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sábado, 20 de fevereiro de 2021

Crónica de Maus Costumes 220

 

História e racismo

            Morreu Marcelino da Mata, figura da guerra colonial que não reúne consensos, para uns, vilão para outros herói. Para os portugueses combatentes, que tiveram que ir para a frente da batalha, sem que nada lhes fosse perguntado, terá sido um herói; para os africanos, um veneno, um traidor e um demónio! Crimes de guerra? Há quem diga que os cometeu. Há sempre atrocidades numa guerra, de todas as partes. Certo é que a sua morte volta a abrir a ferida nunca fechada do colonialismo português e do racismo.

            Julgo que está na hora de Portugal reconhecer os seus erros. Salazar deveria tê-lo reconhecido atempadamente. Não o fez e os que o seguiram também não. O resultado foi uma guerra colonial que se estendeu durante anos e uma descolonização mal feita, que obrigou ao regresso apressado de imensos portugueses, que vieram sem nada, como refugiados de guerra. Saíram de um país miserável, viviam com algum conforto nas colónias (bem mais do que os portugueses continentais) e regressaram à miséria abandonada. Foram absolutamente rejeitados por aqueles que nunca abandonaram o seu país. Eram cognominados de retornados, uma alcunha que quando pronunciada ganhava laivos de ressabiamento. Eram a gente que veio retirar postos de trabalho (muitos deles estatais) aos portugueses de gema que por cá se mantiveram estoicos, sem a coragem de partir ou a resiliência de ficar, conforme o ponto de vista.

            Uma guerra que deixou estilhaços por todo o lado: nos portugueses de cá, nos retornados e, sobretudo, nos povos autóctones das ex-colónias.

Está mais do que na hora de Portugal e os portugueses reconhecerem que o comportamento de povo colonizador e imperialista é inaceitável. Os povos dos territórios ultramarinos lutaram pela sua independência e autodeterminação, com toda a legitimidade e, na Guiné, a situação foi particularmente feia e difícil. Se devemos um gigantesco, sincero e contrito pedido de desculpa a todos esses irmãos? Devemos. Devemos saber olhar para dentro, não apagar a História e saber lidar com a culpa. É bom que a sintamos coletivamente, como povo. Eu, nascida já depois do 25 de abril, reconheço a todo o povo o direito à sua autodeterminação e peço a mais sincera desculpa pela política errada, pela mania de imperialismo (que só nos desgraçou), pelos desmandos dos meus antepassados, que não quero ver repetidos, mas antes repudiados.

            Portugal tem, assim, uma falha moral terrível para com todos estes povos e deverá fazer os impossíveis para que os descendentes deles, já nascidos aqui ou a quem foi atribuída a nacionalidade portuguesa tenham os mesmos direitos e deveres que qualquer um de nós, sem qualquer discriminação, conforme o consignado na Constituição da República Portuguesa. Mais considero ser um dever moral de todo o ser humano combater e repudiar o racismo. Entender definitivamente que todos pertencemos a uma única raça: a humana. Não há povos superiores ou inferiores. Somos iguais na carne e no sangue. Tomemos como exemplo os alemães. Leiam os testemunhos de filhos e de netos de soldados nazis que cometeram as atrocidades que todos sabemos. Assumem para si uma culpa coletiva e envergonham-se e pedem desculpa. São os primeiros a promoverem e a lembrarem a História da qual são os protagonistas horrendos, para que a sordidez não volte a triunfar.

            Não conseguimos mudar a História, mas podemos traçar um futuro diferente. O século XXI deveria servir para construir pontes ao invés de acicatar animosidades e polarizações. Para isso, é necessários que os intervenientes políticos sejam sensatos e tenham em atenção os discursos que proferem. Não é através do discurso do ódio que se combate o racismo. Não é a pedir o esquecimento da nossa História que o deveremos fazer. É a nossa identidade para o bem e para o mal. É necessário construir sobre o presente, sem apagar os dislates do passado. Pelo contrário, recordemos para sabermos que devemos fazer diferente. Assim, quando ouço um deputado da nação a sugerir que se elimine o Padrão dos Descobrimentos, não posso ficar mais horrorizada! Quer apagar as Descobertas? Foi mau ter-se descoberto o mundo? Obviamente, que não! Se me fala do que veio depois, da subjugação dos povos, da conquista de territórios, da escravização, obviamente, é inaceitável! Porém, lembremos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada pela ONU em 1948! No século XVI essa consciência não existia! É necessário contextualizar acontecimentos. Faço questão de o lembrar aos meus alunos, de cada vez que abordo estas questões. Quando estudamos Os Lusíadas, costumo dizer-lhes que não foi com carícias que os portugueses “edificaram novo reino que tanto sublimaram”. Espero que o senhor Ascenso Simões não se lembre de pedir que o maior monumento da Língua Portuguesa seja retirado do programa ou de pedir que se elimine Álvaro de Campos, quando na sua Ode Triunfal fala da “invasão da Europa pelos bárbaros amarelos” ou que se elimine  "Mensagem” de Pessoa pelo tom épico, pelo espírito sebastianista e pela apologia do Quinto Império! Tranquilize-se, senhor deputado, este último império seria cultural e civilizacional, não territorial! Haja algum decoro e noção de decência, de cultura e de identidade! Fomos uns bárbaros? Fomos. Tal como os espanhóis, os franceses, os ingleses e os holandeses… Se me ponho a pensar na Itália e no que o Mussolini tentou fazer aos etíopes, também não saem bem na fotografia, os alemães… Nem por sombra! Os europeus foram uns estuporados bárbaros. Essa é a realidade, mas essa é também a História da Europa, que não convém apagar. É a mesma Europa que se bateu e bate pela defesa dos Direitos Humanos, é a mesma Europa que não admite nas leis reguladoras a discriminação com base na raça, religião ou política! É a mesma Europa que já inverteu a atuação e reconheceu o erro. É a hora de construir, não de destruir!

            Eu compreendo as palavras que senhora investigadora na área de sociologia dirigiu ao senhor deputado europeu Nuno Melo, esclarecendo que não existe racismo dos negros em relação aos brancos, considerando que racismo envolve um conjunto de políticas e de comportamentos económicos e culturais de subjugação de outro povo. Tendo em conta esta definição, fica claro que não existe racismo do negro para o branco, pelo simples motivo de aquele nunca ter tido o poder de submeter o caucasiano. Quanto aos preconceitos individuais, certamente terão e com razões de sobra para os terem. No entanto, quanto tempo mais a humanidade vai perder nesta troca de galhardetes ao invés de tentar encontrar as soluções que promovam a equidade e o bem-estar de todos? Quando vamos deixar de polarizar discursos que só acicatam ódios e começar a reunir em vez de apartar? É necessário, sim, erradicar o racismo cultural que persiste na sociedade portuguesa, mas é através da educação, do diálogo sereno, da sensibilização e da promoção da igualdade que isso se faz, não através do incentivo à destruição do nosso património cultural ou de intervenções que destilam ódio racial!

Haja decoro, senhores!

 

Nina M.

           

 

 

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