Falta de jeito…
A distribuição de talento não é
equitativa nem justa. Há muita gente que reúne uma plêiade de dons e parece que
conseguem fazer tudo tão bem feito que nos deixam surpreendidos.
Eu sou a irmã do meio de dois
rapazes inteligentes. O mais velho, que nunca gostou de estudar e causou dores
de cabeça à mãe, que teve de lhe dizer perentoriamente que o décimo segundo ano
teria de fazer, independentemente do ofício que viesse a escolher. Poderia ser
o que quisesse: pedreiro, marceneiro, carpinteiro, lavrador, mas teria de, pelo
menos, saber falar corretamente, dizia-lhe. O meu irmão pode agradecer-lhe. Se
não tivesse tido a mãe pouco democrática e dura, hoje, não teria a profissão
que desempenha, porque, por sua vontade, faria o sexto ano (escolaridade
obrigatória, na altura) e teria ido trabalhar. No seu décimo segundo, decidiu
que ia acabar o ano com média de quinze para que as pessoas soubessem que não
ia para a Universidade porque não queria e não porque fosse “burro”, dizia ele.
Fez o mínimo (nunca foi de fazer o máximo na escola) e terminou com dezassete.
Gostava era de bola e ainda hoje o tratam por Zico, batismo de tempo de escola
e era mais conhecido do que o arroz de quinze. Mais velho do que eu quatro
anos, na escola, eu era a irmã do Zico. Efetivamente, eu continuo a sê-lo e não
me aborrece nada. Porém, tal tratamento, na altura, irritava-me um bocadinho,
porque era por esse laço familiar que me reconheciam e não pela minha pessoa.
De modo que quando entrei na faculdade, onde não era conhecida de ninguém,
passei a ser a Sónia. Ponto. Deu-se a minha epifania.
Lembro
os anos de faculdade como os meus melhores tempos. Fui verdadeiramente feliz.
Obviamente, também houve situações menos agradáveis e menos positivas, mas que
contribuíram para o meu crescimento e das quais, francamente, quase não
recordo. Só se fizer um esforço por relembrar, mas como não sou masoquista, o
que me vem à recordação são os momentos (tantos) bem vividos com os amigos. A
nossa memória tem esta capacidade fabulosa de apagar o que nos magoou e resgatar
as lembranças boas para tornar o nosso passado suportável e olharmos para ele
com nostalgia. Rodeada por um grupo de amigos extraordinários, pessoas de boa
índole e a quem recordo com um carinho tão grande que não sou capaz de
expressar com inteireza: Anabela Marques, Eva Dias, Agostinho Lopes, Albano
Melo, Armandinho, Zé Aleixo, o meu padrinho de curso - que me protegeu de muita
praxe - Augusto Júlio, Isabel Ferreira, que gostava de praxar, mas que não
conseguia fazê-lo com as duas caloiras de Paços de Ferreira, a Sandra Fernandes
– com quem ainda hoje mantenho uma amizade inabalável de irmãs e ainda tantos
outros nomes que aqui não estou a citar… Perdoai, mas refiro aqueles que
primeiro chegaram até mim e com quem muitas vezes fui ao pão quente do lado de
lá da ponte, depois de uma noite na discoteca, companheiros de almoços e,
muitas vezes, jantares, na cantina de Codessais, quando não havia vontade de
cozinhar. O grupo que invariavelmente se reunia no fim do jantar, na
Metrópolis, porque nessa tenra idade não há frio impeditivo de sair! Numa das
últimas vezes que passei pela “Bila” (vou amiúde a terras transmontanas, mas
não exatamente à cidade), fui verificar se a cervejaria ainda funcionava. E
sim, ainda existe o espaço. Renovado, com ares de modernidade, mas… Já nada
daquilo me pertencia, nada daquilo era o meu espaço… Da Metrópolis ficou apenas
a saudade. Recordo, então, essas amizades ingénuas e limpas, apesar de me
moerem o juízo devido à minha cor clubística, por ser das poucas que tinha bom
gosto (vá lá entender-se…), com imensa gratidão. Devo-lhes um profundo
agradecimento por terem feito parte da minha vida e por me terem proporcionado
momentos absolutamente felizes.
Por vos recordar,
quase me esquecia do propósito do texto… O meu irmão mais novo, conhecido de
muitos que me leem, escuso-me a falar. Em primeiro lugar, se o soubesse,
ficaria aborrecido, por ser absolutamente recatado. O que dizer? Não preciso.
Tem obra publicada na sua área e que fala por si. É, seguramente, das pessoas
mais cultas que conheço. Característica de que talvez poucos se apercebam, dado
o seu carácter reservado. Para além do amor fraterno, tenho uma profunda
admiração por ele, pela sua determinação, foco e dedicação ao estudo dos
assuntos do seu interesse.
Tenho um enorme orgulho nos meus
manos. Essa é a verdade. Com estes dois portentos nas extremidades, o que
haveria de sobrar para a rapariga do meio? Pouca coisa, efetivamente… Pensava
nisto enquanto corria e dizia cá para mim… O Ricardo Araújo Pereira costuma
intitular-se de parvo… Parva, também consigo ser, às vezes, mas fazer da
parvoíce modo de vida é que é difícil… E pronto… Caio um bocadinho no
desalento, porque há coisas que gostaria de fazer muito bem e sou péssima. Sou
completamente desafinada e ninguém me apanha a cantar em público. Quando
acharem que o fiz, ficam a saber que fiz playback…
Sou uma desgraça com trabalhos manuais e desenho… Chega a ser verdadeiramente
ridículo! O meu desporto é a corrida, porque é a única coisa que sei fazer… Basta
mexer as pernas… Eu era a miúda, a totó que nas aulas de Educação Física não conseguia
fazer passar a bola de vólei para o outro lado da rede… Ainda hoje acho que não
conseguiria, mas também não vou experimentar para não passar pela vergonha… A
única coisa que vou fazendo bem é cozinhar, mas também não sou nenhuma chef nem tenho paciência para receitas
demasiado elaboradas…
Quando
engravidei do meu filho mais velho, quis bordar-lhe um lençol a ponto cruz, mas
não consegui aprender e escusam de me vir dizer que é muito fácil e tal, porque
me baralho toda! A dada altura, quando lhe ia pegar, as vísceras tremiam tão
agitadas dentro de mim e o ritmo cardíaco aumentava de tal forma, que só podia
fazer mal à criatura! Agarrei no lençol ainda mal começado e dei-o à madrinha
para que ela o terminasse, que é para isso que elas servem (as que sabem
bordar)… Para a mais nova, encomendei logo o serviço à madrinha do mais velho e
já não me aborreci… Por isso, ainda hoje, se os meus filhos me pedem ajuda para
algum trabalho manual, eu fico mais apavorada do que eles! Felizmente, a miúda é
arranjadinha e adora essas atividades. Já o mais velho… Deve ser por termos nascido
no mesmo dia… Que Deus nos socorra e nos liberte dessas agonias!
De modo
que já pensei reclamar por tanta faltinha de jeito! Portanto, para quem julga e
me faz chegar muito generosamente a sua simpatia por aquilo que considera ser os
meus atributos, desengane-se… Sou o descrito sem pingo de exagero. Já sei, mas por
favor, não me venham falar da escrita, porque se o talento fosse muito, alguém o
teria descoberto. E resume-se a isto: sou professora de Português e aqui sim, sem
qualquer falsa modéstia, posso atingir a excelência, mas também não é grande virtude,
porque fui treinada para isso. Faço-o eu e os outros milhares de professores deste
país.
Nina
M.
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