História e racismo
Morreu Marcelino da Mata, figura da
guerra colonial que não reúne consensos, para uns, vilão para outros herói. Para
os portugueses combatentes, que tiveram que ir para a frente da batalha, sem que
nada lhes fosse perguntado, terá sido um herói; para os africanos, um veneno, um
traidor e um demónio! Crimes de guerra? Há quem diga que os cometeu. Há sempre atrocidades
numa guerra, de todas as partes. Certo é que a sua morte volta a abrir a ferida
nunca fechada do colonialismo português e do racismo.
Julgo que está na hora de Portugal
reconhecer os seus erros. Salazar deveria tê-lo reconhecido atempadamente. Não
o fez e os que o seguiram também não. O resultado foi uma guerra colonial que
se estendeu durante anos e uma descolonização mal feita, que obrigou ao
regresso apressado de imensos portugueses, que vieram sem nada, como refugiados
de guerra. Saíram de um país miserável, viviam com algum conforto nas colónias
(bem mais do que os portugueses continentais) e regressaram à miséria
abandonada. Foram absolutamente rejeitados por aqueles que nunca abandonaram o
seu país. Eram cognominados de retornados, uma alcunha que quando pronunciada
ganhava laivos de ressabiamento. Eram a gente que veio retirar postos de
trabalho (muitos deles estatais) aos portugueses de gema que por cá se
mantiveram estoicos, sem a coragem de partir ou a resiliência de ficar,
conforme o ponto de vista.
Uma guerra que deixou estilhaços por
todo o lado: nos portugueses de cá, nos retornados e, sobretudo, nos povos
autóctones das ex-colónias.
Está
mais do que na hora de Portugal e os portugueses reconhecerem que o
comportamento de povo colonizador e imperialista é inaceitável. Os povos dos
territórios ultramarinos lutaram pela sua independência e autodeterminação, com
toda a legitimidade e, na Guiné, a situação foi particularmente feia e difícil.
Se devemos um gigantesco, sincero e contrito pedido de desculpa a todos esses
irmãos? Devemos. Devemos saber olhar para dentro, não apagar a História e saber
lidar com a culpa. É bom que a sintamos coletivamente, como povo. Eu, nascida
já depois do 25 de abril, reconheço a todo o povo o direito à sua
autodeterminação e peço a mais sincera desculpa pela política errada, pela
mania de imperialismo (que só nos desgraçou), pelos desmandos dos meus
antepassados, que não quero ver repetidos, mas antes repudiados.
Portugal tem, assim, uma falha moral
terrível para com todos estes povos e deverá fazer os impossíveis para que os
descendentes deles, já nascidos aqui ou a quem foi atribuída a nacionalidade
portuguesa tenham os mesmos direitos e deveres que qualquer um de nós, sem
qualquer discriminação, conforme o consignado na Constituição da República
Portuguesa. Mais considero ser um dever moral de todo o ser humano combater e
repudiar o racismo. Entender definitivamente que todos pertencemos a uma única
raça: a humana. Não há povos superiores ou inferiores. Somos iguais na carne e
no sangue. Tomemos como exemplo os alemães. Leiam os testemunhos de filhos e de
netos de soldados nazis que cometeram as atrocidades que todos sabemos. Assumem
para si uma culpa coletiva e envergonham-se e pedem desculpa. São os primeiros
a promoverem e a lembrarem a História da qual são os protagonistas horrendos,
para que a sordidez não volte a triunfar.
Não conseguimos mudar a História,
mas podemos traçar um futuro diferente. O século XXI deveria servir para
construir pontes ao invés de acicatar animosidades e polarizações. Para isso, é
necessários que os intervenientes políticos sejam sensatos e tenham em atenção
os discursos que proferem. Não é através do discurso do ódio que se combate o
racismo. Não é a pedir o esquecimento da nossa História que o deveremos fazer.
É a nossa identidade para o bem e para o mal. É necessário construir sobre o
presente, sem apagar os dislates do passado. Pelo contrário, recordemos para
sabermos que devemos fazer diferente. Assim, quando ouço um deputado da nação a
sugerir que se elimine o Padrão dos Descobrimentos, não posso ficar mais
horrorizada! Quer apagar as Descobertas? Foi mau ter-se descoberto o mundo?
Obviamente, que não! Se me fala do que veio depois, da subjugação dos povos, da
conquista de territórios, da escravização, obviamente, é inaceitável! Porém,
lembremos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada pela ONU
em 1948! No século XVI essa consciência não existia! É necessário
contextualizar acontecimentos. Faço questão de o lembrar aos meus alunos, de
cada vez que abordo estas questões. Quando estudamos Os Lusíadas, costumo dizer-lhes que não foi com carícias que os
portugueses “edificaram novo reino que
tanto sublimaram”. Espero que o senhor Ascenso Simões não se lembre de
pedir que o maior monumento da Língua Portuguesa seja retirado do programa ou de
pedir que se elimine Álvaro de Campos, quando na sua Ode Triunfal fala da
“invasão da Europa pelos bárbaros amarelos” ou que se elimine "Mensagem” de Pessoa pelo tom épico,
pelo espírito sebastianista e pela apologia do Quinto Império! Tranquilize-se, senhor deputado, este último
império seria cultural e civilizacional, não territorial! Haja algum decoro e
noção de decência, de cultura e de identidade! Fomos uns bárbaros? Fomos. Tal
como os espanhóis, os franceses, os ingleses e os holandeses… Se me ponho a
pensar na Itália e no que o Mussolini tentou fazer aos etíopes, também não saem
bem na fotografia, os alemães… Nem por sombra! Os europeus foram uns
estuporados bárbaros. Essa é a realidade, mas essa é também a História da
Europa, que não convém apagar. É a mesma Europa que se bateu e bate pela defesa
dos Direitos Humanos, é a mesma Europa que não admite nas leis reguladoras a
discriminação com base na raça, religião ou política! É a mesma Europa que já
inverteu a atuação e reconheceu o erro. É a hora de construir, não de destruir!
Eu compreendo as palavras que
senhora investigadora na área de sociologia dirigiu ao senhor deputado europeu
Nuno Melo, esclarecendo que não existe racismo dos negros em relação aos
brancos, considerando que racismo envolve um conjunto de políticas e de
comportamentos económicos e culturais de subjugação de outro povo. Tendo em
conta esta definição, fica claro que não existe racismo do negro para o branco,
pelo simples motivo de aquele nunca ter tido o poder de submeter o caucasiano.
Quanto aos preconceitos individuais, certamente terão e com razões de sobra
para os terem. No entanto, quanto tempo mais a humanidade vai perder nesta
troca de galhardetes ao invés de tentar encontrar as soluções que promovam a
equidade e o bem-estar de todos? Quando vamos deixar de polarizar discursos que
só acicatam ódios e começar a reunir em vez de apartar? É necessário, sim,
erradicar o racismo cultural que persiste na sociedade portuguesa, mas é
através da educação, do diálogo sereno, da sensibilização e da promoção da
igualdade que isso se faz, não através do incentivo à destruição do nosso
património cultural ou de intervenções que destilam ódio racial!
Haja decoro, senhores!
Nina M.
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