Pandemia e cretinices
O meu pai fez, recentemente, 83 anos e a minha filha faz este
domingo, dia 28, dez anos. Quatro dias separam as datas de aniversário de avô e
neta, de modo que, mais por causa da pequena, quando os aniversários são
durante a semana, celebram-se ambos no fim de semana, em família.
Este ano, por motivos óbvios, não se pode fazer o mesmo.
Haverá o bolo de aniversário, os primos do outro lado do jardim e os avós numa
visita rápida à neta, mas faltará o tio e padrinho e o outro padrinho adotado,
que é meu afilhado, e ainda outros familiares habituais de quem se gosta, mas
que não estarão presentes. Vivemos num tempo estranho feito de ausências e de
saudade. Um tempo que nos tolhe os afetos, os abraços e a convivência. Um tempo
que já levou a vida a muitos, que deixou a vida desarranjada a outros, que
deixará marcas severas em todos e um país fragilizado. Todos sofremos. Todos
nos sacrificamos e, por isso, aborrece-me sobremaneira o negacionismo de
muitos, que insistem na gripezinha, o medo excessivo de outros que impede que se
viva o melhor possível nas circunstâncias atuais, o egoísmo, a falta de empatia
e a invejazinha do portuguesinho comum que ao invés de lutar, de tentar
melhorar a sua situação, reivindicando os seus direitos, ameniza a sua
frustração se o vizinho estiver nas mesmas circunstâncias. É uma mentalidade
doentia e que potencia a mediocridade da nossa sociedade. Tenho lido críticas
ferozes aos funcionários públicos, no sentido de os mimar com certos epítetos,
desde preguiçosos a privilegiados, por continuarem a auferir o seu salário, no
final do mês, como se a decisão de os manter em teletrabalho partisse deles e
como se estivessem a receber o salário sem trabalhar!
Compreendo e preocupa-me
genuinamente a situação de muitos profissionais liberais. Tenho-os na família e
há setores que estão a ser demasiadamente castigados. Os apoios são tardios e
manifestamente insuficientes e o Estado tem falhado com os microempresários,
que criam os seus próprios empregos e ainda dão emprego a terceiros. É
lastimável que o Estado continue a desembolsar milhões para financiar uma banca
moribunda e abandone quem trabalha e quem produz. Aceito que se considere
demasiado perigoso manter determinadas atividades abertas, mas ao tomar-se essa
opção, ao impedir que as pessoas continuem a laborar, então, o Estado tem a
obrigação de as apoiar devidamente. São opções políticas e se não se assegura
de momento os postos de trabalho, o dinheiro acabará por sair sob a forma de
subsídios de desemprego e o país ressentir-se-á da crise inevitável. Este é o
cenário pouco promissor e nada simpático que se avizinha. Assim, quando vejo as
armas apontadas ao setor público em vez de se exigir a quem governa, fico
verdadeiramente irritada. Nos momentos em que a economia floresce e a vida
corre bem, não se lembram de que há muitos funcionários públicos que levam
apenas o salário mínimo para casa, por exemplo. Não se lembram que o
funcionário público não foge uma décima aos impostos, ao contrário de outras
profissões. Essa gente é a mesma que bate palmas a médicos e enfermeiros (que
por acaso são funcionários públicos também), mas que se os veem reivindicar por
melhores condições de trabalho ou melhores salários são os primeiros a
criticá-los. De modo que temos um país de gente que gosta de ver o seu vizinho
bem de vida, desde que não esteja melhor do que ela mesma. Temos um país que
organiza buzinões para reclamar do treinador que falha, mas que não organiza
buzinões para reclamar do desgoverno. Pior! Um país que quando vê alguém a
lutar por melhorar as suas condições laborais, aponta o dedo e estigmatiza,
porque se julga sempre não haver motivos para reclamações. Somos um país muito
solidário, mas apenas na tragédia e sermos todos iguais na desgraça e na
pobreza, apanágio de muitos, eu dispenso, muito obrigada. Não caio, porém, no
engodo da meritocracia, porque esta não existe em sociedades onde as
assimetrias sociais cavam fossos. A escola, a esperança da ascensão social, não
tem conseguido cumprir esse papel nos últimos anos e a pandemia dificulta ainda
mais a tarefa. Não obstante, ela deveria ser somente um centro de saber e de
desenvolvimento das competências dos seus alunos, zelando por uma formação
holística dos mesmos. A escola não deveria ser a resposta aos horários
desfasados dos pais, a resposta à fome dos seus alunos, a resposta à falta de
cuidados parentais, a resposta à prática desportiva, entre tantas outras
coisas. Exige-se à escola o que é da competência do Estado e das famílias. Em tempo
de escolas fechadas, as falhas ficam a descoberto e os dedos são apontados aos mesmos
de sempre. Como é habitual, de educação e de ensino todos sabem. Só não entendo
como começa a haver tanta falta de professores, dado tratar-se de uma função que
tantos julgam muito fácil, pouco trabalhosa e plena de privilégios!
Espero pelo fim desta lenta agonia que
nos rouba quem amamos e que em vez de nos tornar melhores seres humanos exacerba
o que de pior em nós coabita.
Nina M.
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