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sábado, 3 de outubro de 2020

Crónica de Maus Costumes 200

 

Fim de um ciclo

                Hoje é dia de número redondo. Novamente. Quando atingi o pleno (as primeiras 100 crónicas) houve quem desejasse o seguimento de outras tantas. Interiormente, eu duvidei da possibilidade, mas a existência delas confirma-a. Duzentas crónicas representam quatro anos de textos semanais, de forma quase ininterrupta, num compromisso tácito que assumi com quem me foi lendo e acompanhando e a quem voto um profundo respeito. Raros foram os fins de semana que ficaram sem crónica. O período de férias, sobretudo de verão, foi a exceção à regra. Muitos houve em que, mesmo estando fora de casa, elas surgiram. Ou acompanharam-me nas minhas saídas ou foram escritas por antecipação para serem publicadas como sempre foi hábito.

                Por via disto, há quem me considere alguém que gosta de rotinas ou que delas necessita. Não sei se será bem isso, porque a rotina enfada-me tremendamente. Há períodos em que a realização de determinadas tarefas é acompanhada de um nervoso miudinho, precisamente, porque essa rotina me agasta. Nunca foi o caso, mas também é verdade que houve sábados menos apetecidos e cansaços, mas o texto surgiu. Não foi por rotina, mas antes por comprometimento. Mais do que gostar de rotinas sou comprometida. Defeito de criação e de leituras, talvez… Torga e Kant têm a sua responsabilidade. Esse meu comprometimento para com os outros (não todos, obviamente, apenas os que sinto dignos dele) ou para com certas situações, permitem-me domesticar a minha rebeldia e desestruturação. Sempre foi esse comprometimento com a minha profissão e os meus alunos que me arrancou da cama às sete da manhã, sem nunca me apetecer, porque nunca tenho vontade de me levantar a essa hora, para ir trabalhar. Raramente faltei ou falto. Faço-o apenas por imperativos de razão superior. Sempre fui assim. Lembro-me ainda da reação, numa escola por onde passei, quando no dia doze de junho me despedi dos colegas e desejei umas boas férias, porque no dia seguinte não estaria. Tinha de parir. Estava marcado e o Rodrigo tinha de conhecer a mãe. É portanto mais por compromisso que levo os meus afazeres a sério do que gosto pela rotina. Há quem lhe chame determinação. Também poderá ser. No entanto, neste momento, não me comprometo com mais cem nem tão pouco com a regularidade que tem vindo a ser apanágio. Também não assino a extinção da rubrica, apenas me comprometo a escrevê-la quando a vontade me empurrar para a folha em branco e o tema a tratar surja com naturalidade, sem que tenha de o procurar. A maioria delas foi assim escrita, mas outras houve que tiveram de ser “cavadas”. É já muita palavra lavrada. Sinto que às vezes me repito. Sinal de coerência, mas incorro no perigo de vos cansar. Há que saber gerir os momentos…

Depois da declaração de descomprometimento, passo à reflexão de hoje. Numa das suas preleções, Karnal versava sobre a felicidade e sobre como a consciência nos torna cobardes, citando uma frase de Hamlet. Citava, como exemplo, o facto de aos 20 anos saltar para uma piscina subitamente e aos 50 entrar devagar… Eu costumo gostar de ouvir Leandro Karnal e, muitas vezes, até concordo com ele, mas não hoje, particularmente, neste aspeto. Considero o exemplo um pouco infantil e mal escolhido ou então foi a palavra cobardia mal usada. A consciência confere-nos peso, mas não nos torna obrigatoriamente cobardes (ou covardes, se preferirem. Existem as duas versões). O facto de entrar na água aos poucos, torna-o cauteloso ou um pouco mais temerário, porque entra devagar, pressentindo que o corpo vai notar a diferença de temperatura, mas não o impede de entrar. Depois, usar aqui a palavra cobardia parece-me exagero. A cobardia implica ausência de coragem ou deslealdade. Ora a consciência pode não obrigar forçosamente à cobardia. Se Karnal tivesse dado como exemplo um assalto em que a pessoa amedrontada e ameaçada não reage e colabora com o assaltante seria mais pertinente, mas ainda assim pode ser considerado cobardia?! Tratando-se da preservação da própria vida não será mais inteligente a atitude cautelosa? Ser corajoso não implica ausência de medo, logo, não implica inconsciência, mas antes senti-lo, sentir o seu peso e ser capaz de o enfrentar. O inverso, isto é, a ausência de medo é apenas sinal de estupidez, até porque este é o sensor para a nossa proteção. Esperava que de seguida ligasse a consciência à felicidade ou à infelicidade, o que acabou por acontecer, referindo que a consciência é a tomada de conhecimento do risco da vida e que a ignorância é uma bênção. Assim, quando há essa consciência a alegria torna-se difícil. Por exemplo, a consciência de que o problema de corrupção é estrutural na sociedade e não característica de um partido apenas, impede que haja felicidade quando surge um novo governo eleito. A consciência pesa. Neste aspeto, concordo com ele. A consciência dificulta a felicidade e pesa, poderá ser condição necessária à infelicidade, mas será condição suficiente? Quem não ouviu falar na dor de pensar de Pessoa que o leva ao refúgio na infância, lugar virtual de felicidade, onde reina a inconsciência, condição, segundo ele, necessária à felicidade. Acontece que o sujeito poético perde-se na dor e na cisão do eu ao desejar ser inconsciente e ter a consciência disso ou a querer resgatar e regressar a uma infância perdida (que nem existiu como é evocada, apenas fruto do seu intelecto!). Depara-se Pessoa com uma espécie de consciência infeliz hegeliana: a cisão em duas partes, uma que tem a sua essência residente no além e a outra parte de si mesma que vive no mutável, no aquém. Assim vive a consciência, a tentar fazer a síntese, sem saber que a universalidade absoluta que busca é também ela mesma. Desta forma, vive contraditória, sempre dolorida, num movimento contínuo de tentativa de libertar-se da dor que é ser portadora desta contrariedade: a vontade de ser o ser e o não-ser, o mutável e o imutável, o efémero e o eterno, o singular e o universal ou a parte e o absoluto. Será a inconsciência o segredo da felicidade? Não acredito. A felicidade deverá implicar a consciência e comportar todo o seu peso, porque a felicidade não exclui a dor. Ninguém passa pela vida incólume. As perdas acontecem e tem que haver superação. Antes de qualquer outra condição, a felicidade exigirá comprometimento com os nossos princípios e as nossas verdades, o que não pode existir sem consciência, não haverá felicidade sem a cura para as angústias inerentes à condição humana. Há que saber encontrá-la. Sempre de forma pessoal e intransmissível. Kierkegaard encontrou-a na religião, segundo Kafka, “A juventude é feliz porque tem capacidade de ver beleza. Qualquer um que tenha a capacidade de ver beleza nunca envelhece.”

Qual será a nossa cura?

Voltaremos, certamente, a encontrar-nos um dia destes.

 

Nina M.

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