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sábado, 13 de fevereiro de 2021

Crónica de Maus Costumes 219

 

Falta de jeito…

            A distribuição de talento não é equitativa nem justa. Há muita gente que reúne uma plêiade de dons e parece que conseguem fazer tudo tão bem feito que nos deixam surpreendidos.

            Eu sou a irmã do meio de dois rapazes inteligentes. O mais velho, que nunca gostou de estudar e causou dores de cabeça à mãe, que teve de lhe dizer perentoriamente que o décimo segundo ano teria de fazer, independentemente do ofício que viesse a escolher. Poderia ser o que quisesse: pedreiro, marceneiro, carpinteiro, lavrador, mas teria de, pelo menos, saber falar corretamente, dizia-lhe. O meu irmão pode agradecer-lhe. Se não tivesse tido a mãe pouco democrática e dura, hoje, não teria a profissão que desempenha, porque, por sua vontade, faria o sexto ano (escolaridade obrigatória, na altura) e teria ido trabalhar. No seu décimo segundo, decidiu que ia acabar o ano com média de quinze para que as pessoas soubessem que não ia para a Universidade porque não queria e não porque fosse “burro”, dizia ele. Fez o mínimo (nunca foi de fazer o máximo na escola) e terminou com dezassete. Gostava era de bola e ainda hoje o tratam por Zico, batismo de tempo de escola e era mais conhecido do que o arroz de quinze. Mais velho do que eu quatro anos, na escola, eu era a irmã do Zico. Efetivamente, eu continuo a sê-lo e não me aborrece nada. Porém, tal tratamento, na altura, irritava-me um bocadinho, porque era por esse laço familiar que me reconheciam e não pela minha pessoa. De modo que quando entrei na faculdade, onde não era conhecida de ninguém, passei a ser a Sónia. Ponto. Deu-se a minha epifania.

Lembro os anos de faculdade como os meus melhores tempos. Fui verdadeiramente feliz. Obviamente, também houve situações menos agradáveis e menos positivas, mas que contribuíram para o meu crescimento e das quais, francamente, quase não recordo. Só se fizer um esforço por relembrar, mas como não sou masoquista, o que me vem à recordação são os momentos (tantos) bem vividos com os amigos. A nossa memória tem esta capacidade fabulosa de apagar o que nos magoou e resgatar as lembranças boas para tornar o nosso passado suportável e olharmos para ele com nostalgia. Rodeada por um grupo de amigos extraordinários, pessoas de boa índole e a quem recordo com um carinho tão grande que não sou capaz de expressar com inteireza: Anabela Marques, Eva Dias, Agostinho Lopes, Albano Melo, Armandinho, Zé Aleixo, o meu padrinho de curso - que me protegeu de muita praxe - Augusto Júlio, Isabel Ferreira, que gostava de praxar, mas que não conseguia fazê-lo com as duas caloiras de Paços de Ferreira, a Sandra Fernandes – com quem ainda hoje mantenho uma amizade inabalável de irmãs e ainda tantos outros nomes que aqui não estou a citar… Perdoai, mas refiro aqueles que primeiro chegaram até mim e com quem muitas vezes fui ao pão quente do lado de lá da ponte, depois de uma noite na discoteca, companheiros de almoços e, muitas vezes, jantares, na cantina de Codessais, quando não havia vontade de cozinhar. O grupo que invariavelmente se reunia no fim do jantar, na Metrópolis, porque nessa tenra idade não há frio impeditivo de sair! Numa das últimas vezes que passei pela “Bila” (vou amiúde a terras transmontanas, mas não exatamente à cidade), fui verificar se a cervejaria ainda funcionava. E sim, ainda existe o espaço. Renovado, com ares de modernidade, mas… Já nada daquilo me pertencia, nada daquilo era o meu espaço… Da Metrópolis ficou apenas a saudade. Recordo, então, essas amizades ingénuas e limpas, apesar de me moerem o juízo devido à minha cor clubística, por ser das poucas que tinha bom gosto (vá lá entender-se…), com imensa gratidão. Devo-lhes um profundo agradecimento por terem feito parte da minha vida e por me terem proporcionado momentos absolutamente felizes.

Por vos recordar, quase me esquecia do propósito do texto… O meu irmão mais novo, conhecido de muitos que me leem, escuso-me a falar. Em primeiro lugar, se o soubesse, ficaria aborrecido, por ser absolutamente recatado. O que dizer? Não preciso. Tem obra publicada na sua área e que fala por si. É, seguramente, das pessoas mais cultas que conheço. Característica de que talvez poucos se apercebam, dado o seu carácter reservado. Para além do amor fraterno, tenho uma profunda admiração por ele, pela sua determinação, foco e dedicação ao estudo dos assuntos do seu interesse.          

            Tenho um enorme orgulho nos meus manos. Essa é a verdade. Com estes dois portentos nas extremidades, o que haveria de sobrar para a rapariga do meio? Pouca coisa, efetivamente… Pensava nisto enquanto corria e dizia cá para mim… O Ricardo Araújo Pereira costuma intitular-se de parvo… Parva, também consigo ser, às vezes, mas fazer da parvoíce modo de vida é que é difícil… E pronto… Caio um bocadinho no desalento, porque há coisas que gostaria de fazer muito bem e sou péssima. Sou completamente desafinada e ninguém me apanha a cantar em público. Quando acharem que o fiz, ficam a saber que fiz playback… Sou uma desgraça com trabalhos manuais e desenho… Chega a ser verdadeiramente ridículo! O meu desporto é a corrida, porque é a única coisa que sei fazer… Basta mexer as pernas… Eu era a miúda, a totó que nas aulas de Educação Física não conseguia fazer passar a bola de vólei para o outro lado da rede… Ainda hoje acho que não conseguiria, mas também não vou experimentar para não passar pela vergonha… A única coisa que vou fazendo bem é cozinhar, mas também não sou nenhuma chef nem tenho paciência para receitas demasiado elaboradas…

Quando engravidei do meu filho mais velho, quis bordar-lhe um lençol a ponto cruz, mas não consegui aprender e escusam de me vir dizer que é muito fácil e tal, porque me baralho toda! A dada altura, quando lhe ia pegar, as vísceras tremiam tão agitadas dentro de mim e o ritmo cardíaco aumentava de tal forma, que só podia fazer mal à criatura! Agarrei no lençol ainda mal começado e dei-o à madrinha para que ela o terminasse, que é para isso que elas servem (as que sabem bordar)… Para a mais nova, encomendei logo o serviço à madrinha do mais velho e já não me aborreci… Por isso, ainda hoje, se os meus filhos me pedem ajuda para algum trabalho manual, eu fico mais apavorada do que eles! Felizmente, a miúda é arranjadinha e adora essas atividades. Já o mais velho… Deve ser por termos nascido no mesmo dia… Que Deus nos socorra e nos liberte dessas agonias!

De modo que já pensei reclamar por tanta faltinha de jeito! Portanto, para quem julga e me faz chegar muito generosamente a sua simpatia por aquilo que considera ser os meus atributos, desengane-se… Sou o descrito sem pingo de exagero. Já sei, mas por favor, não me venham falar da escrita, porque se o talento fosse muito, alguém o teria descoberto. E resume-se a isto: sou professora de Português e aqui sim, sem qualquer falsa modéstia, posso atingir a excelência, mas também não é grande virtude, porque fui treinada para isso. Faço-o eu e os outros milhares de professores deste país.

Nina M.

           

 

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