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sábado, 17 de abril de 2021

Crónica de Maus Costumes 228

 

Infância

            É sempre tão bom recuperar pedaços da nossa infância! O tempo da inocência em que não se percebia nada de política nem se sabia da maldade do mundo…

            Lembro-me de certo dia, uma senhora parar à minha porta, num mini, e perguntar sobre a localização da casa da minha tia. Eu teria por volta dos sete ou oito anitos e tentava explicar o trajeto. Não deveria estar a ser bem-sucedida, pois a condutora sugeriu que lho fosse indicar, que depois me voltaria a trazer ao destino, o que fiz prontamente. Escusado será dizer que tal comportamento me custou uma descompostura da minha mãe, que eu não compreendia, porque afinal estava apenas a ajudar alguém. Era essa a justificação que apresentava à pergunta furiosa da minha mãe “Então não sabes que não se vai a lado algum com desconhecidos? Se a senhora fosse má poderia ter-te levado. Há adultos maus!”

Bem, penso que a partir desse dia, compreendi que não era exatamente verdade que deveríamos ajudar todos os que de nós precisassem e, apesar da minha mãe, muito zangada, me falar de raptos de crianças, eu pasmava e interrogava-me sobre o motivo de alguém me querer levar, pois não serviria para nada a não ser dar trabalho! Não fazia qualquer sentido e eu insistia que a senhora precisava de ajuda e que cumpriu direitinho com o prometido, porque me trouxe de regresso a casa. Pelo meio, tinha de ouvir o meu irmão mais velho a dizer à mãe que bem tentou dissuadir-me, mas sem qualquer efeito. Normal, claro. Se ele dizia que não, mais um motivo para eu ir, porque é sabido que os manos mais velhos não têm nada que mandar nos mais novos!

Fui, naturalmente, sob ameaça e coação, proibida de repetir a façanha! Compreendo, hoje, a aflição retardatária da minha mãe, ainda que naquele tempo os perigos fossem menores, também existiam. Se fosse a minha Matilde a fazer algo do género ficaria doida! A miúda desapareceu-me num sonho e eu acordei numa aflição e num sofrimento atroz!

Sei que esse episódio quebrou, de alguma forma, a minha ingenuidade e o meu encanto. O primeiro contacto com a hipotética maldade que nos mostra que afinal há adultos que não são confiáveis e que nos podem fazer mal… Por algum motivo o recordo.

A dor do crescimento está relacionada com a perda da inocência e com o desencanto do mundo. Não acontece de uma vez só, na maioria dos casos, mas à medida que vamos vivendo… Talvez por isso, a absoluta felicidade nos seja interdita a partir de certa altura. Quando o olhar virginal se esvai não mais se recupera…

 Sei que tenho momentos na memória de irremediável e de inequívoca felicidade, daquela de fazer inveja. Lembro-me bem de ser jovem universitária e de me sentir, em certos momentos, despudoradamente feliz. E sei olhar e ver ali muita inocência há muito perdida. Ou então recuar aos tempos de meninice e ver três gabirus absolutamente felizes por irem fazer um piquenique numa ilhota perdida no meio do Tâmega, no Marco de Canaveses, transportados em barco a remos até ela para passar o dia, com direito a banhos, ou das corridas loucas e dos saltos nas dunas de Mindelo, cuja água, hoje, me eriça a pele, mas que naquele tempo estava sempre boa, até ao momento em que o disco alaranjado decidisse repousar e adormecer no mar. E recordo os jogos no monte ao pé de casa, uma espécie de paintball sem armas e sem tintas, apenas com a senha: “tau! Estás morto! Vai para o penedo!” E íamos e de lá gritávamos com a força que os pulmões permitissem que estávamos mortos para a nossa equipa perceber a baixa. Nunca vi mortos tão satisfeitos! Ou a descoberta de minas de água e da apanha das amoras, dos agriões nas presas, enfim… Um bando de ganapada à solta com um mundo por descobrir.

Recordo tudo com saudade e com a consciência de que tive uma infância tão feliz! Muito mais feliz do que a de muita gente, sem o merecer mais ou menos… Até para se nascer é preciso ter sorte. E nada se prende com dinheiro, porque não havia em excesso. Porém, sobrava amor. Disso estou certa.

 

Nina M.

 

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