amor. Disso estou certa.
Nina
M.
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